(Por ausência de uma informação oficial clara e rigorosa,
de responsabilidade do Governo e da entidade reguladora, está a instalar-se um
clima de denúncia avulsa e nem sempre isenta de oportunismo corporativo das
anomalias de um SNS sob pressão, gerando um caldo intragável. Seria
tempo de uma contra-informação, não do tipo agit pro, mas opondo ao
circunstancialismo pontual, ou não, uma medida global do desempenho sob a
referida pressão, que essa é inquestionável …)
Talvez mais por intuição
do que por trabalho sobre indicadores objetivos, tenho para mim que a qualidade
do Sistema Nacional de Saúde (SNS) é, em Portugal, mais que proporcional ao seu nível
de desenvolvimento económico. Claro que tal como outros domínios de atividade
no país, pública ou privada, podemos identificar extremos, do melhor que se faz
entre pares por esse mundo fora até ao pior em termos de desumanidades e vulnerabilidades
de certos grupos de população. Quem passa por um hospital de grande dimensão em
Portugal com olhar atento ao que o rodeia rapidamente identifica esses extremos
e essa dualidade. Mas o conjunto do SNS oferece, ou ofereceu até há bem pouco
tempo, pelo menos até ao resgate de 2011, uma qualidade média que, em meu
entender, está acima do nível de desenvolvimento económico do país.
Esta avaliação pode ser
considerada controversa e até temerária quando se sucedem as denúncias
pontuais, no sentido de aqui e ali, de situações totalmente dissonantes do juízo
que acabo de formular. Mas sem querer ignorar essas evidências que nos fazem
chegar em tempo de horário nobre, não confundo a qualidade do SNS com essas
evidências que um jornalismo pouco rigoroso tende a transformar em estado das
coisas. Para além disso, o SNS é atravessado por comportamentos corporativos e
de classe profissional que me deixam, por vezes, abismado. Nos últimos tempos,
perdi totalmente a confiança, por exemplo, em alguns sindicatos de enfermeiros
e até a Ordem não escapa a esse juízo. Já tivemos exemplos de tomadas de posição
reivindicativas que não hesitam em pintar de negro o que tem outra cor, não necessariamente
risonha e esfusiante, penalizando doentes e provocando danos na confiança que o
SNS deve merecer do cidadão médio.
Há por isso no ar, que o
jornalismo populista e defensor da tese de que a austeridade afinal não
desapareceu ajuda a disseminar, pontualmente cavalgado por alguma oposição em
desespero de causa, um clima de “buzz”,
de ruído, de diz que diz, de rumores, gerando a tal evidência impressiva e “fuzzy”
que dá muito jeito a quem pretende fazer da parte o todo.
O ministro da Saúde tem
vindo lenta mas paulatinamente a deixar-se adormecer por esse “buzz”, abdicando de produzir informação global
credível para contrariar esse populismo impressivo. Não me parece inteligente
subtrair ao cidadão, utente ou doente na categorização do Manuel Sobrinho Simões,
a ideia de que o SNS está sob uma grande pressão e não estou a falar da gripe e
dos surtos virais, sobretudo afetando a função respiratória, que entupiram urgências
sensivelmente a meio do inverno. O cidadão comum não pode partir da ideia de
que o SNS está distendido e sem stress.
As alterações da organização social, nas cidades e no mundo rural, o
envelhecimento progressivo com toda a bateria de patologias que o acompanha e o
fenómeno do isolamento de uma massa significativa de população constituem uma
bomba de relógio do ponto de vista da pressão a que o SNS vai ser submetido. Para
além disso, os bens (produtos de saúde) continuam a revelar um comportamento
dos seus preços relativos em alta relativamente ao preço médio do PIB que
constituirá uma nova forma de pressão sobre o SNS. É sabido que Portugal tem
uma cultura de saúde que empola a procura e o consumo de meios auxiliares de
diagnóstico. Os hospitais privados estão a agravar essa tendência, no âmbito da
população, designadamente ADSE, que conseguem atrair para o seu raio de ação. Não
tenho a certeza que toda a formação médica esteja a ser concebida e ministrada
com a preocupação de desincentivar esse comportamento aditivo da população portuguesa
relativamente a meios auxiliares de diagnóstico.
Sempre que frequento um
hospital privado para consultar o meu médico de família que, reformado do
sistema público e da Faculdade de Medicina, prolongou felizmente a sua
atividade numa instituição privada, interrogo-me se a “minha” procura está ou não
a penalizar o SNS. Ainda hoje, numa tarde de chuva implacável, recorri a esses
serviços com a maior da comodidade, estacionamento gratuito e preço irrisório
ADSE do ato médico. O ambiente é agradável, aparentemente sem pressão, o tempo
de realização de toda a tarefa é extremamente reduzido. Claro que se estivesse
perante uma maleita de urgência mais complicada provavelmente iria bater à
porta de uma urgência hospitalar. E questiono-me: a minha ida à consulta
regular liberta pressão escusada no sistema público ou por essa via estou a
contribuir para a destruição da universalidade do SNS, que é aliás discutível
que ainda exista na prática?
Um SNS sob pressão
daquela que se abate sobre o sistema português gera profissionais excecionais, cujas competências
são geradas num contexto de trabalho irrepetível em qualquer sistema simulado. Mas
também gera vulnerabilidades por vezes letais.
Conviria que os
portugueses se convencessem que as escolhas públicas são incontornáveis, por
muito que os aprendizes de feiticeiros de alguma política se esforcem para
sugerir o contrário. Para mantermos o SNS que temos, com a qualidade média que
apresenta, há opções em outros domínios que não o da saúde que não podem deixar
de cair. Gostaria que o ministro da Saúde fosse mais claro e direto. Sou o
primeiro a desvalorizar o “buzz” que
nos impingem diariamente. Mas é fatal ignorar a pressão e não comunicá-la com
rigor.
Nota final: e onde anda a entidade reguladora?