(Sabemos que a história não foi um contínuo de aumento de direitos democráticos, nem de aumento do número de países e de indivíduos classificáveis como democráticos ou vivendo em regimes democráticos. Mas particularmente após os trágicos efeitos da Segunda Guerra Mundial talvez nos tivéssemos inebriado por algo que considerámos então inevitável mas que afinal não o era. Essa errada convicção talvez nos tenha feito levantar a guarda sobre possíveis ameaças a essa realidade. A espantosa capacidade do Our World in Data produzir e publicar informação sobre uma variedade não menos espantosa de temas permite confirmar que os últimos tempos são preocupantes em toda a linha. Praticamente todos os critérios de medida da democraticidade dos países e dos regimes apontam para não apenas uma ameaça. As condições de democraticidade no mundo estão efetivamente em recuo, o que adensa os tempos de indeterminação em que estamos mergulhados. O nosso pronunciamento cívico e político não deveria ignorar esta deriva).
O OUR WORLD IN DATA publicou recentemente informação (link aqui) que deveria merecer a nossa atenção para compreender os tempos de incerteza e até de alguma perturbação que vivemos. No tempo longo, isto é, quando nos comparamos hoje com, por exemplo, a situação de há um século, obviamente que concluímos que o mundo está mais democrático. Mas quando projetamos a nossa atenção no tempo mais recente e embora as métricas para a avaliação rigorosa da democraticidade do mundo nos conduzam sem surpresa a resultados distintos, há recuos sensíveis naquilo que dávamos por adquirido. Dar por adquirido significa prestar menos atenção cívica e política a essa preocupação. Os números agora publicados aconselham uma postura mais proativa.
O gráfico que abre este post utiliza o critério dos Regimes of the World (identificados em literatura de 2018[1]) para definir quem pode ser classificado um país democrático, em termos eleitorais ou em termos de democracias liberais. Na última década, por ambos os critérios temos uma queda da democraticidade – de 97 democracias eleitorais em 2012 temos agora apenas 89 e de 42 democracias liberais temos agora 34. Não sem surpresa, estima-se que entre 2017 e 2021 cerca de 1,6 mil milhões de pessoas tenham perdido direitos democráticos e que o número de pessoas a viver em países democráticos tenha também descido de 1,2 mil milhões para mil milhões de pessoas. A Índia e a Turquia dominam a cena em termos de perda de direitos democráticos, principalmente a Índia dada a sua escala demográfica. É curioso registar que se trata de dois países com forte notoriedade na questão da invasão russa da Ucrânia – a Índia movendo-se no raio da influência da Rússia e a Turquia aspirando a um papel de mediação política internacional.
É também relevante a informação dinâmica, que procura medir as tensões autocratizantes ou democratizantes e nesse indicador a tendência confirma as impressões anteriores.
Qual a importância destas tendências no tempo atual?
A principal implicação aponta para a ação cívica e política. Obviamente que a defesa dos valores democráticos suscita frentes políticas mais largas. Mas o problema é que, dada a incerteza prevalecente, as populações carecem de guias e orientações sobre o futuro previsível. Ora, se a defesa da democracia suscita frentes políticas mais amplas, pelo contrário a projeção de valores para o futuro tende a encurtar essas frentes.
A questão compreende-se se a projetarmos, por exemplo, na Itália que se debate com a possibilidade de em 25 de setembro forças de extrema-direita (por mais caramelizadas que possam apresentar-se ao eleitorado) aceder ao governo. Tem sido praticamente impossível, depois da queda do governo de Draghi, construir uma frente democrática ampla de barragem da extrema-direita. E a razão é que, pelos vistos, a acreditar nas sondagens, os italianos precisam de mais alguma coisa para não concederem a maioria a Giorgia Meloni e à sua coligação. Este parece-me ser o desafio principal do momento. Como barrar o recuo da democracia afirmando soluções para os tempos incertos que vivemos.
[1] Anna Lührmann, Marcus Tannenberg e Staffan I. Lindberg (2018), “Regimes of the World (RoW): Opening New Avenues for the Comparative Study of Political Regimes”, Politics and Governance, Volume 6, nº 1, Páginas 60–77
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