sábado, 31 de dezembro de 2022

BOTA FORA!

 


(Nos meus tempos de miúdo, quando passava o fim do Ano seja na minha casa em S. Mamede de Infesta, seja na casa dos meus avós paternos em Matosinhos, mesmo em frente ao que se chamava a Casa dos Pescadores, não muito distante da igreja matriz, recordo-me de uns ruídos estranhos que vinham da rua, que tudo indicava seriam pratos que se partiam ou se chocavam. Em alguns anos, a esse ruído juntavam-se alguns sons de foguetes, sirenes ou roncos de navios que estariam pelo Porto de Leixões a comemorar à sua maneira a passagem do ano. Diziam-me então que era a tradição de deitar fora o ano (dai o bota fora), que na verdade nunca entendi lá muito bem, pois nem sempre o ano que sai foi incómodo ou infeliz. Mas o ato ruidoso também podia ser interpretado como exemplo de franco otimismo no ano que vai entrar e daí a necessidade de despachar o velho. À hora a que escrevo, ainda longe das badaladas, sou surpreendido por uns sons estranhos que tanto podem ser de tiros para o ar, ou de pequenos artefactos que estoiram, vindos do bairro social que avisto do meu escritório e repouso de trabalho. Talvez este ano seja para muita gente motivo para exteriorizar de modo expressivo o “deitar fora”, mas também pode ser simplesmente uma embriaguez precoce face à distância que nos separa das badaladas.

 

Encontrei na newsletter do New York Times dirigida aos assinantes digitais uma peça deliciosa assinada pela jornalista Melissa Kirsch sobre a tradição de enviar ou de redigir desejos para o próximo ano, podendo variar o mecanismo para os entregar ao destinatário. Uma via é na própria reunião familiar ou com amigos de fim de ano convidar cada um a redigir um desejo e partilhá-lo com um sorteio.

Para me ajudar a compor este post como mensagem de Feliz 2023 a todos os que, com insónias ou sem elas, se dão à maçada de frequentarem este espaço, retive este desejo emitido por um podcast que desconheço e que reza assim:

“Ten Percent Happier” podcast: Stop and recognize happy moments when you’re in the middle of them. Literally stop and say out loud, “This is a happy time.” It’s a way to ground yourself in the joyful parts of your life. We do this with moments of trauma and crisis all the time.

Em tradução mais ou menos livre:

“Podcast 10% mais feliz: Pare e reconheça os momentos felizes quando está no meio dos mesmos. Pare literalmente e diga em voz alta: “É um tempo feliz”. É uma maneira de se apoiar nas partes mais alegres da sua vida. Devemos fazer isto permanentemente nos momentos de trauma e de crise.”

E com esta mensagem simples desejo a todos um Feliz 2023 e para o meu colega de blogue o desejo que partilhe com alegria o momento esperançoso para os brasileiros que acontecerá com a tomada de posse de Lula. Os brasileiros bem merecem que desta vez a coisa corra melhor.

 

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

À BOLEIA DA SUSANA PERALTA

 


(Em tempos de burguesia do hipersalário, como brilhantemente o António Guerreiro a ela se referia na sua crónica no Público, estou em fase, dirão alguns, lamecha, de me comover com escritos e matérias como aquela que a nossa intrépida Susana Peralta trouxe para a sua crónica também no Público sobre a morte da Senhora da Mala de Cartão, Linda de Suza. Não tenho como a Susana qualquer tia ou familiar próximo que tenham sido protagonistas da emigração para França, mas da primeira vez que estive em Paris, mesmo no dealbar da democracia em Portugal, fiquei praticamente uma semana em casa de elementos próximos da família da minha Mulher e fiquei a compreender melhor não a situação nos bidonvilles (a família onde estive residia em aposentos dedicados à figura da concierge perto do Parque dos Príncipes, agora terra do PSG, portanto numa zona rica de Paris), mas os riscos de toda aquela projeção para fora do País, fugindo à pobreza e construindo novas trajetórias de vida.

 

De facto, quando ainda hoje ouço a Linda de Suza cantar (ver vídeo) e sobretudo quando ela passa, na parte final da canção, do português ao francês, a verdade é que todo eu estremeço. Nunca percebi bem porquê, foi sempre assim e não o resultado da adocicada evolução que os 70 nos trazem.

Na crónica de Susana Peralta fala-se da “banda sonora da vida de milhões de pessoas em França e Portugal” e não existe melhor expressão para o que se me atravessa no espírito quando estremeço com aquela canção. No seguimento dessa entrada, muita gente enriqueceu explorando o filão, mas em meu entender nunca mais apareceu coisa mais genuína do que a valise de Linda de Suza. Muitas canções foram, entretanto, compostas para cavalgar esse mercado da emigração, algumas delas explorando os aspetos de uma cultura que gostaríamos de ver banidas pela modernidade, mas nestas coisas gosto sempre de voltar às origens e a Linda foi quem melhor expressou o sentido de identidade de quem vem de fora, não rejeita integrar-se, mas que em grande parte espera um dia reencontrar-se com a terra que a impulsionou para fora.

Nos tempos mais recentes, em função de nova evidência, tem-se insistido que a emigração mais recente é cada vez mais qualificada e, por isso, com efeitos mais perniciosos para o País porque transfere para o exterior os efeitos da inequívoca melhoria de qualificação observada nos novos fluxos de jovens que encaminhamos para o mercado de trabalho, seja a partir dos percursos regulares dos cursos científico-humanísticos, seja a partir dos diplomados das vias de dupla certificação como os Cursos Profissionais. Por vezes, há nesse argumento algo de insolente e de desprestigiante para a emigração de outros tempos. Era gente pobre e desqualificada logo o vazio que deixaram na sociedade portuguesa não seria tão grave como o que resulta agora da fuga dos mais qualificados. Este argumento é de uma tremenda injustiça e má compreensão do que foi a emigração dos anos 50 e 60. Primeiro, o nível médio de qualificação da população ativa portuguesa era baixíssimo. Segundo, o contexto em que se resolvia a velha questão “devo ir ou ficar” (cantada noutros tons pelos Clash que diziam “Should I Stay or Should I Go”) não tem comparação possível com o mundo da comunicação global de hoje, estando então limitada à velha “carta de chamada” que os mais novos hoje nem saberão o que era. Finalmente, porque a coragem que era necessária nesses termos para dar o salto, ultrapassar as barreiras da língua e reencontrar a pobreza nos primeiros anos de implantação, é totalmente escamoteada quando nos referimos aos “horrores” da fuga de talentos. O vazio que ficou resultante da saída desses corajosos nunca foi estimado e medido no seu significado mais profundo. E, além disso, o movimento de subida de salários que a emigração então provocou na origem, induzindo alguma modernização agrícola nos territórios mais rurais, foi uma mudança inconsequente e limitada a um curto período. Depois o ambiente de continuada desqualificação da população ativa haveria de encontrar na indústria dos baixos salários e nos serviços as suas fontes de escoamento, prolongando no tempo a inércia da relação baixa produtividade-baixos salários.

Até as coisas virarem de vez, a mala de cartão ficará como um ícone, um verdadeiro artefacto desses tempos. E eu continuarei a estremecer com a parte final da canção.

 

 

DA INSTALAÇÃO DE LULA AO SOL CARIOCA

(Cláudio Mor, http://folha.uol.com.br) 

Duas razões de inquestionável mérito me levam a fazer deste o último post pessoal do ano. A primeira tem a ver com a oportunidade imperdível de assistir in loco (Brasília) à terceira instalação de Lula na Presidência do Brasil; um gosto que a desgraça do bolsonarismo inequivocamente acentuou, embora menos convicto do que aquele que, em modo bem mais popular e em incomparáveis festejos de rua, na Paulista e adjacentes, partilhei aquando da sua estrondosa vitória de 2002 (a que já aqui aludi em post antigo). A segunda decorre de uma motivação racional e logística, já que a travessia do Atlântico tem de começar no dia de hoje, Ao que acresce o facto de a mesma ser longa, o que seguramente justifica que do lado de lá se possa depois ficar, mais privada e anonimamente, a gozar um cheirinho do Verão e das belezas da vida carioca. Certo de que, assim, as minhas eventuais e subsequentes faltas neste espaço estarão antecipadamente justificadas, desejo a todos uma excelente passagem para 2023 e um ano tão bom quanto as restrições do entorno o permitam.

ADEUS A 2022

 
(Nicolas Vadot, http://www.levif.be)


Estou claramente com Helena Garrido quando se refere ao ano que finda como “o ano em que o mundo mudou”. Porque estou realmente convencido que os anais da História do Século XXI assim rezarão quando a poeira assentar e o essencial, obviamente de bom (pouca coisa, convenhamos) e de mau (a infeliz dominante), vier definitivamente ao de cima por ganho de perspetiva temporal. Se a uma escolha houvesse lugar, mais do que a corajosa resistência do povo ucraniano à invasão de Putin teríamos de salientar o modo como esta já determinou uma irreversível nova situação geopolítica à escala europeia e internacional, a cuja gestação apenas começamos a assistir mas cujos limites estamos ainda longe de conseguir percecionar na sua plenitude ― embora passíveis de serem perscrutados em sucessivas ameaças nucleares, nas estruturais alterações das políticas de defesa de vários países (Suécia e Finlândia na NATO, Alemanha e Japão em militarização), nas dinâmicas repressivas e antidemocráticas em diverso curso e grau de maturação (da Rússia à China, da Turquia à Europa Central e Oriental, do Médio Oriente a Israel) ou nas medievais explosões anticivilizacionais que vimos observando no Irão e no Afeganistão ―, já para não referir os riscos associados às loucuras norte-coreanas, a sempre esquecida África (onde tanto de desconhecido ocorre e tanto potencial sobreleva), as tensões na generalidade da América Latina ou a duvidosamente duradoura acalmia por que passa a política externa americana sob a égide de Biden. Sim, 2022 pode ter sido o ano em que o mundo mudou.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

PEDRO NUNO, FORA OU DENTRO?

(O Cartoon de António, https://expresso.pt

O inevitável sucedeu ontem à noite, já tarde: Pedro Nuno Santos (PNS) demite-se e abandona o Governo. A minha reação foi de alguma naturalidade mas também de bastante estranheza pelo facto de o ministro das Infraestruturas ter conseguido encontrar uma forma de sair airosamente de uma situação insustentável e em que a sua responsabilidade objetiva é enorme (nenhuma tutela de uma empresa pública, ademais com o currículo da TAP, pode ser exercida tão desligadamente, como se tornou manifesto estar a acontecer). Desilusão, pois, pela esfarrapada fuga em frente de um PNS que eu considerava ser o melhor de todos os putativos candidatos à sucessão de António Costa; pela frontalidade e transparência, pela coragem e determinação, pela preparação e convicção ideológica. Não obstante, e apesar de tudo, ainda lhe sobram alguns anos para consolidar a sua força no Partido Socialista e, desafio maior, a sua credibilidade (feita de uma maior moderação e de um menor repentismo) no País. Assunto a ir seguindo. 

Quanto ao caso Alexandra Reis (AR), e deixando de lado outros aspetos que vão tendendo a emergir (como os das compras de aviões a preços acima do mercado ontem sugeridos por José Gomes Ferreira), ficam agora em aberto as restantes e bem necessárias explicações de processos e assunções de responsabilidade. O ministro das Finanças tem de vir a terreiro dizer aos portugueses porque escolheu para secretária de Estado do Tesouro alguém como AR, ou melhor, com o currículo recente da dita (saída da TAP com choruda indemnização e presidência da NAV) e sem qualquer especial qualificação para a função em causa. À CEO da TAP, protagonista de várias trapalhadas ao longo deste seu ano e meio em exercício, só lhe resta evidenciar um mínimo de derradeira decência e regressar a Paris (sob pena de tal ter de acontecer por imposição do futuro responsável ministerial). De António Costa esperar-se-á com escassa crença o mais duvidoso e complexo, dadas as suas caraterísticas pessoais e dado o seu modo de estar na política: um novo elã, ou seja, uma análise séria, consciente e participada da situação do País e das condições necessárias para a sua transformação e uma revisão profunda da estrutura do seu Governo e do mérito, competência e experiência (que não estritamente partidários) dos cidadãos a convidar para o respetivo desempenho no mesmo ― a alternativa é a continuidade de um “pântano” não só insuportável como principalmente arrasador de um qualquer futuro decente para a maioria dos portugueses, jovens e idosos, portadores de vulnerabilidades e diferenciadamente preparados, sujeitos à indesejável atratividade de novas correntes de emigração e forjadores de iniciativa.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

E LÁ SE FOI A ALEXANDRA DA SOBRANCELHA EMPINADA …

 


(Desta vez a minha intuição estava certa. A demissão da Secretária de Estado do Tesouro era uma crónica anunciada, uma espécie de corta-fogo para evitar males piores, mas fica a estranha sensação de que isto não fica por aqui, porque a nebulosidade é espessa e os radares podem não estar a funcionar, logo problemas na navegação, neste caso política. A TAP é, tudo indica, um castelo de cartas com fragilidades por todos os cantos da montagem e abre-se um campo fértil para a exploração de mistérios para todos os gostos e feitios. O inenarrável José Gomes Ferreira, há nomes que não deveriam ser beliscados e este não merecia ser conspurcado, lançou na SIC há pouco as hostilidades, associando a saída da administração da TAP de Alexandra Reis não a uma simples mudança de acionistas, mas à mal contada história das compras em leasing de aviões, supostamente diz ele, 20% acima do valor de mercado de operações dessa natureza. Como nós gostamos de chafurdar na lama e quão grande é a tentação para a criar!

 

A saída de Alexandra Reis determinada por Fernando Medina é uma espécie de mal menor inevitável, mas é também uma decisão defensiva do próprio Ministro das Finanças, porque o assunto queima e queima bem e um putativo e indicado sucessor de Costa não pode ser despachado em fogo lento.

Em contrapartida, bem chamuscado e já a passar o ponto em que o assado se torna não comestível, está o ministro que tutela a TAP, Pedro Nuno Santos, literalmente a apanhar bonés ou bolas fora em toda esta operação. Sabe-se lá se sabia ou não da controversa operação de saída da empresa em situação económica difícil, mas tanto se nos dá se sabia ou não. Em qualquer caso, a situação não se recomenda, sobretudo porque foi ainda no âmbito da sua tutela que a Alexandra de sobrancelha empinada foi recrutada para uma empresa também por si politicamente tutelada. Tenho para mim que os tempos da impetuosidade na política já foram e que continuar a admitir que o Ministro agora sob todas as interrogações poderá ser primeiro-Ministro deste País padece de um romantismo doentio que confundir com a Esquerda e seus valores modernos é pior do que ingenuidade saudosista.

Deste folhetim, que estou seguro terá novos e escaldantes episódios, desnudando personagens e situações, retiro uma interpretação não menos preocupante, que coloco segundo uma dicotomia para mais fácil compreensão: ou o raio (ou diâmetro?) da escolha de governantes está a estreitar-se para lá do admissível, o que explicaria a redução dos critérios de exigência, ou então essa escolha processa-se com a mais impreparada incompetência. Já não vou falar da degenerescência dos níveis da ética política de quem é convidado e aceita sem um auto-escrutínio rigoroso da vida mais recente – se meteu a mão ao prato em situação menos clara, se lesou o fisco com sofisticação de planeamento fiscal ou simplesmente arriscando para lá dos limites aceitáveis, se se insinuou indevidamente junto de alguém ou assediou alguma alma ingénua e pura, se comercializou influências ou coisas do género, só para falar das mais importantes.

Proponho mesmo que, sob a iniciativa de Carlos César, o PS conceba um breviário para auto-escrutínio, sem necessidade do uso do silício ou colocação do avental, destinado a ser utilizado rigorosamente depois de receber um convite para o Governo e antes de dar a resposta definitiva. Ficaríamos todos mais descansados e o primeiro-Ministro mais confiante.

E depois não digam que este blogue não fornece conselhos práticos de qualidade.

Nota final:

Não é para embirrar com o ministro Pedro Nuno Santos, mas na justa medida em que tutela a CP, devo dizer que o Alfa ultrapassa todos os limites da instabilidade. Eu sei que estou mais velho e por isso o equilíbrio tende a ressentir-se, mas ir, em plena viagem e à velocidade não estonteante a que o comboio circula, ao bar ou ao quarto banho é um exercício preocupante e perigoso. Dispenso-me de explicitar os riscos da ida à casa de banho e ainda não me aconteceu cair no colo de alguma brasa na coxia. A combinação entre o material circulante a precisar de novo de manutenção e o estado da infraestrutura explica em meu modesto entender a instabilidade. Bem mais calma a viagem no renovado suburbano que frequentei há dias de Aveiro para o Porto, o que conta a favor de PNS.