terça-feira, 12 de outubro de 2021

PANDEMIA E DESIGUALDADE MUNDIAL

 

            (in Nichant Yonzant, Christoph Lackner e Daniel Mahler, "Is COVID-19 increasing global
            inequality?" (link aqui)

(Vão-se sucedendo os estudos e análises sobre as consequências económicas planetárias e nacionais da pandemia, quantificando intuições, suscitando por vezes surpresas e novos pontos de vista sobre a intensidade e diversidade das consequências. É agora a vez das consequências sobre a desigualdade da distribuição do rendimento a nível mundial. Nada de mais lógico e natural. De facto, para algo de incidência marcadamente global, uma pandemia, será de bom tom avaliar que consequências ela trouxe nesse mesmo plano global).

A curiosidade que pairava no ar sobre as consequências da pandemia no plano da desigualdade a nível mundial tinham uma razão especial a justificá-la. No período pré-pandémico, tinha-se vivido, pelo menos até à crise financeira de 2008, uma situação paradoxal. Tal situação explica em parte as reações muito desencontradas suscitadas pela globalização e pela velha questão de quem ganha e de quem perde com o seu avanço. O paradoxo situava-se no facto de, concomitantemente com a perda clara experimentada pelas classes médias das sociedades ocidentais, cavalgada pelos movimentos populistas, se ter assistido a uma melhoria da desigualdade à escala mundial. Como se recordam de outros posts sobre a matéria, a desigualdade mundial mede-se escalonando os rendimentos dos indivíduos de todo o mundo como se pertencesse a um só país e calculando nessa distribuição os indicadores de desigualdade mais comum.

(Christoph Lackner e Branko Milanovic, 2013)

Em 2013, um gráfico apelativo (ver acima) destacou-se pela notoriedade que obteve em matéria de descrição desse fenómeno. Ficou conhecido pelo gráfico-elefante dada a sua configuração curiosa e deveu-se aos trabalhos de Christoph Lakner e Branco Milanovic (link aqui). Nesse gráfico, calculado para o período 1988-2008, era perfeitamente visível o maior crescimento do rendimento dos percentis intermédios da população mundial (a aproximação a uma classe média mundial) quando comparado com o comportamento dos restantes escalões. Sabia-se que esse comportamento do gráfico podia associar-se com segurança ao crescimento económico dos países asiáticos que retirou imensa população da pobreza e foi criando o suporte dessa tal classe média mundial. Os mais otimistas pensaram que esse advento era positivo para a generalização da democracia a nível mundial, dada a capacidade reivindicativa desses grupos. Enganaram-se talvez porque tenham ignorado que uma grande parte desses países motores desse crescimento apresentam regimes políticos bastante musculados, senão autoritário repressivos como na China, que não embarcam facilmente nas cantatas laudatórias da democracia.

Mas por mais que custasse às populações ocidentais mais sacrificadas pela globalização, algumas postadas com violência nas ruas, veja-se o caso francês com os “maillot jaune” e dos desiludidos que encarneiraram com Trump nos EUA, a verdade é que a globalização até à crise de 2008 trouxe mais igualdade à distribuição do rendimento à escala mundial. Bem sei que alguns dirão que com a felicidade dos outros podem bem, com as perdas pessoais é que não.

O período que medeia da crise de 2008 ao pré-pandemia (2019) estava pouco documentado e por isso a curiosidade estava no ar quanto ao impacto que pandemia terá provocado nessa dimensão mais positiva (embora menos mediatizada) da globalização.

Três economistas do Banco Mundial (Nishant Yonzan, Christoph Lakner, o tal da curva elefante e Daniel Gerszon Mahler) acabam de publicar o que me parece ser a primeira tentativa de projetar as consequências da pandemia sobre a desigualdade a nível mundial. E há que reconhecer que as dificuldades são muitas. Os estudos da desigualdade a nível mundial exigem a disponibilidade de inquéritos ao rendimento das famílias relativamente atualizados e não seria de esperar que em plena pandemia, com outras preocupações em cima, tenha sido possível a realização de tais inquéritos. Assim sendo, os autores baseiam o seu trabalho nas projeções de crescimento de junho de 2021 para estimar o rendimento pessoal de cada um. A projeção é realizada com e sem COVID-19 para tornar possível o isolamento do efeito pandémico.

O gráfico que abre este post descreve sucintamente os resultados obtidos. O gráfico tem uma leitura relativamente simples. No eixo dos xx escalonam-se os recipientes de rendimento dos mais baixos para os mais altos, numa distribuição vulgar de percentis. Por sua vez, no eixo dos yy, inscrevem-se as perdas de rendimento medidas pela diferença pela projeção do rendimento pessoal com e sem COVID, isto para dois anos, 2020 e 2021. Quanto mais inclinada forem as curvas da esquerda para a direita, mais desigual é a distribuição gerada pela pandemia.

Assim, em 2020, comparando os 20% mais pobres e os 20% mais ricos, percebe-se que a perda dos primeiros oscila entre os 6 e os 7%, ao passo que nos mais ricos essa perda é menor, na escala dos 5%. E percebe-se também que, em 2021, os 20% mais ricos recuperam melhor das suas perdas. Evidência por conseguinte que a distribuição se deteriorou em termos de desigualdade. Os autores, embora cientes do efeito perturbação que a China e a Índia tendem a provocar na distribuição, defendem que o agravamento da desigualdade resiste á exclusão daqueles países da amostra, concluindo ainda que o impacto pandémico é mais igualitário do que o da recuperação.

Mas o que me parece mais curioso é a investigação realizada pelos três economistas do Banco Mundial sobre o comportamento da desigualdade entre países (um indicador de desigualdade para cada país e cálculos subsequentes).

O gráfico acima é surpreendente. Depois de uma sequência ininterrupta de descida da desigualdade entre países até 2017, o período mais recente que inclui já 2021 mostra pela primeira vez uma inversão dessa tendência.

O que eu resumiria deste modo: a globalização das duas últimas décadas, em si própria, não degradou, antes melhorou a desigualdade entre países, por muito estranho que isso possa soar a muitos ativistas contra a dita globalização. Mas o período que inclui a pandemia inverte essa situação. Ou seja, algo que foi muito favorecido por essa globalização, a pandemia, atirou às cordas os efeitos de recuperação de igualdade que se vinham manifestando. O que não deixa de ser uma metáfora estranha dos benefícios/malefícios da globalização.

Para memória futura.

Corrigido: 2008 e não 2018 como inicialmente escrito no 2º parágrafo.

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