(O Nobel de Economia de 2021 foi atribuído como é conhecido a três economistas, David Card a quem cabe 50% do prémio e a Joshua Angrist e Guido Imbens, a quem cabe em conjunto os restantes 50%. Na prática, esse prémio corresponde também ao reconhecimento da obra de um outro notável economista, Alan Krueger, precocemente desaparecido por suicídio e que trabalhou com David Card. O que parece, entretanto, curioso e revelador do alcance e natureza do conhecimento económico é o conjunto de interpretações diversificadas e em conflito que a atribuição do prémio suscitou. É nessa perspetiva que o assunto me interessa, pois é revelador das condições muito particulares e enviesadas em que a disseminação e o reconhecimento do conhecimento económico se processam.)
O sobre-alarido que a divulgação do Nobel Economia 2021 suscitou relativamente a outros anos não se deve a qualquer reconhecimento diferenciado da valia dos três economistas, mas sobretudo ao caráter apimentado (para o establishment das ideias económicas adquiridas e não discutidas) de algumas das conclusões que marcam a obra dos três economistas.
Com base num método de investigação empírica que haveria de fazer corrente no que poderíamos de designar de procura de uma maior cientificidade da investigação económica, David Card e Alan Krueger publicaram em 1994 um artigo revolucionário para os cânones então estabelecidos na economia do trabalho[1]. Através de uma comparação “experimental” com a evidência de um outro território (Pennsylvannia), Card e Krueger analisaram a subida de salário mínimo aplicada em New Jersey e concluíram que essa subida não tinha gerado quebra de emprego. Em New Jersey, compararam ainda restaurantes com salários mais altos e restaurantes com salários mais baixos e concluíram também que não se registava quebra de emprego.
O estrondo que esta investigação empírica provocou foi amplo, irracional e revelador do peso do establishment. O horror dos puristas era manifesto. Afinal, a investigação contrariava o que fora ensinado por gente da mais ilustre e respeitada e nos EUA houve mesmo quem interpretasse a decisão do júri sueco como uma manifestação do socialismo mais despudorado. Leituras mais modernas do que é o mercado de trabalho nos dias de hoje mostram com clareza que a velha conclusão de que o aumento do salário mínimo leva à destruição do emprego não resiste à introdução de um novo pressuposto que é cada mais vez a economia de hoje – haver na procura de trabalho um monopsónio ou pelo menos um conjunto de empresas que dominam claramente aquela procura de trabalho. O sempre perspicaz Noah Smith ilustra com clareza essa possibilidade (link aqui).
Claro que só um idiota chapado e rendido não à ciência mas à propaganda poderá imaginar que do artigo de Card e Krueger decorre necessariamente uma espécie de mandato ideológico cientificamente respaldado – aumentem o salário mínimo. O que o artigo demonstra é que o princípio geral pode não se aplicar e que os modelos teóricos têm de ser confrontados com a investigação empírica mais rigorosa possível. Aliás, o catastrofismo com que parte da direita portuguesa e uma parte dos representantes empresariais acenaram nas primeiras discussões dos aumentos do salário mínimo em Portugal confirmam que a perspetiva de Card e Krueger está certa. Mas o que é revelador do estado deplorável da arte em matéria de disseminação e avaliação do pensamento económico é a afirmação de David Card proferida numa entrevista em 2016 ao Finances & Development do FMI (link aqui): “Essa é uma das razões pela qual não tenho trabalhado mais nesse tópico, porque toda a gente pressupõe que estou a propor uma subida de salário mínimo e que tudo o que eu faça entrará em descrédito”. Ou ainda num registo ainda mais pessoal: “Por isso afastei-me da literatura do salário mínimo por várias razões. Primeiro, custou-me vários amigos. Pessoas que já conhecia há muitos anos, alguns dos quais encontrei no meu primeiro emprego na universidade de Chicago, ficaram furiosos ou desapontados comigo. Pensavam que por termos publicado o nosso trabalho estavam a ser traidores à causa da economia como um todo”. Isto não foi dito por David Card já como Nobel, mas o facto de ter sido dito, historicamente, mostra bem a força dissuasora do mainstream académico em Economia, agressiva por vezes como Card o insinua.
O mesmo poderia ser dito quanto a uma outra investigação realizada sobre o mercado de trabalho de Miami após um surto pronunciado de imigração em que se chega à conclusão de que tal incremento exógeno da força de trabalho não produziu qualquer resultado relevante em termos de mercado de trabalho. A academia sueca reconhece como síntese que a partir dos trabalhos pioneiros de Card foi possível chegar a algumas sínteses que apontam para a possibilidade de muitos grupos nativos poderem beneficiar do afluxo de imigrantes, dos trabalhadores nativos evoluírem para ocupações exigentes em termos de competências de comunicação e que os investimentos tecnológicos se ajustam aos afluxos de imigrantes que também contribui para reduzir os impactos negativos em grupos afetados pela imigração. Recordo-me do peso que os mitos da imigração exerceram no BREXIT britânico. Estamos entendidos.
Mas o curioso é que, embora se compreenda que a investigação temática dos laureados e os resultados a que chegaram tenham impacto e gerado muito incómodo, a importância do Nobel 2021 está muito para além desse caráter temático sugestivo. Alinho com os que se pronunciaram ser o Nobel de 2021 um Nobel metodológico. É uma verdade. Já por repetidas vezes mencionei neste espaço o escárnio e mal dizer que a pretensa “ciência económica” desperta junto da ciência pura e dura, físicos e companhia. A caminhada das ciências sociais para o reconhecimento enquanto ciência é um caminho duro. De quando em vez, a história da ciência económica dá-nos um Keynes, ou seja ao nível da teoria, mas há um outro caminho duro e muito trabalhoso que consiste em aprofundar o rigor da investigação empírica. Este último caminho visa transformar a economia num conjunto de princípios e conclusões sobre o mundo em que vivemos sujeitos a ser contraditados ou reafirmados pela investigação empírica. Vejam a lucidez de David Card numa entrevista ao Federal Reserve Bank of Minneapolis (link aqui): “A Economia como um todo é realmente uma combinação de dois tipos de pessoas: as que têm uma orientação eminentemente prática e as que são mais do tipo dos filósofos matemáticos. Estes últimos atraem mais a atenção. Lidam com as grandes questões a que não se pode responder. Os economistas do trabalho tentam ser mais científicos: olham para predições muito específicas e tentam testá-las o mais cuidadosamente possível. Os filósofos matemáticos ficam muito frustrados com os economistas do trabalho. Vêm com uma teoria geral de largo espectro e nós dizemos-lhes que essas teorias não resistem à evidência”.
A referência aos filósofos matemáticos é simplesmente genial.
É neste último campo que se justifica a interpretação de que o Nobel 2021 é metodológico. Sem possibilidade de entrar profundamente no coração das metodologias de Card, Angrist e Imbens, podemos dizer que estamos no mundo fascinante do ir além da correlação para entrar fundo na causalidade, ou pelo menos tentar avançar nessa direção. Isto com o reconhecimento de que a economia não pode praticar o experimentalismo puro e duro das outras ciências. O que caracteriza o método de Card, Agrist e Imbens (e também do saudoso Alan Krueger) é a utilização de variantes do que modernamente se designa “métodos quase-experimentais, ou noutras designações experiências naturais, mobilizando situações na vida real que podem ser entendidas como similares às experiências totalmente aleatórias. Ou seja algo de bastante distinto das experiências médicas, sem contudo perder cientificidade. Foi algo desse tipo que Card e Krueger utilizaram quando comparam a subida de salário mínimo em New Jersey com outros estados americanos similares em muitas características ao de New Jersey mas que não tinham experimentado qualquer subida de salário mínimo.
Mas será o “quase experimentalismo” resolve integralmente o problema da causalidade? Penso que os próprios laureados, quaisquer que sejam os seus caminhos e têm de facto diferenças entre eles, estão convencidos de que o caminho é penoso e exige capacidade permanente de criticismo rigoroso ao alcance dos pressupostos e dos resultados alcançados. Como Lars P. Syll (link aqui), um crítico acérrimo do experimentalismo em economia afirma, existe sempre um problema que exige rigorosa (e honesta atenção): o que funciona aqui pode não funcionar acolá. Os pressupostos que estão na origem do processamento de dados que conduz à causalidade procurada exigem honestidade e realismo de análise. Creio que neste domínio Card, Angristy e Imbens são gente séria. O que nem sempre acontece. Diria que a probabilidade da desonestidade é tanto mais elevada quanto mais estiver em jogo a defesa por todos os meios do establishment das ideias que não interessa comprometer.
Não me tenho enganado muito com este princípio.
[1] Card, D. and A.B. Krueger (1994). “Minimum wages and employment: A case study of the fast-food industry in New Jersey and Pennsylvania.” American Economic Review, 84: 772-784
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