sábado, 30 de novembro de 2024

TÃO FELIZ QUE ELE ESTÁ!

 

(Nunca escondi que gosto de políticos que apreciem o que fazem e que não ofereçam à população a ideia de que estão a fazer um favor aos seus eleitores. Nestes tempos estranhos em que se generaliza a desvalorização do papel da classe política em democracia, em que muita gente ainda não entendeu que a classe política é uma simples projeção do que somos como povo e como sociedade, em que não há separação entre os puros e os impuros (os políticos), se a própria classe política faz passar a ideia de que ser político é uma chatice das maiores então os detratores da política escusam de se esforçarem muito. Ela cairá por si de madura e de tédio. Como costumo dizer em conversas com amigos se entre ir a uma manifestação ou a uma reunião política de partido u pública e frequentar uma sugestiva soirée cultural preferir declaradamente a segunda então a escolha está feita, não deve abraçar a política como ocupação num dado tempo da sua vida. Claro que é importante termos na política gente que possa prescindir da mesma em qualquer altura e não precisar para isso de andar a pedir ou a cobrar favores para o seu sustento futuro. Ressalvando os conflitos de interesses que exigem escrutínio e clareza de condições na passagem da vida profissional para a política e vice-versa, quanto mais essa migração for clara e escrutinada mais a política pode ser honrada e valorizada. Todo este introito para justificar o título deste post e que nasceu de olhar para as fotografias que apresentam António Costa depois de estar consumada a sua passagem a Presidente do Conselho Europeu. Daquelas imagens ressalta uma personalidade feliz, satisfeito com o desafio que tem pela frente. Por mais dúvidas e interrogações que os seus últimos anos de governação suscitem em matéria de qualidade e arrojo reformista da mesma e incapacidade de controlar a qualidade dos seus assessores, e alinho com grande parte dessas críticas, António Costa é daqueles políticos que se vê imediatamente que gosta do que faz, que valoriza a política pelo apreço que lhe tem, não precisando invocar alertas divinos ou chamamentos da sociedade profunda para justificar a sua motivação para abraçar a vida cansativa e cada vez mais penosa de quem assume a política com entusiasmo. Nada disto deve ser confundido com gostar-se ou criticar-se politicamente a sua governação ou a sua futura atividade à frente de um Conselho Europeu cada vez mais diverso e dividido.)

Pelo que expus neste longo introito não deve retirar-se a ideia de que no meu conceito de políticos motivados e a gostar do que fazem caibam apenas personalidades que tiveram primeiro uma vida profissional com alguma proeminência. Existem outras formas de formação de classe política que não se esgotam no deve e haver dos pequenos serviços e favores em que a vida partidária se transformou, esse sim um dos grandes responsáveis pelo abastardamento da ação política, em que “jotas” e “jotinhas” seduzidos pelo aroma do poder preparam com tempo a sua ascensão e se lançam deliberadamente na criação dessa rede de favores e serviços de que irão beneficiar algures no tempo. Boas Escolas de formação de administração pública podem ser veículos interessantes de formação de classe política e os próprios partidos políticos poderiam assumir parte dessa formação.

Mas afinal e sem grandes pretensões de reformar a génese da classe política em Portugal, o meu propósito era o de apresentar António Costa como um exemplo dos que conseguem ainda olhar a política como um fator de motivação e isso para mim basta-me. Pode dizer-se que o Homem tem sorte e que a conjugação dos astros acabou por conseguir neutralizar ou mitigar (já que o Ministério Público insistirá que a investigação sobre o ex-Primeiro Ministro ainda não acabou) a malévola intromissão da Procuradora Lucília Gago na atividade política em Portugal. Sim, para tudo é necessário uma pinga de sorte e Costa teve perseverança suficiente para a procurar.

Mas o que parece mais importante é que o Charles Michel vai para outra e deixar de difundir a sua falsa bonomia pelos corredores e reuniões europeias e internacionais. O Homem contente que as fotografias nos mostram vai à procura de um lugar na história das instituições europeias num contexto periclitante e à mercê de todas as derivas. Espero sinceramente que Costa faça projetar a sua capacidade de negociação e concertação no funcionamento do Conselho, pois a União vai disso precisar em quantidades enormes e que não se limite a recolher material para umas memórias futuras, apimentadas ou sensaboronas isso não importa.

Barroso, Centeno, Costa, Guterres e também Elisa Ferreira são tugas que em diferentes condições e níveis de desempenho diferenciados conseguiram notoriedade nas instâncias internacionais a partir de um País que não é propriamente um modelo de democracia de vanguarda.

Provavelmente não dedicámos ainda a atenção e a reflexão necessárias para explicar estes outliers de notoriedade e prestígio internacional.
 

PORQUE NÃO OPTAR POR FICAR CALADO?

Recupero aqui hoje um velho mote em tempos utilizado neste espaço, inspirado naquele “¿Por qué no te callas?” com que o Rei de Espanha se dirigiu a Hugo Chávez numa Cimeira Ibero-Americana em que este interrompia em permanência o primeiro-ministro espanhol. Claro que a asneira é livre, assim como livre tende a ser a expressão de quaisquer ideias ou similares – o problema está, a meu ver e como a dúzia de exemplos acima ilustra, na desproporção entre o que se transmite e a realidade ou o conhecimento, para não dizer no seu completo desligamento; o que surge agravado quando o autor não se dá conta desses desfasamentos e parece convencido de estar a proporcionar aos outros e humildes mortais um pensamento de mão cheia ou quando o autor foi ou é agente nos domínios em questão e passa ao lado da sua própria prática na matéria ou quando o autor apenas estará a retribuir favores ou a mostrar distância em relação a quem lhos prestou ou quando o autor simplesmente não consegue resistir à atração do foco jornalístico independentemente de ter ou não algo para dizer. E há ainda, por fim, o discurso político transformado em propaganda barata, como o que levou o primeiro-ministro a convocar os portugueses para uma comunicação televisiva em hora de ponta e cujo conteúdo pseudo-securitário mais não era, afinal, do que uma mão cheia de nada...


(Felipe Hernández, “Caín”, http://www.larazon.es)

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

A MISÉRIA DA NOSSA POLÍTICA É EXTENSÍVEL ÀS ILHAS

(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt) 

Aproprio-me aqui do racional associado ao excelente post hoje assinado pelo meu colega do lado, que subscrevo por inteiro. Quero, no entanto, acrescentar-lhe alguma condimentação mais com a chamada à colação do que vem sendo a convergente realidade da política paupérrima, e frequentemente pouco convencional em termos democráticos e de transparência governativa, praticada nas nossas belas Ilhas Adjacentes da Madeira e dos Açores.

 

A Madeira, ainda marcada por décadas de uma completa hegemonia do PPD/PSD, com ênfase para os trinta e sete anos de comando do hiperbólico Alberto João Jardim (acompanhados por alguns resultados em termos de desenvolvimento, ainda que à custa de formas e construções sociais no mínimo discutíveis) e, nos últimos nove anos, para a presidência de um Miguel Albuquerque que se tem vindo a revelar um governante incomparavelmente pior e bastante menos suportável do que o seu antecessor (além de mais profissional e mais cínico no plano metodológico). Os Açores, por seu lado, têm sido caraterizados por idiossincrasias temporalmente variáveis, onde sobressaíram um longo período do PPD/PSD (com Mota Amaral a ocupar o poder durante dezanove anos) e um longo período do PS (com Carlos César e Vasco Cordeiro a ocuparem o poder durante dezasseis e oito anos, respetivamente), ambos cheios de histórias nem sempre recomendáveis, até que uma situação de ausência de maioria absoluta conduziu a um governo da Aliança Democrática (liderado por José Manuel Bolieiro) parlamentarmente apoiado pela extrema-direita, isto é, sem a prevalência do “não é não” que Montenegro instituiu no Continente.

 

Tudo indica, agora, que nestas duas Regiões Autónomas se aproximam movimentações políticas de alguma monta, esperando os mais crentes que alguma higienização possa ocorrer com os mínimos a situarem-se no afastamento de Albuquerque e na perda de centralidade do “Chega”. Embora nada nos indique de que assim será, sobretudo porque se há coisa que interfere na constância política que tem marcado aqueles locais é a emergência de alguma caixinha de surpresas a impor-se de quando em quando...

A POBREZA DA POLÍTICA INTERNA

 


(A idade e o catarro ocasional de facto não perdoam e a intensidade de trabalho e as sucessivas viagens para Lisboa têm-me afastado de uma atividade mais regular de escrita neste espaço. Talvez haja uma outra razão subliminar nessa fraca assiduidade e essa está na pobreza da política interna. Ela pode ser percebida de várias formas e seguramente uma delas é estar atento ao tipo de debate político que se vai fazendo nos jornais e nas televisões e, santo Deus, tanta gente há por aí a ganhar a vida ou a completá-la com essa atividade. O deslumbramento de Montenegro é pavoroso, sobretudo no que ele significa de tentar desenhar uma agenda para responder ao eleitorado do Chega. A deriva securitária, trabalhando as perceções da insegurança e procurando fazer passar uma imagem de gravitas na governação que chega a ser ridícula, dá comigo em doido e a social-democracia parece cada vez mais um arquétipo inatingível por esta camada de políticos a quem o PSD está entregue por estes tempos mais próximos. À esquerda o panorama não é mais entusiasmante. Das Presidenciais nem falar. Imagino-me no calvário de ter de eventualmente escolher entre Mário Centeno e António José Seguro, embora o nome de Augusto Santos Silva venha colocar alguma pimenta nesse universo, veremos se corresponderá ou não a um posicionamento real e de Mulheres para Presidente ninguém fala o que é uma verdadeira lástima. Quanto à controvérsia do 25 de novembro, o PS perdeu uma excelente oportunidade de trabalhar a questão dos desvios do radicalismo da esquerda militar que nos poderia ter custado caro, acaso não houvesse no grupo dos Nove gente com a lucidez de Melo Antunes para interpretar corretamente a situação política criada por esse radicalismo e suster de vez a tentação que passou pela cabeça de alguma direita da altura de fazer reverter os avanços do 25 de abril de 1974. Com a exceção de Pacheco Pereira que assinou sobre a matéria uma das suas melhores crónicas de sempre, fazendo jus ao seu estatuto de historiador contemporâneo de mente aberta, praticamente ninguém trabalhou esse filão.)

É de facto uma dor de alma ir assistindo ao modo como os tresloucados do Chega comandam a agenda política do Governo que não hesita em utilizar as forças de segurança para marcar a agenda mediática, cavalgando até à exaustão a onda securitária. A deriva da cópia, como lhe costumo chamar, ofusca alguma boa prática da governação, como por exemplo a honesta decisão do Ministro da Educação Fernando Alexandre vir a terreiro reconhecer que errou na apresentação dos números relativos ao número de alunos que está sem aulas, comunicando solenemente que os números apresentados pelo organismo da tutela não eram fiáveis. Fica sempre bem a um governante a perspetiva do rigor, mas já agora permanece a curiosidade de saber a razão dos números não serem fiáveis. Até aqui os números da Educação costumavam ser venerados pela sua fiabilidade. Com esta informação e anúncio de uma auditoria sobre o assunto fico inquieto, até porque em termos profissionais e sobretudo na minha qualidade de avaliador de políticas públicas, incluindo as de educação e formação, ter segurança nos dados é crucial.

Em matéria de saúde, a situação começa a cheirar a pântano, Ministra e Secretária de Estado parecem envolvidas em lios sucessivos. E para apimentar ainda mais as coisas, o que se vai passando na Ordem dos Médicos e em torno dos presumíveis conflitos de interesses de Eurico Castro Alves, um nome incontornável em tudo que tem sido controverso a norte do Mondego em matéria de saúde, anunciam-se pormenores interessantes nos próximos capítulos.

Regressando aos temas à esquerda, a perceção de que o deserto de ideias ameaça horizontes futuros começa a ser demasiado forte para ser ignorada.
Eu sei que os chamados “intelectuais” estão fora de moda e que a própria esquerda foge deles como o diabo da cruz, por isso estou curioso que remake Pedro Nuno Santos pretende fazer da ideia dos Estados Gerais de Guterres. Mas como não alinho nestas mortes precoces, aqui estou eu a trazer-vos uma longa citação de um dos últimos moicanos dessa intelectualidade, o sempre perspicaz e denso António Guerreiro, na sua crónica de hoje no ÍPSILON, suplemento do Público. Palavras sábias:

“(…) Podemos reconhecer como bastante plausível a hipótese de que a esquerda está bloqueada e sofre de um deficit. Manifestando alguma incapacidade de produzir narrativas, de contar histórias à altura das necessidades da nossa época, as suas bases vão-se convertendo, como mostram por todo o lado as eleições, às histórias simplistas que lhes são contadas por ativos recitadores neoliberais, neoconservadores ou até neofascistas. Há razões muito plausíveis que explicam o desânimo actual da esquerda e a contracção do “imaginário” que lhe garantia a capacidade de se renovar: o capitalismo extremo tornou muito difícil, ou até impossível, juntar sensibilidades, sentimentos, evidências, esperanças, reivindicações. Há uma lógica implacável na organização do trabalho e da vida social que faz com que cada um viva uma experiência isolada. Diminuíram drasticamente as condições de possibilidade de criar uma força colectiva de participação partilhada. Quando a direita, hoje, acusa a esquerda de ter substituído a “luta de classes” pelos conflitos identitários está a estender-lhe uma armadilha, a querer indicar-lhe como lugar legítimo aquele que já não existe ou que, pelo menos, já não pode ser frequentado da mesma maneira nem sequer análises e acções clássicas.
E assim chegámos a uma nova versão da “melancolia da esquerda” cujos sintomas resultam da introjecção narcísica do desejo por um objecto inexistente, fantasmático, É, em termos freudianos, uma perda imaginária (ao contrário do luto, que é o “trabalho” de superação de uma perda real), fazendo entrar o indivíduo na cena onírica e contemplativa dos fantasmas.”

Uma bela reflexão para o fim de semana, se alguém estiver para aí virado ou se as insónias atrapalharem.
 

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

QUANDO O AMOR MACHO É CONFUNDIDO COM O FIM DO MUNDO...

(Idígoras y Pachi, http://www.elmundo.es) 

Breve interlúdio na atividade de bloguista para uma pequena variação em que se brinca com coisas sérias. De ressaltar a inaudita inocência do cavalheiro, a proverbial lucidez da dama e a resignada convicção que nos vai assaltando de uma bomba atómica por perto...

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

AÍ ESTÁ MERKEL EM DISCURSO DIRETO!

 

Aí está ele, o aguardado livro autobiográfico de Angela Merkel. O dito tem por título “Liberdade” (“Freiheit”) e contem memórias relativas ao período 1954-2021, isto é, vai às origens pessoais mais longínquas (incluindo os seus primeiros trinta e cinco anos de vida na República Democrática Alemã) e estende-se até ao momento em que a Chanceler sai de cena, em setembro de 2021, após dezasseis anos no centro do poder alemão e, por arrasto, europeu.

 

Diz-se por aí, algo especulativamente, que Merkel tenta mostrar-se tranquila em relação à sua pesada herança, a qual foi generalizadamente inquestionada durante um longo período em que passou por ser a estadista europeia deste início de século até que foi crescendo o conhecimento público de algumas das evidências mais polémicas e bem camufladas do seu mandato.

 

A curiosidade não pode deixar de ser grande quanto ao modo como Merkel aborda estas evidências (ou se as aborda de todo) e as enquadra e explica no contexto das respetivas conjunturas e vicissitudes históricas, embora não esteja seguro de que tal caminho intelectualmente adequado e potencialmente determinante para a compreensão de vários mistérios que marcaram o inicio de século alemão e europeu tenha sido o escolhido pela autora ou se a mesma terá cedido à pressão da imagem, da posteridade, do marketing e das vendas... Quando o livro estiver ao meu alcance, e apesar das suas setecentas páginas, não deixarei de me procurar inteirar sobre a matéria em causa e, justificando-se, de aqui revelar o que tiver conseguido apurar.


(Eulogia Merle, https://elpais.com)

terça-feira, 26 de novembro de 2024

AINDA A CERIMÓNIA DO 25 DE NOVEMBRO

Volto aqui ao festejo dos 49 anos do 25 de novembro, realizado na Assembleia da República com uma pompa e circunstância almejada por muitos dos atuais responsáveis políticos no poder (presidencial, executivo e parlamentar) mas que se saldou por momentos inéditos na nossa história democrática, consubstanciados em discursos profundamente impertinentes e descontextualizados (para não os caraterizar como verdadeiramente trauliteiros ou caceteiros). A maior culpa esteve do lado dos pretensos “vingadores”, uns por incapacidade intrínseca de verem mais longe (como Paulo Núncio, um incomparável matarruano da nossa vida política), outros por completa incultura liberal (como Rui Rocha, um reacionário dos sete costados revelado em inimagináveis acusações indiretas ao 25 de abril), outros ainda por dever de ofício populista (como André Ventura, um protofascista em ode à barbárie praticada nas colónias), outros finalmente pela total ausência de cultura política de um cristão-novo que entende ter visto a luz já na fase declinante da vida (como Miguel Guimarães, um médico capaz que se deixou vaidosamente perder em favor de um exercício político tristemente abaixo de medíocre). Além de um Professor Marcelo em discurso bem esgalhado – embora num quadro em que voltou a evitar comprometer-se, como presidencialmente lhe competia – salvou-se Aguiar-Branco que, do alto de uma já longa experiência a “virar frangos” em contexto democrático, tentou com algum sucesso “colar os cacos” que tantos dos seus companheiros partidários ou de caminhada se andaram a esforçar por produzir. Até para o ano!


segunda-feira, 25 de novembro de 2024

A GLÓRIA DE MELO E NÚNCIO

Passam hoje 49 anos sobre o 25 de novembro de 1975. Uma data que a pequenez politiqueira de alguns – da desonestidade pseudoiluminada do CDS de Nuno Melo e Paulo Núncio ao triunfalismo deslumbrado do PPD/PSD de Luís Montenegro, ao liberalismo reacionário de Rui Rocha e ao populismo aproveitador de André Ventura – quis transformar num exercício saloio e de mau gosto por parte da maioria dos representantes de um país que decidiram celebrá-la ao cabo de 49 anos transcorridos. Por este(s) dia(s), os nossos media e similares estão cheios de considerações factuais e analíticas sobre a matéria, para as quais remeto os interessados na exploração de um tema que o não justifica – porque a mais pura das realidades é que o que está em causa corresponde a uma “mistificação histórica e política do 25 de novembro”, que o apouca na medida em que verdadeiramente “o que se está a comemorar não é o 25 de novembro...” (título da crónica de José Pacheco Pereira no “Público”), por um lado, e é também que “todo o processo que culminou no 25 de novembro foi construído por Mário Soares, o PS e a ala militar moderada do Grupo dos Nove” (citando a peça de Vítor Matos na “Revista do Expresso”), por outro lado. Adaptando Batista Bastos, quase apetece perguntar onde estariam os pais ideológicos e os executores destas comemorações naquele dia...

NUVENS NEGRAS SOBRE A UCRÂNIA E A EUROPA

 


(Seria difícil imaginar a um cidadão medianamente interessado pelas questões internacionais imaginar que a guerra na Ucrânia pudesse entrar num lufa-lufa de última hora determinado pela alteração política nos EUA. Mas é isso que está efetivamente a acontecer com a Administração Biden, titubeante ao longo do seu percurso, a tentar influenciar o curso da guerra e as possíveis negociações que o destemperado Trump irá certamente promover para tentar cumprir a sua promessa de acabar com o conflito. Essa aceleração de última hora acontece com as autorizações dos EUA e do Reino Unido para a Ucrânia poder usar os mísseis de longo alcance americanos e britânicos para atingir o território russo no âmbito de um certo limiar de quilometragem. No entanto, essa aceleração acontece num período particularmente difícil para as forças ucranianas que nos últimos dias não têm conseguido consolidar plenamente a sua incursão em território russo e suster o avanço das tropas russas no leste do seu território. Tenho todas as dúvidas do mundo que esta autorização americana e britânica vá produzir efeitos práticos concretos no que me parece ser fundamental para umas mais que prováveis negociações impostas por Trump – reduzir ao mínimo o território ucraniano ilegalmente ocupado. Não me parece de facto que a possibilidade de atingir alvos específicos dentro de um território tão vasto como o da Rússia venha a ter consequências na redução do território ocupado pelas forças russas em solo ucraniano. Teria sido preferível ter apoiado com mais intensidade e vigor o esforço de defesa ucraniano do que autorizar a exportação do conflito para território russo. E se é verdade que a intensidade e o vigor da resistência ucraniana pode ter sugerido a ideia de que o território ocupado pelos russos em solo ucraniano seria sempre reduzido, não é menos verdade que tudo indica que a Ucrânia vai partir para umas eventuais negociações numa posição francamente desfavorável, apesar desta aceleração de última hora que não chegará a ser um volte-face.)

Não sou especialista para me atrever a antecipar o que irão ser essas negociações impostas por Trump. Mas, qualquer que seja o modelo que vai ser seguido, o ponto de partida será sempre o do estado da arte da ocupação. Pode dizer-se que a ocupação ucraniana em torno da região russa de Kursk poderá valer-lhe alguma capacidade de troca com parte do território que a Rússia ocupa em território ucraniano, mas esse poder de troca será sempre limitado.

Pelo que tenho lido na imprensa internacional, um de dois grandes cenários poderá ocorrer. O primeiro, poderá partir do estado da arte atual em termos de ocupação, criando uma zona desmilitarizada, não imagino gerida por quem, mas dificilmente esse cenário não será entendido na Ucrânia como uma derrota e uma perda de território. O segundo, mais gravoso e que será sempre entendido como uma vitória do infrator, ou seja, de quem invadiu contrariando o direito internacional, consistirá na anexação do vasto território do Donbass e a ratificação da Crimeia como parte do território russo. Claro que cenários mais gravosos poderiam ocorrer como a perda de independência ucraniana. E existem outras dimensões das possíveis negociações que têm sido menos discutidas, como a entrada da Ucrânia na União Europeia e uma eventual integração na NATO, esta dificilmente aceite pelos poderes russos.

Tudo isto acontece porque o Ocidente em geral e a NATO não parecem dispostos a obrigar pela força o autocrata Putin a recuar, entrando num ambiente de guerra aberta e assumida. Creio que Putin parte desse pressuposto, já que o testou com êxito em diferentes momentos e conhece mais profundamente o modo de estar dos europeus e americanos do que nós conhecemos o quadro geral de uma autocracia com as raízes imperiais russas.

Um povo inteligente como o Ucraniano já terá percebido o contexto que se avizinha para uma possível de negociação de paz. E, em meu entender, é hoje para mim claro que a troca intertemporal entre não ter ajudado no início a Ucrânia a resistir com mais recursos à invasão autorizando agora o uso de mísseis de longo alcance em território russo foi claramente desfavorável aos ucranianos. No meio de tudo isto, a Alemanha parece perdida e uma barata tonta de que a sua crise política, com eleições em Fevereiro próximo, é apenas um sintoma.
 

domingo, 24 de novembro de 2024

DEPOIS DA TRANSIÇÃO...

 

(Ilias Makris, https://www.ekathimerini.com)

 

Sensação altamente desconfortável de vivermos um breve período transitório... Uma transição com traços previsíveis de significativo grau de incerteza e perigosidade, da qual a Europa – desunida e desgovernada – parece ir irromper como o elo mais fraco de uma cadeia irreconhecível de retrocesso e desordem...

sábado, 23 de novembro de 2024

SIM, DEMOGRAFIA AINDA E SEMPRE, MAS NUMA PERSPETIVA MAIS GLOBAL

 

(Decididamente, o país não atina em desenvolver uma abordagem coerente ao desafio do declínio demográfico. Continua a não prestar a atenção devida ao comportamento da taxa de fertilidade, sobretudo no contexto de mulheres cada vez mais qualificadas e com processos de profissionalização e entrada no mercado de trabalho cada vez mais exigentes. Um bom exemplo dessas dificuldades é a importante referência que foi realizada sobre o desafio do declínio demográfico no Acordo de Parceria para o período de programação com horizonte 2030 e a muito deficiente operacionalização dessa abordagem no quadro dos Programas regionais e nacionais temáticos do PT 2030. O programa PESSOAS 2030 que se chama mesmo Demografia, Qualificação e Inclusão fica, por exemplo, bastante aquém de uma abordagem compreensiva e coerente a esse desafio. Mas a principal limitação que vejo em tudo que tem sido discutido sobre o tema é uma certa incapacidade de ir um pouco além da nossa costumeira e pretensa especificidade. Ou seja, incapacidade de perceber que estamos perante um problema global, que já não é apenas dos países da Europa do Sul, Portugal, Espanha e Itália que apresentavam bem há pouco tempos das mais baixas taxas de fertilidade total do mundo, números que poderiam inspirar aos mais afoitos nas questões especulativos a ideia de que poderia haver algum problema com espermatozoides por este lado do mundo. Como veremos, com exceção da África, o recuo na taxa de fertilidade é de facto impressionante. Se pressupusermos que este contexto vai influenciar em grande medida o comportamento da emigração-imigração no mundo, não é difícil concluir que a concorrência pela atração de imigrantes vai ser dura, o que é tanto mais paradoxal quando o populismo político que grassa por aí tem no combate à imigração um dos seus principais combates. Este mundo está louco e parece ainda não ter compreendido que está a mingar e, que estando nessa posição, se abre uma grande interrogação sobre a capacidade de manter os níveis de bem-estar material a que muita gente está habituada.)

Aproveito para juntar às minhas próprias reflexões sobre o tema um importante artigo de Noah Smith que acaba de ser publicado no seu substack. O artigo designa-se provocatoriamente de “Ninguém sabe como parar que a humanidade continue a mingar”. E não menos lucidamente Smith interroga-se por que razão ninguém fala sobre este importante problema. É exatamente isso que penso. Até agora todos fazem umas cócegas ao problema, criam grupos de trabalho a esmo, mas a verdade é que o panorama que está diante de nós é ameaçador e não será seguramente o facto da África ser o único continente que terá três ou quatro décadas até que mingue também que nos vai resolver o problema. Mas já agora, ignorar que a transição demográfica em África vai continuar a fazer disparar a emigração africana será de uma cegueira absoluta.

Falar da ainda exceção africana obriga-nos a reconhecer que se a África tem ainda algumas décadas de potencial demográfico isso é porque se trata do continente em que a progressão do desenvolvimento económico foi mais lenta. Acaso tivesse sido mais rápida e já a taxa de fertilidade das mulheres africanas estaria a descer a ritmos bem mais acentuados dos que estão a ser registados. Parece um paradoxo, mas não é. Sim, é essencialmente o desenvolvimento económico e social que traz o declínio demográfico, pois rebaixa a taxa de fertilidade e as melhorias sociais e sanitárias rebaixam a mortalidade e fazem com isso acentuar o envelhecimento da população.

Se compararmos os dois grandes problemas das sociedades modernas, a ameaça climática e o declínio demográfico, ambos sombrios, a verdade é que a evolução do preço da energia renovável traz-nos esperanças, que o declínio demográfico não tem encontrado.

A evolução demográfica tem sido rápida e impressionante e o número de países com taxas de fertilidade abaixo dos 2,1 que é o número mágico da reprodução simples das sociedades é assombroso, passando os próprios EUA a partir de 2008 também a engrossar esse grande contingente, sobretudo porque a taxa de fertilidade na população hispânica desceu a ritmos impressionantes.

Tal como sucedeu em Portugal, em que se presumia que a taxa de fertilidade descesse menos em territórios rurais e em que a influência da Igreja fosse mais determinante, também no mundo não é a religião que tem impedido a descida continuada da taxa de fertilidade, como o observado, por exemplo, na população islâmica. Admirados? Admito que sim, sobretudo quando vemos as curvas de evolução da taxa de fertilidade em países como o Afeganistão, a Arábia Saudita e o Irão (ver gráfico Our World Data abaixo).  

Não vos vou maçar com os efeitos que este fenómeno de uma população a mingar terá sobre o crescimento económico, a evolução da força de trabalho e da produtividade aparente do trabalho. O ponto em que queria insistir está já apresentado. Estamos a falar de uma tendência transversal a todo o mundo e mesmo, como já anteriormente referi, o continente africano partilhará mais tarde ou mais cedo, direi em função do seu nível de desenvolvimento económico, esta tendência.

Talvez fosse sensato encarar de vez o comportamento da taxa de fertilidade como um fenómeno societário que exigira a integração de diferentes abordagens e políticas. E talvez ainda fosse mais sensato olhar para o progresso tecnológico de outra maneira. Até aqui, sobretudo nos momentos de crise e de desemprego mais generalizado, a ameaça tecnológica foi sempre perspetivada como uma ameaça acrescida ao desemprego. Relembro que tais suspeições infundadas no longo prazo foram construídas em contextos de crescimento demográfico e não de populações a mingar. O contexto alterou-se totalmente. Em contexto de rarefação progressiva da força de trabalho não será de reequaciona essa ameaça e, pelo contrário, encontrar na revolução tecnológica um dos antídotos para o inverno demográfico que ameaça generalizar-se por todo o mundo?
 

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

QUANDO ASSIM É…

 

Mais um excelente texto de Manuel Carvalho (MC), hoje por hoje um dos nossos jornalistas mais conhecedores e mais competentes. Desta vez, MC aproveitou uma crónica sobre as propostas de alteração ao OE, na sua coluna “Memória Futura”, para deixar um recatado mas acutilante recado (passe o pleonasmo!) ao atual Governo – um executivo liderado pelo fogoso e sempre exaltado Luís Montenegro que se apresentou como “um governo que faz” mas cuja narrativa foi morta pelo “inenarrável caso do INEM” em que “nem sequer foi capaz de perceber o que tinha de fazer”, ou seja, e a terminar: “essa ideia do dream team que veio para mudar o país acabou no dia em que o Estado foi incapaz de acudir aos portugueses em situações de emergência”. Tudo isto sem deixar de nos recordar o estado esfarrapado em que de há muito vivemos a nível de estratégia e liderança governativa (ou falta delas) com uma simples e lapidar referência cumulativa aos “muitos eleitores estafados com a modorra dos anos de António Costa”. E, como diz o outro (seja lá ele quem for!), “quando assim é”...

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

DEZ ANOS DE MARQUÊS

Dez anos passaram desde que José Sócrates foi detido, de um modo aliás impróprio para não dizer infame pelo que revelou sobre o estado da Justiça em Portugal. Estes dez anos vieram pôr em evidência outras dimensões grotescas do mesmo, capazes até de deixarem estarrecido o mais crédulo dos cidadãos. O protagonista, por seu lado, não tem parado de disparar em todos os sentidos de vitimização pessoal e acusação do resto do mundo, em manifestações crescentemente insolentes e bem comprovativas de uma personalidade estranha e algo dúplice – eu cá continuarei, julgo que para sempre, envolto no mistério de tentar compreender os drivers de um homem que tinha tudo ou quase tudo para ter tido sucesso e sido tranquilamente feliz...


(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

TALVEZ O DIA DO JUÍZO FINAL PARA PEDRO SÁNCHEZ

 

                                    (Comissão de Investigação do caso KOLDO)

(Pelo acompanhamento regular que faço da política espanhola concluo que hoje poderá ser uma espécie de dia D ou de juízo final para a sobrevivência política do governo de Pedro Sánchez e designo-o assim porque, também politicamente, a companheira de governação Yolanda Diáz e o Sumar ter-se-ão ausentado para parte incerta, na sequência do varapau político que tem atingido a formação da ambiciosa política galega. Como dizia há dias, Sánchez tem sido uma espécie de “sempre em pé” da política espanhola, ganhando forças onde parecia elas não existirem e praticando malabarismos de acordos políticos numa verdadeira selva de contradições, entre os seus apoiantes no Parlamento e entre estes e a também divida direita e extrema-direita espanhola. É neste registo que tem de ser compreendida a aprovação de Teresa Ribera no Parlamento Europeu para vice-Presidente da Comissão Europeia. Essa aprovação, garantida pela posição dos Populares Europeus que abandonaram o seu voto de rejeição, acabou por ser conseguida por Sánchez cedendo às exigências do Corleone Manfred Weber e de Meloni e Orbán, deixando passar Raffaele Fitto, um Comissário direitista, que passa a ser um cavalo de Troia na Comissão e a monitorizar com atenção dado seu programa de intenções. Mas se a aprovação de Ribera deixou de ser um problema para Sánchez, isso não significa que esta semana ainda a correr não se transforme no já citado juízo final para Sánchez, já que no Parlamento espanhol e nos corredores da justiça irão acontecer questões que podem ser consideradas cruciais para a sobrevivência política do governo de Sánchez. As questões são tão sensíveis que há jornalistas espanhóis que dizem que, saindo Sánchez ileso da contenda já não será um “sempre em pé” da política espanhola, mas um verdadeiro mago Houdini dessa mesma política, tal é a dimensão dos truques e malabarismos praticados. Na minha apreciação, tenho dúvidas que haja magia suficiente para Sánchez passar incólume pelo que se avizinha.)

O aperto a que aludo tem duas dimensões – uma no plano fiscal que mexe com exigências da Comissão Europeia e condiciona uma tranche importante de receção de Fundos Europeus (estimam-se cerca de 7 mil milhões de euros) e uma outra no plano da justiça e que se prende com o caso KOLDO em que o PSOE, das margens ou do core político, se envolveu ou deixou envolver, o desenvolvimento do caso irá revelá-lo. Embora possam evoluir praticamente em simultâneo, são lios diferentes e por isso devem ser assim analisados.

O imbróglio fiscal pode ser caracterizado como um erro de cálculo da ministra responsável pela pasta das finanças Maria Jesús Montero. Em vez de uma simples aplicação da diretiva europeia sobre o imposto de 15% sobre as multinacionais, o governo de Sánchez optou por uma jogada de mais largo alcance, metendo-se no covil das contradições entre os seus próprios apoiantes e do próprio Congresso, isto depois do Tribunal Constitucional espanhol ter rejeitado uma revisão do imposto sobre as sociedades, diferindo uma receita fiscal não despicienda de cerca de 5 mil milhões de euros. Subidas de impostos como o IVA turístico, um imposto sobre os ricos, o imposto diesel para equiparar fiscalmente o gasóleo e a gasolina e um imposto sobre as empresas de energia vieram trazer ainda mais agitação, abrindo uma caixa de Pandora de reações das diferentes forças políticas, incluindo as que apoiam no Parlamento o Governo. Com suspensões forçadas do trabalho parlamentar, que alguns jornais espanhóis entenderam como uma espécie de sequestro até que viesse fumo branco das negociações, a questão decide-se hoje num tipo de tudo ou nada que tudo leva a crer irá correr mal ou, se não correr, o produto final poderá ser algo de inenarrável.

Retiro sempre destas coisas algum ensinamento e desta vez é de comparação com a situação política nacional. Comparando com o que se passa com o apoio parlamentar ao governo de Sánchez, a situação em Portugal é uma brincadeira de meninos birrentos e mimados, mesmo tendo em conta as diatribes do Chega. Valha-nos isso.

Quanto à outra dimensão, o caso KOLDO, que ainda remonta ao período pandémico e que se prende grosso modo com encomendas de materiais sanitários, máscaras e coisas do género, causou algum abalo no PSOE e determinou, entre outros danos, a saída do grupo parlamentar do PSOE José Luís Ábalos, ex-ministro dos Transportes, que aliás em algumas votações tem assumido posições contra o Governo. Se a saída de Ábalos estancou em parte a contaminação política do caso, os desenvolvimentos em torno do empresário corruptor Victor de Aldama vieram colocar de novo Sánchez e o PSOE sob fogo. 

O jornalista Gonzalo Bareño da VOZ DE GALÍCIA vem na sua crónica de hoje trazer uma notícia inquietante – o empresário que está preso terá solicitado ser ouvido hoje para responder a todas as perguntas do juiz que segue o caso e da sua própria defesa. Logo hoje? Não será certamente por acaso e anuncia tempestades fortes sobre Sánchez e o Governo em dia de votação do dossier fiscal. Em política nunca há coincidências e por isso Sánchez terá antecipado para hoje o seu juízo final … ou a sobrevivência política segue dentro de momentos. 

Nota complementar

A leitura do artigo “De la A de Ábalos a la Z de Zurab: guía para no perderse en las tramas de corrupción de Víctor de Aldama”, publicado pelo El Español, é interessante para compreender a trama do caso KOLDO. Para compreender o que está em causa na reforma fiscal espanhola, o artigo do El País é um bom auxiliar.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

O REGRESSO À VIDA DE EX-MINISTROS

 

(Há dias, quando aguardava o início de uma reunião na Fundação Calouste Gulbenkian, vi o ex-Ministro da Ciência e Tecnologia e do Ensino Superior, Manuel Heitor, com o seu capacete de motard ou de simples ciclista na bilheteira, imagino que adquirindo bilhetes para um qualquer espetáculo. Hoje, li com atenção a entrevista ao Público de outra ex-Ministra do mesmo ramo, Elvira Fortunato, também de regresso ao seu laboratório de sempre, imagino não com os mesmos traços de informalidade do seu antecessor na pasta. São de facto duas personalidades bem distintas que regressam às suas vidas universitárias e de investigação depois de uma passagem pela decisão política. Este é um tema que me interessa vivamente e que se desdobra em dois – os termos em que o exercício da própria função política é concretizado e as condições em que o regresso à vida normal é assumido, o que significa que não me interessa de todo o regresso de ex-Ministros à política, após a conclusão do seu serviço público. A experiência de incursão pela decisão política de investigadores e universitários proeminentes não é propriamente um mar azul de êxitos de transformação conseguida. Não direi que esse salto se traduz apenas numa ilusão de resultados de transformação, mas face aos resultados alcançados não estou seguro de que uma análise custo-benefício conduzida apenas do ponto de vista do interesse público proporcione resultados claramente positivos. Imagino que há variáveis a ter em conta, designadamente a consistência das equipas de investigação a partir das quais se concretiza a saída, o que parece ser o caso de Elvira Fortunato, para compreendermos a comparação entre o que se perde e o que se ganha com esta passagem pelo poder de gente proeminente na investigação.)
 

Quanto ao exercício das funções políticas, tenho para mim que nem sempre os protagonistas conseguem manter o equilíbrio entre uma certa informalidade na condução das suas vidas de político (a) e a necessidade de manter uma certa gravitas. Quando, por exemplo, na ânsia de realizar uma política de proximidade, Montenegro decidiu, aconselhado ou por decisão própria, não interessa, acompanhar os socorristas do acidente no Douro no próprio barco de salvamento, acho que ele perturbou esse equilíbrio, além, claro está, de ter introduzido uma perturbação desnecessária na operação.
 

Mas, regra geral, gosto muito de ver os políticos, fora do exercício oficial das suas funções, a assistir a um espetáculo, ou simplesmente a dar uma passeata por uma calçada qualquer. Estou fora do tempo, mas apreciava muito o estilo do Olof Palm na sua informalidade e não era por isso que perdia a sua enorme gravitas. Em sentido contrário, lembro-me do espalhafato do Dr. Fernando Gomes nas suas viagens na TAP ou Portugália, espalhafato que transportou para a sua atividade na SAD do Futebol Clube do Porto, pretensamente branqueando as tropelias de Pinto da Costa em fim de ciclo. Aliás, esse espalhafato valeu-lhe algumas deliciosas críticas na corte de Lisboa, diria eu bem merecidas embora produzidas por centralistas empedernidos da linha. Lembro-me ainda em registo próximo do modelo Olaf Palm do modo como o saudoso Jorge Sampaio vivia a sua experiência política e os momentos de lazer que ensaiava (lembro-me da sua passagem regular pelos Dias da Música no CCB).
 

Quanto à translação de cientistas e investigadores proeminentes para o campo da decisão política, e atenção não estou a falar de trânsfugas que já não viam a investigação há longo tempo ou que praticamente já não davam aulas, porque em relação a eles já não vale a pena perder tempo para realizar análises custo-benefício do ponto de vista do interesse público, é uma questão que vale a pena discutir, senão pelo menos na perspetiva da motivação que justificou a decisão.
 

Imagino que o que leva parte dessa gente a aceitar o salto de funções é a avaliação de que poderão infletir coisas e dar um outro rumo a matérias ou a constrangimentos que experimentaram no exercício anterior das suas práticas. Creio que muitas vezes um bom exercício de autoavaliação sobre as razões para esses constrangimentos ou limitações ditaria que a probabilidade desses fatores serem resistentes e não dependerem apenas de vontade política tenderia a dissipar a ilusão de que meter as mãos na massa será algo de ilusório.
 

A entrevista da Professora Elvira Fortunato ao Público é muito esclarecedora a vários níveis. 

Em primeiro lugar, porque o entusiasmo da cientista pela investigação que produzia está intacto e diria mesmo que reforçado. A sua notoriedade na temática dos transístores em papel granjeou-lhe uma reputação internacional indiscutível e pela entrevista percebe-se que está de novo “on the Track”.
 

Depois, porque a sua perspetiva do que se passa em matéria de investigação científica e tecnológica na China vale a pena ser lida com muita atenção e por isso tenho em vários posts alertado para que o ocidente não está a ver bem o cu de boi em que se vai meter se hostilizar totalmente a China nesse campo. Quando uma cientista como Elvira Fortunato declara na entrevista que veio da China “esmagada”, isso quer dizer muita coisa.
 

A um terceiro nível, é muito esclarecedor o testemunho da ex-Ministra sobre a burocracia do Ministério e do ambiente geral em que a ciência e tecnologia se inscrevem. Aliás, a burocracia é apontada pela ex-Ministra como a grande responsável da sua ação ter ficado eventualmente abaixo das expectativas que ela própria criou quando aceitou o desafio que lhe foi colocado.
 

Aqui está um belo exemplo de uma má avaliação de contexto. De facto, todos os cientistas e investigadores que tenho entrevistado em alguns trabalhos profissionais apontam a burocracia como o grande mal do sistema em que operam.
 

Por fim, um pormenor delicioso da entrevista, sobretudo proveniente de alguém do sistema científico e tecnológico localizado na aglomeração da capital. Referindo-se à sua experiência como governante, Elvira Fortunato afirmou, em termos esclarecedores: “Aprendi muita coisa. E houve uma coisa de que gostei muito e disse isso várias vezes ao primeiro-ministro: não conhecia o meu país. Temos um país riquíssimo, mas vivemos um pouco em bolhas. Nunca tinha tido a oportunidade de visitar tantos institutos politécnicos, tantas universidades como visitei nestes dois anos. E temos coisas espetaculares a nível nacional. E também as empresas. Temos empresas fabulosas.”


Pois, isto dos mapas mentais do país é mesmo importante. As bolhas também.

 

terça-feira, 19 de novembro de 2024

FAZEM ESTRAGOS, MAS DIMENSÃO PARA CORLEONES...

Vou atrás do último post do meu colega de blogue para reforçar o que nele escreve à boleia de Fernando Salgado (“Voz de Galícia”) e de Fernando Garea (“El Español”). O pantomineiro acima é o alemão Manfred Weber, um tipo que manda no PPE e inveja até ao tutano o poder de Ursula von der Leyen – os portugueses também não esquecem as suas provocações e maldades durante o período da Troika – e que agora encontrou, através do desesperado Alberto Feijóo (líder do PP espanhol), um eventual caminho de afirmação pessoal à custa do patrocínio de uma mudança histórica no contexto da construção do projeto europeu (a aliança, mais ou menos explícita, entre sociais-democratas e cristãos-democratas, hoje de algum modo ainda representados pelo PPE) segundo a qual o populismo de direita (ECR, desde logo, mas seria o que tivesse que ser) substituiria o S&D na coligação de comando dos destinos europeus (Comissão e Parlamento).

 

Depois há o já referido Feijóo, alguém que quase pôde ser presidente do Governo espanhol não fossem as habilidades de Pedro Sánchez mas que tem vindo a revelar desde aí uma debilidade estratégica e uma sede de vingança não compatíveis com as ambições que ainda ostenta. A nomeação de Teresa Rivera, entretanto posta em banho-maria, foi o expediente que encontrou para hostilizar o seu arqui-inimigo, segurar Mazón, lançar a confusão numa Espanha atordoada com a tragédia de Valência e, em conjunto com Weber, abanar negativamente a situação complexa que se vive no seio da União Europeia. E sim, a esquerda moderada reagiu utilizando a indesejável nomeação do “melonista” Raffaele Fitto (que tinha sido negocialmente engolida em seco) como elemento de contrapartida, assim acabando por ter sido postas em suspenso todas as nomeações de vice-presidentes da Comissão. As jogadas de bastidores prosseguem e já ninguém consegue garantir que a nova Comissão esteja em condições de arrancar no início do mês que vem – há que lhe chame realpolitik, eu prefiro ver em tudo isto uma manifestação inequívoca de quanto impera a falta de valores e a pouca decência nos políticos que hoje se nos deparam.


(Ricardo Martínez, http://www.elmundo.es)

(Emilio Giannelli, http://www.corriere.it)

CORLEONES DA POLÍTICA EUROPEIA

 

(O sempre perspicaz jornalista galego Fernando Salgado, a quem recorro frequentemente, tem na VOZ DE GALÍCIA uma inspirada crónica sobre as questões ainda pendentes na composição da “nova” Comissão Europeia de Ursula von der Leyen. A parte fundamental dessas questões pendentes relaciona-se com a ainda não validação do nome da espanhola Teresa Ribera para Comissária e Vice-Presidente de von der Leyen. O que é o mesmo que dizer que, em tempos em que a União Europeia deveria estar unida em torno das preocupações de futuro, como o assinalou Borrel na sua despedida, assiste-se a uma perigosa interdependência entre questões de política nacional, a luta PP-PSOE em Espanha, e as questões europeias. O sal da crónica de Salgado está no facto de ele invocar a máxima de Corleone no Padrinho, de que não são questões pessoais, mas apenas questões de “business”. Como aliás tive desse facto uma ampla premonição, tudo se enraíza na tragédia da Comunidade Valenciana, que apelidei em crónica própria de tragédia da governação multinível em ambiente de resposta a catástrofes. O PP de Feijoo não aguentou bem a incompetência de atuação do líder regional, Mazón, PP de quatro costados e se bem que nestas tragédias não haja, regra geral, nível de governação, nacional, regional ou local que salve o coiro, tentar inverter a origem da incompetência do regional para o nacional mostra bem o desespero que a situação provocou ao PP, cansado de tanto lutar para arredar Sánchez do poder e cada vez mais agoniado pelo estatuto de e “sempre em pé” que Sánchez tem assumido, com os malabarismos mais estranhos e perigosos. A arma que estava mais à mão era precisamente a ida de Teresa Ribera para a Comissão Europeia, já que a política espanhola estava no Governo e tinha responsabilidades de intervenção na resposta à catástrofe.)
 

A crónica de Salgado bate forte e feio na aliança em curso entre o PP de Feijoo e o grupo dos Populares Europeus no Parlamento Europeu, chefiado pelo alemão Manfred Weber. Se existe personalidade europeia em que menos confio sobretudo do ponto de vista de barrar o caminho à normalização da extrema-direita, Manfred Weber personifica bem esse estatuto. Estou claramente com Salgado quando ele refere que “Weber pretende liquidá-los, a Sánchez e a Ursula, ou pelo menos debilitá-los, porque ambos representam os últimos obstáculos que o impedem de alcançar o seu objetivo: incorporar a extrema-direita, uma vez ultrapassado o cordão sanitário, na governação da União Europeia”.
 

Há aqui duas matérias que importa distinguir bem.
 

Uma coisa é a legitimidade do combate político às manobras de resiliência no poder por parte do PP, tanto mais legítimo quanto mais se conhece a estranha heterodoxia e o caráter ziguezaguiante do comportamento de Sánchez para se manter no poder. Permanentemente obrigado a negociar com os seus parceiros regionalistas do acordo parlamentar que mantém o PSOE no Governo, cada traço negocial acrescenta instabilidade à situação política e, nesse contexto, a barganha política é totalmente legítima. Já estender essa barganha política ao “depois” de uma tragédia com as proporções da ocorrida na Comunidade valenciana revela bem o gelo fino em que se desenvolve a política espanhola, tão fino que me espanta não tenha ainda quebrado totalmente.
 

Mas outra coisa bem diferente é transpor essa barganha política para o plano europeu, sobretudo neste contexto. Não acredito que esse passe de mágica de Feijoo, procurando triturar uma das mais competentes peças do governo espanhol, sobretudo na matéria da transição climática, não tenha tido a aprovação e aplauso de Manfred Weber. Certamente que haverá águas passadas entre Weber e Sánchez que tenham ajudado à missa, mas creio que a inspiração de Salgado não deve andar ao lado da raiz do problema.
 

O que me parece é que a União Europeia se prepara lentamente para acolher o novo período de geopolítica mundial anunciado pelo entronizado Trump. Não sou particular adepto de analogias históricas descontextualizadas, fruto regra geral de pensamento banal e pouco fundamentado. Mas este comportamento de normalização e não de cerrar fileiras das instituições europeias assusta até o cidadão mais afastado da discussão política. 

Nota complementar

Se havia dúvidas da perversidade de tudo isto, chego agora a uma notícia que dá conta da negociação de Sánchez para deixar passar a candidatura de Meloni do ultra-direitista Raffaele Fitto em troca da aprovação de Teresa Ribera. Perversidades de mais para meu gosto.

 

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

À BOLEIA DE ANA SÁ LOPES

Já aqui há dias me referi a Ana Sá Lopes (ASL) como uma jornalista capaz, porque competente e imaginativa, e corajosa, porque voluntarista e afoita. Encontramos hoje a sua assinatura em duas peças do “Público” que nos remetem para questões que marcam a paupérrima atualidade portuguesa: numa crónica (“Não pesam na consciência de Montenegro as mortes no INEM?”), arrasa a reação do primeiro-ministro ao caso das mortes alegadamente ligadas a falhas do INEM e, por conseguinte, da responsabilidade da(s) sua(s) tutela(s); num outro texto (“A decadência da social-democracia e um PS agarrado ao ‘espírito do tempo’”), socorre-se de Paulo Pedroso (PP) para refletir sobre a crise das sociais-democracias e justificar as opções e hesitações de Pedro Nuno Santos (PNS).

 

A questão do INEM é realmente tratada de modo arrasador. Vejam este precioso excerto: “O que são os mortos do INEM perante esse projeto grandioso que é Portugal? Um ponto e vírgula numa história milenar para cujo sucesso Luís Montenegro vai – não sei se acredita mesmo nisso, mas acha conveniente dizer – contribuir. A frase é um triste resumo da nossa desgraçada praia lusitana: ‘Eu quero que todos saibam que, apesar de estarmos preocupados e a resolver esse problema [INEM], há um projeto muito maior do que esse para resolver em Portugal. É o projeto de nós acreditarmos no nosso país, de nós acreditarmos que conseguimos construir mais oportunidades, que conseguimos gerar mais riqueza.’” E este não menos precioso final: “O INEM não funciona, mas se mudarmos de assunto, defende Montenegro, ‘damos esperança’ a Portugal. Não é exatamente a versão rural da frase de Maria Antonieta ‘não têm pão, comam brioches’, mas é andar a brincar com a tropa.” Fica tudo dito, e bem-dito, apesar de a ministra Ana Paula Martins ainda hoje ter declarado com a convicção possível que se levanta todos os dias para cumprir a sua missão de governante porque “a minha missão é dar resposta a problemas e é isso que estou a fazer”. E quando assim é, mesmo dada a improbabilidade de um happy ending, as pessoas insistem, insistem, insistem na esperança vã de que com elas o final venha a ser diferente.


(Luís Afonso, “Bartoon”, https://www.publico.pt)

 

A questão da crise social-democracia, e especialmente da sua derivação lusitana, constitui algo de mais complexo ou menos cristalino. Em termos estruturais, ASL cita PP para sustentar quatro argumentos: (i) que o PS dos governos Costa, mau grado a constituição da “geringonça” em 2015, criou a imagem de “um partido centrista, orçamentalmente responsável”, afastando-se das grandes causas da esquerda e tornando agora visível que “o PS apostou no congelamento do Estado Social para garantir a sustentabilidade da sua estratégia económica”; (ii) que PNS, “com todos os seus defeitos”, tem noção da crise das sociais-democracias e “tem uma visão do papel do PS junto do eleitorado tradicional das classes médias”, procurando “prevenir a transferência do eleitorado para a direita”; (iii) que PNS “está preso” a duas contradições, a de não se demarcar do legado de António Costa segundo a qual “o PS foi vitorioso por causa da ‘gestão responsável’ do Estado” e a de “pertencer a uma geração de dirigentes socialistas que só conheceram o poder e tremem com a ideia de ficar na oposição por muito tempo”; (iv) que, consequentemente, há a tentação no PS de aceitar que “se o discurso é localmente ganhador, não se pode diabolizar”, ou seja, que está entre os socialistas consolidada “a ideia de que o PS não pode afastar-se do espírito do tempo”, sendo que “Ricardo Leão [que PNS não quis deixar cais] é o protótipo do estado de espírito de muitos autarcas por esse país fora. Há o sentimento de que o poder autárquico é a alavanca para o regresso do PS ao poder e isso tem que ser feito com um discurso que se adapte ao espírito do tempo.”

 

Pessoalmente, não estou certo de concordar com todos os pontos acima mencionados, mas tal não se me afigura muito relevante na medida em que vejo as dificuldades da atual liderança do PS bem a montante daquela dimensão estrutural – refiro-me, por exemplo, às “cambalhotas” que têm caraterizado o seu posicionamento titubeante e até errático em sede de aprovação ou rejeição do OE para 2025. A última cedência de PNS centra-se agora no seu dito por não dito quanto à aceitação da descida de um ponto percentual do IRC (com a agravante de dar a impressão de o fazer para evitar uma situação em que PSD e Chega votassem juntos uma redução de dois pontos percentuais), assim incompreensivelmente se preparando para viabilizar na especialidade o que o levou a recusar um acordo com o PSD na generalidade. Em conformidade com este estado de coisas, não há mesmo “espírito do tempo” que possa resistir a tanta guinada (lembro o “é praticamente impossível” de janeiro passado e a miríade de sucessivas declarações que se lhe seguiram até à abstenção de 31 de outubro) nem qualquer discussão em torno que possa ter provimento ou efeito útil. E quando assim é...


(a partir de Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

domingo, 17 de novembro de 2024

TEMPOS DIFÍCEIS

 

(Uma reflexão simples de início da noite de um domingo, preparado para mais uma semana de labuta, com mais uma ida a Lisboa, desta vez para apresentar um trabalho de avaliação que coordenei para a Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação Bissaya Barreto do Programa Cidadãos Ativ@s apoiado pelo EEA Grants. O evento do próximo dia 20 de novembro tem alguma envergadura, estima-se uma participação de mais de 400 pessoas identificadas com os temas da cidadania, dos direitos humanos, do empoderamento de públicos vulneráveis e da capacitação de ONG. Inspirado pelo tema e cada vez mais seguro de que ele tem uma extrema atualidade nos tempos que correm, nada melhor de que a confirmação de que as liberdades sociais e políticas estão em queda acelerada e não apenas com o regresso de Trump ao poder. Segundo os dados da Freedom House essa queda vem de há mais longo tempo, podendo por isso dizer-se que o regresso de Trump e de outros personagens aos corredores do poder é ele próprio sintoma e consequência desse processo de erosão da liberdade, paradoxalmente validado em sede de processos eleitorais. O que também significa que confundir as liberdades democráticas apenas com a possibilidade de realização de eleições livres será no futuro próximo cada vez mais redutor. A recomposição da administração americana federal induzida pela vitória de Trump vai trazer ao exercício do poder personalidades que não se inibem de expressar a sua sedução por personalidades autocratas e regimes autoritários, agora que o controlo das instituições é total, Governo, Senado, Congresso e Supremo Tribunal de Justiça.)


O gráfico da Freedom House é bastante ilustrativo e se quiséssemos diversificar as fontes de cobertura da erosão das liberdades que vai sendo observada por todo o mundo, procurando outras fontes prestigiadas e em que possamos confiar, não seria difícil encontrar outros indicadores e gráficos mais ou menos eloquentes do que este, mas seguramente refletindo todos essas sombras que pairam sobre as liberdades sociais e políticas. Caminhamos para um contexto em que as liberdades democráticas se revelam cada vez mais a expressão de uma época relativamente curta no tempo longo e se apresentam cada vez mais rarefeitas geograficamente falando.


O Programa Cidadãos Ativ@s cuja avaliação irei apresentar na Gulbenkian na próxima quarta-feira, inserido num evento bastante mais vasto e relevante do que essa avaliação, atua ao nível micro das ONG e das Organizações da Sociedade Civil (OSC) procurando construir resiliência, capacitação e engenho nesse plano. Mas essa dimensão do fortalecimento da sociedade civil não pode deixar de ter uma mediação para a intervenção política e um diálogo aberto e franco com o exercício da política seja ela praticada a nível nacional ou a nível regional e local. Os mecanismos de valorização da sociedade civil não podem ser entendidos como a última peça da resistência política, dando de barato que a política já não consegue orientar-se para a defesa dos comuns e do interesse público. Esse combate não deve ser abandonado. Esse abandono tornará a política presa fácil dos que têm acedido ao autoritarismo através de eleições, assim como será crucial não deixar de combater os que se perpetuam no poder através do jogo democrático viciado, de esquerda ou de direita não importa.
 

Mas o gráfico da Freedom House, independentemente dos dezoito anos serem mais ou menos corretos como datação do início do processo de erosão das liberdades sociais e políticas, mostra também que muito provavelmente o mundo esteve pouco atento aos sinais dessa erosão, encolhendo os ombros ou normalizando o que não pode de todo ser normalizado.


Essa falta de atenção está perversamente presente e visível em muita gente, cidadãos medianos ou gente esclarecida e com poder mediático, que têm vindo sistematicamente a proclamar a velha tese de que afinal eles não são assim tão maus como os pintam (Trump, extrema-direita, Chega e outros que tais). A história é tão clara em fornecer-nos exemplos eloquentes dessa propensão para a banalização do mal que até impressiona
.