quinta-feira, 22 de setembro de 2022

NOTA SOBRE OS LIVROS DAS FÉRIAS

Por mero esquecimento, não vim ainda aqui dar nota aos leitores deste espaço das minhas leituras de férias. Antes que seja Outono, aqui venho então dar o devido cumprimento ao prometido, deixando algumas apreciações mais circunstanciadas para eventuais posts futuros. Deixando de lado relatórios e documentos que considero de trabalho, aponto seis obras: uma atrasada leitura de uma obra magistral de história geoeconómica mundial assente numa saudável e verdadeira visão não eurocêntrica do mundo (“As Rotas da Seda”); uma denúncia factual sobre o branqueamento de capitais e o homicídio na Rússia de Putin (“Dinheiro Sujo”); a biografia de Amartya Sem (“Em Casa no Mundo”); um interessantíssimo ensaio de Alberto Manguel em torno do livro encarado em todas as suas vertentes possíveis e imaginárias (“Uma História da Leitura”); o último romance de Julian Barnes, um dos meus escritores preferidos (“Elizabeth Finch”); um romance mais ou menos iniciático, mas bastante sólido, do poeta e ex-político algarvio João Carlos Barros (“As Pessoas Invisíveis”).

 

Só para abrir umas ligeiras hostilidades em torno destas leituras, escolho falar um pouco de alguém que admiro (até pelas incursões que fiz nos tempos da FEP pela sua área de especialidade, o desenvolvimento, Amartya Sen, o Nobel da Economia de 1998). Gostei de percorrer a biografia de Sen, pese embora o facto de ter ficado com uma sensação difusa de que esperava mais e de que melhor seria possível. Mas não irei por aí, antes o farei recorrendo à letra do próprio em alguns parágrafos que abaixo reproduzo, do primeiro (que reputo de maravilhoso) sobre a economia por que acabou por optar enquanto área disciplinar de estudo aos restantes que sinteticamente ilustram o(s) seu(s) sucessivo(s) caminho(s) no seio da economia (incluindo elementos relacionais deliciosos como o relativo a Joan Robinson, no livro aliás acompanhados por várias outras curiosas histórias protagonizadas por consagrados economistas).

 

· “Devo admitir que me divertia um pouco calcular exatamente os pressupostos necessários para que os preços fossem estacionários ou voláteis. Se a economia consiste realmente em resolver este tipo de problemas ― pensei eu ―, talvez nos ofereça alguma diversão analítica, mas muito provavelmente uma diversão inútil. Felizmente, este ceticismo não me dissuadiu quando chegou o momento de me decidir pela economia no primeiro ano da universidade. Percebi que a especulação de Adam Smith sobre a relação entre a presença de rios navegáveis e o florescimento das civilizações oferecia mais substância para reflexão.”

 

· “Sukhamoy perguntou-me: ‘Porque é que não vens comigo estudar economia?’ Observou que a economia estava mais relacionada com os meus interesses políticos ― e os dele ― e que nos dava tanto espaço para pensamento analítico (que ele sabia que eu gostava) como as ciências naturais. Além disso, a economia era uma área humana e divertida. E não se podia ignorar (acrescentou) que não havia trabalho de laboratório à tarde (ao contrário dos estudantes de ciências), e podíamos assim ir ao café em frente da faculdade. Aos argumentos de Sukhamoy podia acrescentar a perspetiva de estar na mesma turma dele e a oportunidade de conversarmos regularmente. De forma gradual, convenci-me a estudar economia (com matemática) em vez de física.”

 

·  “Entre os direitistas que pensavam que Marx estava totalmente errado (um diagnóstico muito incorreto) e os ‘verdadeiros esquerdistas’ que pensavam que não existia tirania na Rússia, mas apenas a ação ‘da vontade democrático do povo’ (que me parecia ser uma crença de uma ingenuidade abissal), alguns de nós tinham um trajeto difícil. Comecei a pensar na necessidade de depender menos da concordância dos outros, por muito agradável que pudesse ser.”

 

·  “Eu estava cada vez mais convencido de que, para retirar o máximo de Marx, tínhamos de ir muito além das prioridades refletidas nos seus estudos. Muitas das nossas discussões no café da College Street tentavam analisar esta filosofia mais ampla. Nem sempre tínhamos sucesso nas nossas reinterpretações, mas tentávamos ver até onde podíamos ir nesse mundo obcecado por Marx que vinha com o nosso café diário.”

 

·  “Se o apreço de Joan [Robinson] por tudo o que era indiano ― vestia roupas indianas com frequência ― era um traço proeminente da sua personalidade, a sua atitude em relação à teoria económica era muito mais discriminadora. Estava fortemente convicta do que era certo e errado na economia e julgava ser seu dever ajudar o lado certo a ganhar. A sua rejeição da economia convencional ― geralmente chamada ‘economia tradicional’ ou ‘economia neoclássica’ ― era tão total quanto firme, mas, por outro lado, achava o pensamento económico marxista ― apesar de prometedor ― irremediavelmente errado.”

 

·   “Decidi-me pela ‘escolha de técnicas’ ― especificamente, como escolher as técnicas adequadas de produção, avaliadas a partir do ponto de vista social, numa economia com muito desemprego e salários baixos. Em parte para apaziguar Joan [Robinson], que se tornou a supervisora da minha tese, coloquei o termo ‘capital’ no título da tese. Isto foi fácil de integrar, uma vez que me interessava muito a questão de como devem ser idealmente as técnicas de produção com capital intensivo numa economia com salários baixos. Havia algumas complicações ― ligadas ao impacto da escolha técnica no consumo e nas poupanças ― naquilo que, de outro modo, poderia parecer uma questão com resposta óbvia. Intitulei a tese de ‘Escolha da Intensidade de Capital no Planeamento do Desenvolvimento’. Piero Sraffa riu-se do título quando lho disse, afirmando: ‘Ninguém fará ideia sobre o que trata a sua tese’. Sugeriu-me fortemente de mudasse o título antes de publicar a tese. No entanto, para o próprio trabalho de doutoramento, disse ele, ‘o título é adequadamente misterioso, perfeito para uma tese de doutoramento.’”

 

·   “A combinação do estímulo intelectual e de tempo livre no MIT deu-me a oportunidade de refletir na minha compreensão da economia como um todo. Foi um prazer deixar de ver a economia como lutas até à morte entre diferentes escolas de pensamento. Passei a ver a economia como uma matéria integrada que tinha espaço para diferentes abordagens, de importância variada em função do contexto, que podiam dar um uso produtivo a instrumentos distintos de análise (com ou sem tipos particulares de raciocínio matemático) para responderem a muitos tipos de questões. Dado que, desde os meus primeiros tempos, estive envolvido em diferentes abordagens à economia e gostei sempre de estudar autores com interesses e compromissos diferentes (de Adam Smith, Condorcet, Mary Wollstonecraft, Karl Marx e John Stuart MIll a John Maynard Keynes, John Hicks, Paul Samuelson, Kenneth Arrow, Piero Sraffa, Maurice Dobb e Férard Debreu), queria examinar como poderiam dialogar entre si. Isto revelou-se não só muito instrutivo para mim, mas também muito divertido, e a convicção de que a economia era um tema maior do que parecia também começou a emergir firmemente no meu espírito. Foi um tempo incrivelmente construtivo e muito inesperado.”

 

E por aqui me fico por hoje. A seu tempo, poderei regressar a alguns dos trabalhos que elegi e aos prazeres ou ensinamentos que deles retirei.

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