segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

ECONOMIA, PALAVRAS E MATEMÁTICA




(Em tempos em que a economia como ciência e os modelos que a constroem são questionados face ao seu poder explicativo da realidade em transformação, o formalismo matemático não é necessariamente a carta de alforria que a economia precisa para enfrentar os rigores da ciência. A intuição de Paul Romer faz o seu caminho e outros economistas seguem-lhe as pisadas.

O rigor matemático dos modelos económicos como linguagem de expressão de um pensamento supostamente rigoroso ainda representa um poderoso instrumento de afirmação e validação entre pares. Há quem implicitamente divida os economistas entre eleitos e membros de um clube de terceira categoria, reservando a classificação dos primeiros para os que esgrimem e formalizam o seu pensamento em termos matemáticos. O restante grupo representaria a ralé dos que se deixam contaminar pela deturpação política. Esta divisão tem muita força e não será rapidamente banida dos mecanismos de reprodução do conhecimento, através de uma coisa que não é senão o controlo do poder que a orientação de teses de doutoramento e o acesso à publicação em revistas de ranking top permitem, frequentemente sem qualquer contra-escrutínio.

Nos últimos tempos, houve quem, sem renunciar ao rigor matemático, questionasse a utilização abusiva da matemática como veículo de validação. Já não estou a referir-me aos inúmeros casos de matemáticos sem a mínima sensibilidade ao fenómeno económico, que escrevem para uma minoria que pode entender tal apuro de formalização. Quanto a estes casos, ou a deriva se chama isolamento ou quando esses pseudo-economistas têm de falar em público a contradição está no facto de terem de utilizar palavras e não símbolos ou fórmulas para se fazer entender.

Este blogue foi o primeiro a divulgar em Portugal o conceito de “mathiness” convocado por Paul Romer para zurzir nos que utilizando símbolos, fórmulas e modelos matemáticos, de maior ou menor formalização, são pouco rigorosos em escolher as palavras certas e rigorosas para argumentar com tais símbolos, fórmulas ou modelos. Não foi por acaso que tenha sido um economista que já há algum tempo desistiu de uma carreira académica pura e dura a trazer para o debate crítica tão virulenta da pretensa validação matemática.

Timothy Taylor, editor do incontornável Journal of Economic Perspetives e autor do blogue Conversable Economist, recupera a audácia de Romer comparando desenvolvimentos do seu argumento com uma convocação surpreendente do velho Alfred Marshall (link aqui)

Tim Taylor recupera o argumento original de Romer:

O estilo a que chamo mathiness permite que a política académica se mascare de ciência. Tal como a teoria matemática, a mathiness usa uma mistura de palavras e de símbolos, mas em vez de estabelecer relações rigorosas, deixa um amplo espaço para derrapagem entre afirmações em termos de linguagem natural e formal e entre afirmações com conteúdo teórico e empírico. (...) A mathiness pode representar um dano permanente porque é extremamente custoso distinguir a mathiness da teoria matemática”.

Depois, Tim Taylor recupera as quatro regras enunciadas por Romer para uma boa distinção do trigo do joio:
1.      O teste consiste em discernir se a matemática nos aproxima ou nos afasta da clareza e da precisão. Um escritor pode utilizar seja as palavras da linguagem diária ou os símbolos da matemática para produzir afirmações que sejam claras e precisas; ou opacas e vagas.
2.      O problema mais profundo é a intenção, não a capacidade ou a competência.
3.      Os escritores que desejam fazer previsões usam as palavras e a matemática para serem claros e precisos. Os escritores que querem lançar desculpas usam as palavras e a matemática para serem opacos e vagos.
4.      Comparada com as palavras a linguagem matemática e de código tende a ser mais tanto mais precisa como mais opaca.”

Finalmente, a citação de Marshall é uma delícia, que só um grande economista, à moda antiga, poderia proporcionar:

“Mas eu sei que tive um sentimento crescente nos meus últimos anos de trabalho sobre este assunto que um bom teorema matemático a tratar de hipóteses económicas só muito dificilmente será boa economia; e fui cada vez mais encaminhado para regras: (1) Utilize a matemática como uma linguagem abreviada; mais do que como um motor de pesquisa, (2) Mantenha-se fiel até ter concluído o seu trabalho. (3) Traduza para inglês. (4) Depois ilustre com exemplos que sejam importantes na vida real. (5) Deite fogo à matemática. Se não for capaz de concretizar a regra 4. queime a regra 3. Foi o que muitas vezes fiz.”

A beleza profunda da simplicidade demolidora. Romer e Marshall, quem diria, alinhados na mesma onda de rigor e honestidade intelectual.

Estou em crer que a mais recente tentativa de dar sentido económico à política de descida de impostos de Donald Trump materializada na posição conjunta de um conjunto de economistas-estrela de inspiração republicana não resiste a estas regras simples, na formulação de Romer ou de Marshall.

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