(Uma capa do Economist é sempre um tema. Se por magia de Aladino pudesse regressar às minhas aulas na Universidade, de que as saudades moem, creio que poderia ministrar um curso de economia atual com base numa sequência de capas da revista. A capa da revista que nos acompanha de 9 a 15 de outubro está nesse universo. Desperta-nos para algo que veio com a pandemia mas que ainda não sabemos ser apenas uma consequência desta última ou se, pelo contrário, nos avisa de que algo de mais estrutural está a passar-se diante dos nossos olhos. Afinal naquela angústia muito particular de quem vive momentos de exceção que só depois da nossa morte e pelo olhar inteligente de outros vão ser entendidos como tal. The shortage economy é um grande tema, link aqui).
É curioso que o tema da economia da escassez nos lança em pensamentos e referências totalmente contraditórios.
Por um lado, o desenvolvimento económico nas principais economias avançadas e nas chamadas economias emergentes, suportada pela inovação tecnológica e pelo associado aumento da produtividade do trabalho proporcionou às populações desses países melhorias de bem-estar material praticamente incomensuráveis face a períodos passados. A emergência da desigualdade nessas economias e os problemas suscitados pela não consideração atempada das externalidades negativas sobre o ambiente, a degradação do clima e a exaustão previsível dos recursos de suporte a esse crescimento colocaram questões de sustentabilidade desses progressos de melhoria de bem-estar material. Ou seja, a escassez aparentemente não estava lá (The Affuent Society de Kenneth Galbraith ainda é uma das minhas leituras de referência), mas se nos abrirmos à dúvida e ao questionamento ela estava lá.
Por outro lado, a chamada economia de “mainstream”, mais tradicional ou mais ortodoxa como que lhe quiserem chamar foi construída a partir de uma representação que tinha a escassez (de recursos ou meios face aos fins) como elemento central.
Ora, a shortage economy de que a capa do Economist nos fala vem com um outro contexto, resultante em primeira linha de um problema clássico em economia. Como o afirma a revista, o mundo viveu depois da crise financeira de 2008 uma grave crise de procura: endividadas e procurando reduzir dívida as empresas retardaram e anularam investimentos; a austeridade usada como instrumento de política reduziu dramaticamente o consumo privado das famílias; a miopia da política pública reduziu dramaticamente a despesa pública. Algo de inverso sucede com a gestão pandémica. A oferta enfrenta dificuldades de adaptação a uma procura efervescente.
Acho que o editorial da revista tem razão quando situa na primeira linha das razões para esta estranha situação a própria pandemia pelo que ela significou de apoio à estabilização da procura e graves problemas de queda de oferta, com forte desregulação das cadeias de valor globais na economia mundial e ameaças na área da disponibilidade de produtos intermédios e de algumas matérias primas. Mas continua a ter razão quando em cima desse fator original temos de juntar: (i) a descarbonização que tornou as economias ocidentais vulneráveis a crises na oferta de outras fontes de energia, com destaque para os problemas de subida do preço do gás natural e (ii) o protecionismo que parece ter vindo para ficar, com graves consequência na fluidez do comércio mundial.
E em todo este processo os riscos maiores situam-se no possível retrocesso em matéria de descarbonização, sobretudo se a transição energética não for devidamente gerida e no recuo desgovernado e não reformista da globalização.
O mundo e particularmente as economias avançadas parecem estar a entrar num pesadelo que contrasta com o universo incontestável das melhorias de bem-estar material que o desenvolvimento económico e a inovação tecnológica, não interessa agora saber se já em esforço e em desaceleração como alguns economistas o lembraram estudando especialmente o crescimento económico americano.
Com a shortage economy passa-se algo de semelhante ao que é detetado na pandemia. A um problema global só é possível responder com soluções globais, incluindo as questões da governação. É assim com a pandemia como o vemos ainda hoje, estando o mundo incapaz de gerir uma solução à escala global, como ainda há dias António Guterres clamava piamente. Assim me parece acontecer também com a questão da economia da escassez. Seria trágico que regressassem as velhas e fratricidas políticas do “beggar-my-neighbour”, ou seja procurando resolver as coisas à custa da vitória de curto prazo sobre o vizinho, ignorando os ensinamentos da história. Todos perdemos.
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