sexta-feira, 30 de setembro de 2022

LIZ KAMIKWASI

Liz Truss nem se deixou aquecer o lugar para provocar um tumulto nos mercados que conduziu a um verdadeiro resgate da economia britânica. No caso, uma brincadeira de crianças orçamental (a tal trickle-down economics, cujo epicentro está numa imponderada baixa de impostos para as classes mais ricas) que custou ao país, através do seu banco central, a bagatela de 65 mil milhões. Com um ministro das Finanças (Kwasi Kwarteng) que não dá ares de ser especialmente seguro, antes alguém que assumiu o lugar para executar uma missão ideológica e pré-definida pela chefe, Truss parece alheia ao desastre que provocou (a incompetência é naturalmente inconsciente...) e preparar-se assim para conduzir o Reino Unido, mais rapidamente do que se esperava, para um desastre sem precedentes.


(Chris Riddell, http://www.guardian.co.uk)


(Jeremy Banks, “Banx”, http://www.ft.com)

O GOVERNO VAI BEM, OBRIGADO!

(excerto de Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

Quem teve a infeliz ideia de assistir ao debate parlamentar de ontem pôde constatar três coisas cristalinas: a confirmada ignorância do primeiro-ministro em matérias económicas, a pobreza confrangedora da larga maioria das intervenções e dos interventores em presença e a baralhação e disfarçada desorientação em que se encontra António Costa.

 

Sobre a primeira dimensão, tivemos uma especial evidência (para os que sabem ler nas folhas de chá) na troca de galhardetes havida entre o chefe do governo e o deputado liberal Carlos Guimarães Pinto acerca da relação entre os aumentos salariais propostos pelo executivo (reais ou nominais, perguntava o deputado sem obter uma resposta que não fosse a de uma arrogante espécie de antes pelo contrário!) e as suas implicações em termos do objetivo proclamado de aumentar em três pontos percentuais a parte dos salários no produto.

 

Sobre a segunda, registo particularmente a desesperante inépcia política do líder parlamentar do PSD, a já inaudível cassette do PCP e a incompetente e chocante prestação dos homens do Chega, tudo acompanhado por um primeiro-ministro mais interessado em jogos florais e em mostrar a sua indiscutível superioridade retórica e argumentativa (mesmo que completamente ao lado do que possa estar em discussão) do que em esclarecer os portugueses sobre os assuntos em questão.

 

Sobre a terceira, é paradigmático o exemplo a que hoje alude João Vieira Pereira na sua coluna do “Expresso” (na essência, a tolice ou chico-espertice, consoante a perspetiva que queiram escolher, de começar por propor a abertura de uma negociação das atualizações salariais na função pública com base em 2% para seguidamente levar uma proposta à concertação salarial assente num aumento dos salários privados em 4,8%) mas as suas manifestações já vêm de longe, como passo a explicar.

(Construção própria a partir de https://www.ine.pt)

 

Por um lado, e no tocante à caraterização da inflação (aqui na triste companhia de um Centeno então alinhado com o BCE e de um ministro das Finanças sempre pronto a secundar a palavra do chefe) ― nem de propósito, a estimativa rápida do INE para setembro continua a apontar para um descontrolado upa-upa. Por outro lado, e no tocante à indicação de uma meta política em que vai insistindo sem rede desde abril (fazer convergir a parte dos salários no PIB para a média europeia, ou seja, de 45% para 48%, nos próximos anos ― veja-se imediatamente abaixo o modo como Costa apresentou o tema num tweet) quando as estatísticas que a terão ajudado a definir só podem ter sido objeto de revisão dada a improcedência de tal meta por já atingida em 2021 (senão, veja-se o gráfico mais abaixo, construído a partir dos dados do Eurostat sobre o tópico em causa). E deixo de lado, porque isso já me irrita profundamente, a eterna questão da TAP e, agora, com a desfaçatez de um reconhecimento, tão irresponsável quanto gratuito, de que podemos perder dinheiro com as autênticas variações de humores de que a dita empresa foi alvo por parte de sucessivos governos mas também, e largamente, dos comandados por Costa. 



(Construção própria a partir de https://ec.europa.eu/eurostat)

UMA SIMPLES PERGUNTA

 


(Como perguntar não ofende, gostaria que os mais fervorosos adeptos em Portugal do independentismo catalão, que é diferente como tenho vindo a explicar do catalanismo e da identidade catalã, se pronunciassem sobre a degradação óbvia no interior desse independentismo e como é que apreciam a mais do que anunciada revelação de que o Junts per Catalunya é um recipiente sem conteúdo e vazio de ideias. Caladinhos que nem ratos, será que já compreenderam que o independentismo está hoje refém de egos incomensuráveis, que não têm nada que acrescentar ao debate sobre os destinos da Catalunha no mundo e na Espanha de hoje? E que no meio de tanta tralha vazia de ideias, ocultada pelo ego independentista desmedido, o atual líder da Generalitat, Pere Aragonès, acaba por se transformar num líder que merece atenção e compreensão para o lio em que meteram a Catalunha?)

Sempre fui claro nesta matéria. No independentismo catalão, só há uma força política digna de confiança e com alguma coerência histórica, a Esquerra Republicana. O Junts per Catalunya de Puigdemont (personagem mais mediática) e Laura Borràs (presidente do Partido) é uma espécie de invenção da história, emergido de sucessivas desagregações de outros partidos, sem uma ideia estratégica que se lhe conheça, apoiado em algum mediatismo do seu líder que capitalizou a sua fuga para países que o defenderam da extradição. A CUP é o radicalismo que nunca teve coragem para seguir as pisadas do radicalismo basco, assina por vezes algumas tropelias de ação violenta de rua, mas não será seguramente com o seu conteúdo que o independentismo poderá singrar.

Uma base política com esta configuração teria obviamente que dar para o torto e assim tem acontecido. O Junts de Puigdemont e Borràs (Quim Torra, ex-presidente da Generalitat tem estado longe do foco da atenção pública) tem feito tudo para encostar à parede o seu parceiro de governação na Generalitat, esgotando um arsenal de intrigas políticas e escaramuças de recorte institucional diversificado. A Diada tem tido uma organização cada vez mais difícil e diminuiu bastante de intensidade e massa de presença na rua. A tensão subiu tanto nos últimos tempos que o presidente da Generalitat Aragonès se viu forçado a demitir o vice-Presidente que representava o Junts. Obviamente que, no seio de tanto ego assanhado e sedento de projeção mediática abraçando o independentismo, os verdadeiros intérpretes do catalanismo e da identidade económica e cultural da Catalunha estão obviamente fora da política, cansados de tanta falta de categoria e consistência. Imagino que a saída possível para este pântano em que a Catalunha está mergulhada só poderá passar pelo reforço político da Esquerra e o afundamento do Junts para ser possível uma base de negociação política credível com o governo de Madrid, qualquer que ele seja.

Ora tudo isto se tem passado com o mais completo mutismo dos analistas de serviço mais próximos do independentismo catalão como Daniel Oliveira ou mesmo Pacheco Pereira que tantas vezes falou da amizade pessoal com Quim Torra.

Estou curioso sobre o que pensam desta egolatria com que o independentismo catalão tragicamente tem vindo a confundir-se.

 

UMA NOTA SOBRE O ESTADO DA EDUCAÇÃO NO MUNDO

(Anne Dèrenne, https://en.unesco.org) 

Acabo o mês com um alerta não especialmente original, para o que recorro a um texto importante do “Financial Times” sobre o estado da educação no mundo e ponho em evidência a consabida permanência de profundas desigualdades neste nosso mundo. No caso, com respeito a um tópico cuja importância simbólica é absolutamente central para que se perspetivem mais ou menos risonhas expectativas de futuro.

 

Os gráficos que escolhi (ver abaixo) são claramente falantes e dizem o essencial: (i) o primeiro mostra que a percentagem de alunos que completam o ensino secundário, apesar de revelar um notório e generalizado crescimento nas décadas recentes, permanece incrivelmente modesta nos chamados “países de rendimento baixo” (com a média a ainda se situar em torno dos 30%, bem longe das metas de desenvolvimento sustentável das instituições internacionais de desenvolvimento); (ii) o segundo mostra que os significativos esforços que têm sido levados a cabo no sentido de aumentar a frequência escolar das crianças não são suficientemente acompanhados por melhorias na aprendizagem (sobretudo literacia básica em crianças de 10 anos); (iii) o terceiro aprofunda o anterior ao explicitar as gritantes diferenças existentes entre os países das várias regiões do mundo nessa mesma matéria, com a Zâmbia, o Laos e o Iémen a surgirem como os “campeões” de uma chocantemente disseminada learning poverty, a qual também se observa em graus sucessivamente menores em muitas outras realidades; de sublinhar, ainda, que, enquanto a China já conseguiu descer a incidência do fenómeno para 18% (ainda bem longe dos asiáticos mais bem colocados ― Singapura, Japão e Coreia do Sul ―, da maioria dos países europeus, incluindo Portugal, e dos EUA e Canadá), a África do Sul, a Índia e o Brasil destacam-se no seio dos emergentes mais notáveis com valores entre 47% e 79%.

 

Embora sem nada que surpreenda especialmente, os dados em presença dão que pensar para além de quaisquer romantismos ou lirismos. Todos diferentes, todos iguais?


(a partir de https://www.ft.com)

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

REFLEXÕES “PENDULARES” COM A GUERRA COMO PANO DE FUNDO

                                                                             


(Tinha quase perdidas na memória, ou pelo menos enferrujadas, as rotinas da ligação Porto-Lisboa-Porto que tantas vezes concretizei, quase sempre com o trabalho à perna. Em tributo a essa rotina, ensaio algumas reflexões a que chamo “pendulares”, não apenas porque manejadas no Alfa Pendular, mas sobretudo porque a viagem é cada vez mais oscilante, sinal que algo não está bem, seja na infraestrutura, seja nas composições e viajo em primeira classe, tirando partido do desconto de 50% para “velhinhos”. Curiosamente, tudo isto se passa numa semana em que de novo nos é prometida a alta velocidade, prometendo uma hora e quinze minutos na versão acabada do projeto e duas horas e picos na versão intermédia. Confesso que começo a não ter pachorra para este tipo de apresentações do tipo desta vez é que vai, já que com 73 anos já passei por várias, cada qual a mais eloquente e entusiasmante e o confronto com a dura realidade permanece. Quando no dealbar de abril de 1974, este vosso Amigo fazia a sua instrução militar em Lisboa, o Foguete da altura que me levava e trazia fazia a ligação praticamente com a mesma duração da que me vai hoje ser proporcionada. Ora estamos a falar de algo que acontecia há praticamente cinquenta anos. Apetece dizer que o mistério de tanto dinheiro derretido sem que o indicador crucial, o tempo de viagem, se tivesse alterado, apesar da melhoria de qualidade das composições, é um enigma que para ser resolvido nos traria provavelmente motivos suficientes para a depressão nacional.)

Em busca de reflexões que embalem o tempo da viagem, hesitei entre a pelintrice dos pequenos dramas dos nossos ministros, e há todo um manual que me apetecia escrever sobre que condições pessoais evitar para ser Ministro em Portugal, e elevar um pouco o nível, refletindo sobre o que o contexto internacional nos tem reservado.

Na pelintrice dos pequenos dramas, temos tido uma vasta panóplia de situações. Num quadro geral em que se pressente que cada ministério guarda religiosamente a informação e não a partilha voluntariamente com os outros Ministros e Ministérios (sim ainda não estamos na fase das facadas nas costas), temos tido diversidade que baste para nos entreter. É a Ministra que tem o Marido empresário (o país precisa deles dirá a Senhora) e que concorre a fundos europeus sobre os quais tem tutela (obviamente que ninguém é estúpido para pensar que a Senhora participa como analista de mérito dos projetos. É o Ministro tão elogiado quando esteve do lado do pensamento estratégico e tão falado quando se passou para o lado da decisão que puxa dos galões e diz que costuma ter razão antes do tempo (finalmente descobri o racional de António Costa para o ter convidado e abdicado de um outro Ministro já rodado na concertação empresarial). É o Ministro generalizadamente bem recebido pelo sistema de atores do SNS que tem matrimónio com uma bastonária de uma área que se relaciona com o Ministério e lá entrámos nós pelo mundo obscuro das incompatibilidades. O rol poderia continuar e daí a minha obsessão por escrever um manual para pessoas impuras, homens e mulheres, avaliando das suas chances para aspirar a ser Ministro ou Ministra neste país plantado na periferia da Europa.

Elevando o nível, penso sobre o que a invasão da Ucrânia nos tem trazido, sobretudo depois da contraofensiva ucraniana e da mobilização forçada promovida pelo regime de Putin, a principal machadada na sua estapafúrdia tese da operação especial de desnazificação. Toda a campanha de ocultação de uma invasão e do mais declarado ato de guerra dos últimos tempos caiu por terra com a necessidade de explicitar esta mobilização. E percebemos também várias coisas. Percebemos por exemplo que não há machado que sustenha as raízes profundas do descontentamento. E que abunda coragem por aquelas paragens colocando-nos de sobreaviso sobre as complexas relações entre Putin e os Russos, que por vezes ignoramos na voraz tentativa de anular o Autocrata. Percebemos também que o Regime é extremamente lento no seu processo de decisão. Entre a decisão da mobilização alargada e a saída descontrolada de uma massa imensa de russos para a Finlândia e para a Geórgia, principalmente, demorou uma eternidade até a repressão se fazer sentir com a insidiosa localização de postos de mobilização nas principais fronteiras do êxodo. Esta lentidão pode explicar-se por várias razões, todas elas desfavoráveis ao Autocrata. A burocracia está lenta ou anacrónica ou os descontentes de dentro fizeram tudo para prolongar no tempo a válvula de saída. Há ainda toda a série de mensagens telefónicas e de outros tipos de comunicação que têm sido divulgadas refletindo diversas formas de descontentamento sobre o que está a passar-se. E como seria de prever, conhecendo minimamente o inferno étnico em que a Federação Russa está construída, a mobilização forçada vai ser uma forma velada de limpeza étnica, remetendo para a frente de batalha gente das Repúblicas e dos Oblasts mais incómodos para a pureza que Putin aspira reconstituir da alma russa.

Há pouco tempo dei-me ao cuidado de perceber um pouco melhor a composição da Federação Russa em termos de Repúblicas e oblasts do ponto de vista da sua diversidade geográfica e étnico-religiosa. O que vi foi um universo total de amplitude e diversidade tais para o qual gostaria de perceber que modelo de democracia pensa o Ocidente ser possível instalar por aquelas paragens.

Na creio que vã tentativa de compreender melhor o que se vai passando por aquelas paragens, recordei algumas leituras de outros tempos (tinha à mão pelo menos dois volumes da grande trilogia de E.H. Carr sobre a revolução bolchevique) sobre a atribulada época do pós-Revolução de 1917 e que conduziu, entre outras coisas, a um humilhante tratado entre os Bolcheviques e os Alemães, o chamado tratado de Brest-Litvosk assinado em 1918 e que revelava já um movimento bolchevique em claro recuo. E recordei uma coisa que não é muitas vezes invocado. Os líderes intelectuais do movimento bolchevique, sobretudo Lenine e Trotsky, tinham na altura a noção de que uma revolução operária lhes tinha caído nas mãos mas no país errado. Em que sentido? No sentido de que a Rússia de então era uma nação atrasada do ponto de vista do desenvolvimento das forças produtivas. Daí o seu interesse nos movimentos revolucionários então instalados em países como a Alemanha, onde o nível de desenvolvimento das forças produtivas estava mais próximo do que eles pensavam ser as condições ideais para a Revolução. A história mostraria, entretanto, tragicamente, que os desenvolvimentos contraditórios na Alemanha levariam a alianças impensáveis e aí sim ao advento do nazismo. Aliás, depois de terem falhado as emergências revolucionárias principalmente na Alemanha, esse período colocou a revolução bolchevique numa contradição insanável: por um lado, regressada ao campo interno da União Soviética, então ainda não URSS, a revolução era diplomaticamente obrigada a negociar e a concertar com os países que tinham esmagado a pretensão de alargar a Internacional.

Reflito sobre isto, enquanto o Alfa acumula atraso, porque dá a clara impressão que Putin salta deliberadamente a história, ignorando deliberadamente todo o período bolchevique e toda a cedência de autonomia a um conjunto alargadíssimo de Repúblicas que os líderes de então se viram forçados a acomodar para “salvar” a anomalia que lhes tinha caído nas mãos, essencialmente pela debilidade do regime Czariano.

Putin está na defensiva em claro recuo da mirabolante estratégia que desenhara. Isso não quer dizer que a sua derrota esteja para breve. Até lá, talvez fosse bom pensar que raio de modelo democrático pode ser ensaiado para o universo das 19 Repúblicas, isto se, entretanto, o rastilho não tiver sido acelerado.

Entretanto, como fim da reflexão, o Alfa recuperou o atraso e pelo menos em Aveiro conseguiu chegar no horário previsto, o que evitou que esta crónica acabasse com um insulto.