quarta-feira, 14 de setembro de 2022

JEAN-LUC GODARD


(Jean Plantu, https://twitter.com)

Desaparece mais um ícone da geração a que estou ligado. Desta vez, aqui assinalo a morte do cineasta enorme que foi o francês (ou devo dizer franco-suíço?) Jean-Luc Godard (JLG) que nos deixa aos 91 anos e após a opção livre racional por um suicídio assistido (como se escreve no sítio do “Público”, “Jean-Luc Godard fez o que queria: tornou-se imortal e depois morreu”). JLG foi, entre tantas outras coisas  dentro e fora do cinema, um dos mais notáveis pais da Nouvelle Vague dos anos 60, fase de que julgo ter visto quase todas as obras relevantes (tardiamente por razões óbvias de idade e enquadramento político, com as honrosas exceções mais atempadamente proporcionadas pelo Cineclube do Porto no início dos anos 70) e através da qual o génio de Godard foi desvendado e acabou por ficar cabalmente à prova; dela escolhi para ilustrativamente reproduzir abaixo três desses seus mais marcantes trabalhos (“À bout de souffle” de 1960, um drama policial em que Jean-Paul Belmondo é um criminoso fugido à polícia e Jean Seberg uma estudante americana em Paris; “Le Mépris” de 1963, adaptando um romance de Alberto Moravia em que se conta a história de um casal em crise que se muda para Roma por causa de um filme de Fritz Lang e ali entra num triângulo amoroso representado por Brigitte Bardot, Michel Piccoli e Jack Palance; “Masculin, Féminin” de 1966, um retrato da sociedade parisiense na véspera da revolução social e cultural do Maio de 1968).


Sem qualquer pretensão de mais do que alguma notas pessoais e meramente impressionistas, e para além de uma menção à localizada especificidade de “La Chinoise” (1967, por cá designado “O Maoista”), onde é protagonista a sua diva da época (Anna Karina), recupero ainda os filmes dos anos 80 (alguns vistos in loco) com destaque para o mais convencional “Sauve qui peut (la vie)” (1980), mais um burilado triângulo amoroso (Jacques Dutronc com Isabelle Hupert e Nathalie Baye) e para o altamente polémico (e provocador) “Je vous salue, Marie” (1985), uma exploração do dogma da maternidade divina a inspirar duas histórias paralelas de vida (uma vulgar operadora de uma bomba de gasolina e o envolvimento de um professor com uma aluna, onde surge em primeira aparição Juliette Binoche).

 


Opto por não inventar e reproduzo o início do texto com que o “Libération” hoje informou os seus leitores da triste notícia: “O teu cinema é a saturação de signos magníficos que se banham na luz de sua falta de explicação.” Jean-Luc Godard, cuja morte foi conhecida nesta Terça-feira 13 de setembro, retomou por duas vezes esta frase de Manoel de Oliveira, em “Forever Mozart” e “Histoire(s) du cinema”. Poderíamos ficar por aqui, considerar diante da enormidade da obra que ela não pode ser evocada, resumida, reduzida, popularizada sem ridículo ou asneira. Poderíamos também proceder por cópia e colagem de textos, de imagens e pintando a cara de azul. ‘Filósofo, cientista, pregador, educador, jornalista, mas tudo isso como amador, ele é o último (até hoje) a ter sido testemunha (consistente nos seus depoimentos) e consciência (moral) do que acontece no cinema’, escreveu Serge Daney em 1986, um ano depois de ‘Marie’ e ‘Détective’. Vinte anos depois, é a vez de Olivier Assayas tentar fazer um balanço do caso Godard e, mais uma vez, é a dimensão totalizante do artista que se impõe: ‘O facto é que, diante de Godard, estamos como em frente a Picasso. Ele atravessou a sua época, tomando-a inteiramente a cargo, mergulhando nas suas contradições e fulgurâncias, tentando tudo, absorvendo tudo, sendo vários cineastas, tendo várias vidas, algumas simultaneamente. Ele esteve no cinema, ele esteve fora, ele esteve acima e abaixo, incessantemente preocupado em torcê-lo em todas as direções, em lhe arrancar uma verdade, um absoluto, e isso num dilaceramento constante cujos ecos, por vezes ininteligíveis, nunca deixaram de chegar até nós.’”

 

Nada, afinal, que o crítico de cinema Roger Ebert não tivesse já salientado há mais de cinquenta anos quando escreveu acerca da importância que Godard já detinha no seio do cinema: “Godard é um realizador de verdadeira primeira linha; nenhum outro realizador da década de 1960 teve mais influência no desenvolvimento da longa-metragem. Como Joyce na ficção ou Beckett no teatro, ele é um pioneiro cujo trabalho atual não é dirigido a audiências presentes. Mas a sua influência sobre outros realizadores está a criar e educar gradualmente um público que, talvez na próxima geração, poderá ser capaz de olhar para trás, para os seus filmes, e ver que foi aí que o cinema deles começou.”


Como sempre ocorre em situações de excecionalidade vivencial de qualquer natureza, apagando-se o homem dele fica o exemplo ou um testemunho artístico incontornável. No caso de Godard, tal testemunho, por mais ou menos datado que possa por vezes parecer, tem sempre traços de uma tal pujança que bem justificam renovadas oportunidades de (re)visita.

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