(O tema da evolução da taxa de fertilidade, número médio de filhos por mulher em idade ativa de procriação, tem sido um eterno parente pobre do debate em torno do declínio demográfico. Há várias razões que explicam a menorização dessa variável, regra geral subalternizada em relação à variável da natalidade, o que não é exatamente a mesma coisa. Uma das razões menos aceites para essa menorização prende-se com a dimensão económica da fertilidade, frequentemente esquecida por pudor, já que é bem compreensível a resistência a aplicar o cálculo económico a uma decisão do foro mais íntimo do casal ou da mulher. Mas esse pudor é injustificado, pois a própria teoria económica está preparada para respeitar esse lado mais íntimo da fertilidade, existindo hoje condições para aspirar a uma teoria socioeconómica da fertilidade, atenuando assim muitas das resistências atrás referidas. É sobre esse tema a que gostaria de dedicar o post de hoje.)
Começo por recordar algumas ideias básicas para melhor compreender alguns dos argumentos apresentados no post de hoje.
Em primeiro lugar, não podemos esquecer que uma taxa de fertilidade em decrescimento não determina necessária e imediatamente a diminuição da natalidade. Tudo dependerá do número de mulheres em idade ativa de procriação. Assim, por exemplo, em países muito populosos (países africanos, por exemplo), o número elevado de jovens mulheres pode determinar que mesmo com decréscimo da taxa de fertilidade assistamos por algum tempo ao crescimento da natalidade. Não é esse o panorama português, já que o número de jovens mulheres está a diminuir acentuadamente.
Uma outra recordatória necessária prende-se com a memória de grupos de trabalho constituídos ao longo dos anos em Portugal para abordar o tema demográfico e da fertilidade. É raríssima a presença de qualquer economista especialista em economia da fertilidade. Estão lá os médicos especializados em saúde reprodutiva (parece que o número de espermatozoides reprodutores masculinos está a fraquejar …) e de outras especialidades. Estão lá os sociólogos para situar os comportamentos urbanos, a sociologia da educação, as novas tendências da vida social e outras matérias. Mas economistas que poderiam dizer alguma coisa sobre as razões económicas da diminuição da taxa de fertilidade são raríssimos. Existe aqui, por conseguinte, um claríssimo enviesamento, que em meu entender se deve ao tal pudor.
A teoria económica da fertilidade, que tem associados alguns economistas de craveira, talvez o mais conhecido seja Gary Becker, economista de Chicago que ficou conhecido por aplicar modelos de cálculo económico a matérias inusitadas como a economia do crime ou da lei, embrenhada numa certa sofisticação matemática e de modelização que não é para aqui chamada, procura equacionar razões que atribuam sentido explicativo à relação entre taxa de fertilidade e produto interno bruto per capita ou outro qualquer indicador síntese do desenvolvimento económico. A questão mais interessante tratada por esses modelos é a influência na fertilidade exercida por variáveis que tendem a estar correlacionadas com o referido PIB per capita. É o caso das variáveis que medem o desempenho educativo dos países, sobretudo a qualificação das mulheres e a sua entrada na vida ativa que acompanha essa qualificação. Mas é também o próprio caso da taxa de urbanização, com os consequentes modelos de organização da vida, intuindo-se que uma vida urbana muito intensa tenderá a desincentivar taxas de fertilidade muito elevadas.
Os modelos mais cuidadosos têm a particularidade de sugerir que se apliquem os argumentos aduzidos a partir de um número de filhos entendido socialmente como decidido a partir de valores que não são mercantilizáveis, um ou dois filhos, por exemplos.
Praticamente a generalidade dos modelos começou por encontrar razões para que a melhoria do PIB per capita e das variáveis associadas se traduzisse por mais taxas de fertilidade. Ficou célebre a tese de que só o desenvolvimento económico resolveria a armadilha demográfica, porque só ele traria reduções sustentadas e pronunciadas da taxa de fertilidade e da natalidade depois de se esgotar o efeito da grande massa de jovens mulheres com idades muito baixas de entrada no casamento.
O argumento talvez mais conhecido é o dos custos de oportunidade de um número elevado de filhos, sobretudo da mulher que ascende a uma vida profissional ativa e que vítima de discriminação no posto de trabalho e na sociedade sacrificaria a sua própria valorização profissional.
Este argumento não pode ser esquecido na sociedade portuguesa em que a melhoria da qualificação da mulher é um facto notável da democracia e que não tem ainda a sua correspondência na inserção da mulher na vida ativa e profissional.
Mas não podemos ignorar formas inteligentes e avançadas de socializar esses custos de oportunidade. Estes exemplos podem acontecer sobretudo na sequência de processos de desenvolvimento sustentado. Por exemplo, as empresas podem estar interessadas em contribuir para a socialização desses custos de oportunidade, assumindo custos que permitam à mulher não ser penalizadas nas suas carreiras e valorização profissional. O sistema público de creches e de proteção na gravidez pode elevar-se a patamares não antes observados. Quer sito dizer, que o próprio desenvolvimento pode trazer fatores de contraponto e de contrapeso à influência negativa que o crescimento do PIB per capita poderia trazer à socialização da fertilidade.
O argumento que suscita mais reações de pudor à invocação da teoria económica da fertilidade prende-se com o argumento da quantidade e da “qualidade” dos filhos. A procura de níveis de educação mais exigente pode determinar escolhas por parte dos casais de aposta na qualidade da sua educação o que poderia reduzir o número de filhos. Como é óbvio, haverá sempre uma exceção e costumo apresentar o exemplo da família do Professor Roberto Carneiro com uma família numerosa de filhos e filhas ilustres.
A questão não é obviamente dissociável do estádio de desenvolvimento dos países em que ela se coloca. Assim, a relação entre a taxa de participação da mulher no mercado de trabalho e na vida profissional e a taxa de fertilidade, que começou por ser claramente negativa, começou pelo menos em alguns países a inverter o sentido da relação. Como se os meandros do desenvolvimento mais avançado pudessem contrariar o argumentário inicial. O ligeiro aumento da fertilidade nos países escandinavos sugeriu essa possibilidade. E no interior de cada país começam também a surgir exemplos em que, como nos EUA, as mulheres com formação mais avançada têm mais filhos do que as licenciadas.
Tudo obviamente contextualizado país a país.
Assim, no que respeita a Portugal, continuo a pensar que medidas como o reforço claro da conciliação da vida profissional e familiar, a socialização da fertilidade a cargo crescente das empresas, o investimento massivo nas condições de proteção da gravidez e da criança são as que no estádio de desenvolvimento de Portugal melhor respondem a um problema de gerações. Insisto na socialização empresarial da fertilidade. É tempo das empresas secundarem o papel do Estado na criação de condições para que a uma educação mais avançada nas mulheres possa corresponder uma taxa de fertilidade em torno do que os demógrafos consideram a reprodução simples de uma população, 2,1 crianças por mulher em idade ativa de procriação.
Nota final:
Sempre atenta, a Economist dedica a estes novos trends de evidência a sua atenção.
Sem comentários:
Enviar um comentário