(Uma interpretação maliciosa do conjunto de medidas anti-inflação apresentado segunda-feira por António Costa e pormenorizado pelos ministros Ana Mendes Godinho, Duarte Cordeiro, Fernando Medina e Pedro Nuno Santos no dia seguinte poderia consistir numa pequena partida ao Famílias Primeiro com que a comunicação do Governo decidiu batizar o dito Plano. A verdade é que não seria uma partida infundada, tantas e tão variadas foram as referências realizadas nos dois momentos à necessidade de não perturbar o equilíbrio das contas, do Orçamento e da Segurança Social, e de não contribuir para o entrincheiramento da inflação.)
Não quero repetir-me, mas insisto na ideia de que o Governo acabou por assumir uma posição muito equilibrada na abordagem à pandemia, praticando o que já designei de “conservadorismo fiscal”, apoiando a economia e as pessoas de maneira a não comprometer a situação macroeconómica e o difícil caminho de redução da dívida. Acresce que este “conservadorismo” acabou ainda por ser mais justificado quando se percebeu que, em cima de uma pandemia, teríamos que levar com uma guerra com fortes disrupções da economia mundial, o retorno da ameaça inflacionista e a inversão do comportamento dos bancos centrais para travar esta última.
Creio que, embalado pelo relativo êxito desse “conservadorismo fiscal” e mais ciente do que nunca de que é necessário a todo o custo evitar um descontrolo da solvência internacional tão duramente conseguida, o Governo pensou o plano de medidas anti-inflação nesse mesmo tom. Poderá dizer-se que, além da defesa desse conservadorismo parcimonioso em termos de libertação de recursos (veremos em que consistem os apoios às empresas), existiu também a preocupação de fazer passar a ideia de que a situação é grave, apelando a mudanças de comportamentos de poupança de recursos. Esta segunda interpretação é mais discutível, mas creio que pelo menos em relação a algumas medidas no domínio da energia, descendo o IVA apenas dos consumos taxados a 13% e não os taxados a 23% vão nessa linha. Já mais problemática, à luz desta interpretação, é a opção em algum dos apoios por medidas “one shot”. Este tipo de apoios exigirá das famílias estratégias muito contidas de gestão desse rendimento adicional, o que para as mais encalacradas com a situação será de muito difícil concretização. Os apoios dissolver-se-ão rapidamente na espuma das dificuldades.
Não sei se António Costa avaliou devidamente a sua decisão de reportar para setembro o anúncio das medidas. Não faço ideia se foi ou não apanhado desprevenido com a antecipação realizada pelo PSD de Montenegro da sua proposta de plano de medidas. O que sei é que não foi por acaso que na declaração política do PSD, protagonizada por Leitão Marques, a vertente mais repetida de ataque foi a do timing político das medidas, atrasadas e prejudicando por isso as famílias segundo o PSD. Penso que António Costa percebeu a vulnerabilidade desse ponto, embora em meu entender não tenha sido firme e definitiva a explicação que acabou por dar. Com um toque de sobranceria (“estou a apresentar as medidas no momento em que tinha prometido”), Costa refugiou-se não na distinção que chegou a fazer o seu caminho entre inflação temporária e inflação estrutural, rapidamente abandonada pela vertigem dos acontecimentos, mas numa pretensa avaliação mais ponderada e segura da situação macroeconómica para apoiar as famílias dentro de limites compatíveis com o acerto das contas. Creio que nesta matéria o PSD cumpriu finalmente o seu papel de oposição e a sua antecipação de proposta de plano social. É positivo para a alternância democrática ser possível a comparação do plano agora apresentado com a proposta do PSD. A alternância também se constrói desta maneira. Não foi por acaso que a explicação dada por António Costa sobre o timing da apresentação das medidas acaba por ser o ponto mais débil da sua intervenção, em que o primeiro-Ministro pareceu recuperar a confiança dos tempos da pandemia.
Numa análise global às medidas apresentadas, faço minhas as palavras da nossa cada mais mediática colega Susana Peralta. O tom global dos apoios poderia ser mais progressivo. É um facto que a marca da progressividade poderia ser mais reforçada. O Governo optou por uma maior universalidade dos apoios. É verdade que a subida do limiar individual para os 2.700 euros (37.800 euros/ano) permite entrar pelos intervalos da classe média, o que do ponto de vista político era crucial assegurar. Essa maior progressividade poderia materializar-se, por exemplo, numa maior discriminação positiva do apoio aos filhos de casais com menor rendimento e atribuído universalmente.
O “conservadorismo fiscal” que atravessa as medidas obviamente que seria sempre recebido à esquerda do PS com estrondo e indignação, não há novidade nisso. Tiveram oportunidade de atuar a esse nível, mas desperdiçaram-na hipotecando o acordo à esquerda. O que constitui novidade é o pronunciamento à direita, que estaria mais contente com um apoio à espanhola, clamando por apoios de maior magnitude financeira.
Há outros aspetos menos debatidos após o conhecimento público das medidas. Entre eles, está a quase nula discussão do modo como os apoios chegarão aos bolsos (contas) dos cidadãos. Consultando a apresentação do conjunto de medidas disponível na página do Governo na Internet, é possível concluir que se privilegiaram os mecanismos existentes de comunicação eletrónica com os cidadãos (contas bancárias de devolução de IRS e de pagamento de pensões e outras prestações sociais). Existe aqui claramente um propósito de mensagem para o cidadão em geral: há vantagens em estar registado no sistema, a existência fiscal compensa. O que suscita a interrogação de saber como é que será, por exemplo, resolvido o problema dos contribuintes que nunca entregaram declaração de IRS por não estarem sujeitos a essa obrigatoriedade dados os seus limiares de rendimento. Parte desse universo será identificado creio eu através da Segurança Social. Veremos se a interoperabilidade dos sistemas funcionará ou não. E certamente que haverá casos em que será exigida proatividade de manifestação de presença aos beneficiários potenciais de apoios não automaticamente identificados. Não sei quantificar a magnitude deste universo de pessoas. Mas na lógica da transversalidade desejada para os apoios espera-se que não haja falhas nesta identificação.
Começo a ficar com a sensação de que António Costa e o Governo manifestam apetência para governar neste estilo de intervenções ditadas pelas circunstâncias excecionais. Na minha conceção de governação, é positivo, mas é curto. Importaria que António Costa e o Governo manifestassem maior destreza e decisão em matéria de foro mais estratégico, como por exemplo dar um sentido de menor inércia à contribuição dos fundos europeus (PRR mais programação plurianual enquadrada no Acordo de Parceria). Mas não só. Seria fundamental propor ao país medidas e ações para acelerar a transição para a economia das melhorias de qualificações que paulatinamente vêm sendo observadas, sobretudo através dos fluxos de novas qualificações que chegam ao mercado de trabalho.
Deixo-vos com um exemplo recente de frustração e de pura inércia.
O Acordo de Parceria PT 2030 consagrou a junção num só programa operacional de dois grandes programas temáticos que marcaram decisivamente a programação de 2014-2020 – os programas operacionais Capital Humano e Inclusão Social e Emprego. Esse programa único chamar-se-á Demografia, Qualificações e Inclusão. Esperar-se-ia alguma transformação e arrojo. Analisando o que está disponível, temos mais do mesmo. O novo programa é um simples somatório dos dois anteriores. O que é um claro sinal de ausência de supervisão e orientação políticas. Alguém não cumpriu o seu papel na cadeia da governação.
Sem comentários:
Enviar um comentário