quinta-feira, 14 de outubro de 2021

O CAPÍTULO 3 DO WORLD ECONOMIC OUTLOOK 2021

 


(A publicação anual do World Economic Outlook, WEO, do Fundo Monetário Internacional, FMI, continua a corresponder a um momento de foco em informação relevante dada a qualidade dos colaboradores de base e a escolha temática dos relatórios, que transcende bastante a notoriedade mediática das projeções anuais. Tem predominado a orientação de associar em cada ano a análise da economia mundial a desenvolvimentos por temas específicos, correspondendo-lhe como é óbvio um esforço aprofundado de investigação empírica, para além de nos oferecer uma compilação estatística notável que nos poupa horas e horas de labor e pesquisa. A edição deste ano, acabadinha de sair, não foge à regra. O interesse que destaco neste post é o seu capítulo 3, dedicado a uma relação que tem tanto de fascinante como de complexa: investigação, inovação e crescimento económico a longo prazo).

O relevo que o WEO 2021 (link aqui) atribui ao tema da relação entre investigação, inovação e crescimento económico de longo prazo explica-se pelas tendências que se têm manifestado neste último. O crescimento económico de tempo longo está indissociavelmente ligado ao que os economistas costumam designar de produto potencial das economias. Este não é mais do que a capacidade total de crescimento que as economias apresentam pressupondo que estão a ser plenamente utilizados todos os recursos disponíveis. O produto potencial costuma ser identificado como ligado às condições da oferta da economia, embora possa discutir-se, não será esta a ocasião certa para o fazer, uma situação estrutural e prolongada de défice de procura não poderá afetar o produto potencial. Mas o que é importante por agora salientar é que nos últimos tempos, digamos neste século, todos os cálculos, mais ou menos sofisticados, apontam para um declínio do produto potencial. Mais especificamente, a produtividade não tem dado sinais de crescimento assinalável, mesmo com o crescimento continuado das despesas brutas em investigação e desenvolvimento (I&D). Ora, neste contexto, é perfeitamente compreensível que se pretenda dotar o pós-pandemia de melhores condições de crescimento a longo prazo. Daí o interesse na relação “investigação, inovação e crescimento económico a longo prazo”. Compreensivelmente, o WEO dedica-lhe um capítulo temático próprio.

Na moderna teoria do crescimento económico, o produto potencial aparece determinado por dois blocos de produção, analiticamente separáveis mas que podem integrar-se numa função única de produção. No chamado bloco da produção das ideias, a investigação básica e a investigação aplicada influenciam o stock de conhecimento corrente acrescentando ao stock de conhecimento do passado os resultados das suas atividades. No bloco mais tradicional da produção de bens e serviços, as horas de trabalho, o capital humano (qualificações), o capital físico (que armazena as ideias económicas do passado) e fatores de natureza institucional, organizacional e até cultural influenciam essa produção e a produtividade, seja a do trabalho, seja a produtividade total dos fatores. É esse esquema analítico que o capítulo 3 do WEO usa para desenvolver as suas análises (ver esquema acima).

Até agora, olhando para os fatores de produção das ideias com valor económico (digamos suscetíveis de dar origem a patentes, não ignorando que nem todas as ideias-inovação com valor económico assumem a dimensão das patentes), tende a considerar-se que a investigação aplicada, a que é orientada para a colocação de novos produtos no mercado ou para a inovação-processo, alterando métodos de produção, apresentaria efeitos mais imediatos na produção e no crescimento. É nesse quadro que se compreende a tónica na translação do conhecimento para o meio empresarial e na intensificação das práticas colaborativas entre centros produtores de conhecimento e o investimento-inovação das empresas. Esta interpretação não evita o reconhecimento de que o conhecimento da investigação básica se dissemina mais intensamente no tempo e no espaço do que o da investigação aplicada, sendo nesta última mais forte, embora não absoluta, a capacidade das empresas para apropriar o conhecimento em que investem. Por último, na economia global de hoje, que atinge também a economia das ideias, não interessam apenas a investigação básica e aplicada produzida em cada país. Os spillovers internacionais de ambas interessam e de que maneira, particularmente como seria lógico esperar, às economias emergentes e, sem surpresa, o WEO manifesta as suas preocupações pelas perturbações que o conflito EUA-China pode trazer à comunidade científica mundial e aos spillovers de conhecimento. Empiricamente e à falta de variáveis mais perfeitas, as citações de artigos científicos e de patentes revelam a influência da investigação básica e da investigação aplicada, respetivamente, embora fiquemos arrepiados com as imperfeições associadas a tais pressupostos.

Uma das conclusões mais sugestivas que o capítulo 3 do WEO nos traz é a evidência de que a própria investigação básica pode ser considerada um fator relevante de inovação e produtividade (e por isso de crescimento económico a longo prazo). Para além disso, com menos novidade, a difusão pelo mundo do conhecimento científico básico é mais intensa do que a do conhecimento aplicado. Não esqueçamos que a investigação colaborativa proporcionada pela transformação digital tornou obsoleta a ideia de que o conhecimento se difunde apenas pelas revistas científicas ou pelos livros, sabendo da eternidade que existe entre o momento de submissão de um artigo, a sua revisão por pares e a sua publicação. O WEO avança mesmo com números para a economia como um todo: 10% de aumento na investigação básica nacional e externa gera crescimentos de produtividade, respetivamente de 0,3 e 0,6%. Uma outra conclusão relevante do estudo é que a investigação básica e a investigação aplicada ambas exercem uma influência positiva na intensidade de registo de patentes, com magnitudes de efeitos muito similares.

Mas onde me parece que as conclusões do capítulo 3 são mais interessantes do ponto de vista da política de inovação para um país como Portugal (que não pertence à fronteira tecnológica que comanda a inovação) é na explicitação do modelo utilizado por tipologias de países. Um resultado que está largamente em linha com toda a literatura em que mergulhei para preparar as minhas cadeiras de Economia da Inovação e do Conhecimento, é a maior relevância da investigação externa (básica e aplicada) para as economias emergentes. Todas as economias asiáticas de nova geração, com a Coreia do Sul à cabeça, usaram abundantemente este mecanismo. Ora, a surpresa está na conclusão de que a relevância da investigação básica é maior nas economias emergentes do que nas avançadas. A chamada investigação básica de nichos menos ocupados pelo sistema de I&D das economias avançadas pode explicar esta surpreendente conclusão que teria feito as delícias do saudoso Professor Mariano Gago, artífice dos avanços no nosso sistema científico.

Tudo isto num contexto geral de resultados em que, embora o saibamos, com os indicadores de patentes a medirem imperfeitamente o esforço de inovação, a relação entre inovação e produtividade é muito robusta. 1% no stock de patentes “explica” 0,04% de aumento de produtividade. E sabemos mais: a robustez dessa relação é substancialmente mais elevada quando lhe acrescentamos qualificações avançadas nos sistemas de inovação e maior profundidade de desenvolvimento do sistema financeiro de suporte à inovação. Ora aqui está um ponto inspirador para a realidade portuguesa: nesta triangulação, em Portugal falham a intensidade de patentes e a sofisticação do sistema financeiro, já que em matéria de qualificações temos avançado bastante.

Para além da surpresa e potencial inspirador destes resultados, confirmam-se três ideias relevantes para a progressão do nosso sistema científico e tecnológico e dos nossos sistemas regionais de inovação.

Primeiro, a falha de mercado na investigação básica obriga a um impulso mais decisivo do esforço público, seja por via de incentivos à I%D privada básica, seja por I&D pública. A razão da falha está nos manuais: a tendência para uma maior disseminação da investigação tende a que o setor privado sub-invista em I&D básica.

Segundo, embora a falha de mercado seja menos intensa na investigação aplicada, nem todas as empresas conseguem apropriar plenamente os seus investimentos em I&D aplicada, pelo pode existir também sub-investimento nesta área a justificar apoio público, neste caso essencialmente por via de subsídios ao setor privado.

Terceiro, a contínua abertura aos spillovers de conhecimento vindos do exterior é crucial estar presente nas políticas científica e de inovação. As consequências deste ponto são o apoio público a diferentes formas de internacionalização dos sistemas científico e de inovação e maior rigor na avaliação de projetos relativamente à putativa produção de conhecimento novo que afinal não é novo.

E, como ideia central que o capítulo 3 do WEO nos convida a debater, é esta necessidade de recentrar o papel da investigação básica, mesmo para um país como Portugal, no crescimento económico de longo prazo. Imagino que alguns membros da comunidade científica em Portugal vão regozijar-se festivamente com esta conclusão. É um facto que se trata de uma ideia que precisa de ser recentrada e no início de um novo período de programação é o momento certo para o fazer. Mas isso não deve ser um convite ao reencerramento em torres de marfim. Afinal é da relação “investigação, inovação e crescimento económico a longo prazo” que se trata.

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