quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

SÁNCHEZ HUMILHADO POR PUIGDEMONT

 

(Ricardo Martínez, http://www.elmundo.es) 

Até ao final do dia, aguardei sem sucesso pela reação do meu colega de blogue ao incidente de ontem no Congresso espanhol, onde os independentistas de direita (Junts) chumbaram a lei da amnistia apresentada pelo governo de Sánchez e vieram confirmar quanto é autocentrado e pouco fiável o refugiado Puigdemont, por um lado, e quanto foi arriscada e completamente deslocada a estratégia de cedência que permitiu ao presidente do governo a sua forçada manutenção no poder, por outro. Porque, qualquer que seja o entendimento do ocorrido (uma derrota, por knock-out de um “delinquente” até, para os analistas mais à direita ou simplesmente uma paralisação da lei da amnistia e correspondente necessidade de nova negociação para os comentadores mais à esquerda), resultou ontem claro que Sánchez não irá conseguir sobreviver por muito tempo e terá de ceder o seu lugar ao PP a breve trecho. Assim demonstrando a justeza daquela velha máxima segundo a qual “não havia necessidade”.

 

COISAS DESTE DIA

 

A cada manhã, tenho por hábito já rotinado passar os olhos pelas capas dos jornais do dia (nacionais, europeus e internacionais). Daí retiro a sinalização de temas relevantes em atualidade e a carecerem de leitura e aprofundamento, mas também a deteção de incongruências e absurdos nas abordagens e escolhas da comunicação social. Acerca destes últimos, aqui deixo claros exemplos extraídos dos nossos diários de hoje, com a nota de eles provirem de diferentes dimensões (política, económica e social) e de diferentes tipos de matutinos (Público, Correio da Manhã e Jornal de Notícias).

 

A seleção da notícia do “Público” tem um fundamento algo diverso das duas restantes, mas não deixa de merecer uma referência pela atenção que vai sendo concedida às novas forças que se instalaram na política nacional, atento sobretudo o lado distorcido que os ideários das mesmas vão revelando. É o caso do PAN, um partido que “acaba por recair no centro-esquerda”, segundo a sua líder, mas que optou por patrocinar o semissecular e pouco transparente poder laranja instalado na Ilha de Jardim (designadamente sob o pretexto de que “na Madeira não há touradas”).

 

Já a chamada à colação do “Correio da Manhã” traduz uma ignorância recorrente dos nossos profissionais da comunicação, a saber a retirada de ilações analíticas alegadamente estruturais a partir de dados conjunturais; porque não, Portugal não é o campeão europeu do crescimento do PIB, antes foi apenas o segundo país europeu de maior crescimento no último trimestre de 2023 e não deixando por isso de ser um dos países do fundo da tabela em termos relativos de produção de riqueza e respetiva dinâmica.

 

Finalmente, a peça do “Jornal de Notícias” releva de um vício bem mais perigoso ao sugerir objetivamente que será o recurso ao SNS por parte dos imigrantes a (ou uma das) causa(s) das consabidas dificuldades que o dito Serviço atravessa; como se não soubéssemos que é notoriamente positivo o contributo líquido dos trabalhadores estrangeiros em termos de contribuições sociais. Ao que ainda se acrescenta que a maioria dos utentes em questão é de nacionalidade brasileira, como se não fosse esta comunidade a mais representada na sociedade portuguesa dos dias de hoje. Um título errado e erróneo que mais não serve do que para lançar a confusão e alimentar receios/ódios despropositados junto dos cidadãos mais incautos.


(Riki Blanco, https://elpais.com)

BAILINHO DA MADEIRA

(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt) 

“Deixa passar esta linda brincadeira”, assim começava a canção com que o madeirense Max celebrava a sua Ilha de origem em tempos já bem distantes. A frase veio-me à cabeça a propósito da tristíssima novela que se vem desenrolando na Madeira, seja no plano do “polvo” que finalmente se começa a percecionar de modo claro, seja no plano do desgovernado e oportunista pingue-pongue politiqueiro que por lá ocorre a cada minuto (entre o PAN, o PS, o CDS e o Ministro da República, por uma banda, e o embaraço das diversas fações do partido laranja, por outra), seja ainda no plano dos respetivos reflexos no Continente (do ensurdecedor silêncio de um Presidente da República que tanto nos habituou a falar demais mas procura agora preservar a sua margem de manobra para o próximo futuro à infrutífera tentativa do líder do PSD de não se deixar machucar por toda aquela parafernália).

 

Mas há uma dimensão bem mais problemática e gravosa associável àquela frase. E essa é, obviamente, a de uma renovada evidência do manifesto descontrolo em que está mergulhada a Justiça portuguesa. De facto, foi com espanto que o País assistiu à aterragem de dois aviões da Força Aérea Portuguesa no aeroporto Cristiano Ronaldo, ao desembarque de 150 agentes da Polícia Judiciária acompanhados de vários elementos do Ministério Público (parece que os jornalistas tinham vindo de véspera...), a um espalhafato de buscas a dezenas de residências oficiais e privadas e à detenção de três personagens (dois empresários e o Presidente da Câmara do Funchal, com Miguel Albuquerque a ser constituído arguido). Mas há mais: os detidos vieram para Lisboa há quase uma semana e, apesar de legalmente deverem ter sido ouvidos no espaço de 48 anos, continuam à hora a que escrevo por ser chamados para prestação de declarações.


Estamos claramente perante uma prova de força e poder por parte do Ministério Público, a somar aliás a várias outras de que tem sido um lamentável protagonista. Porque são inequivocamente questionáveis os modos e os tempos escolhidos, uns e outros impróprios. E porque a defesa da autonomia do Ministério Público não significa nem pode significar ausência de mínimos em termos de definição de prioridades para a sua investigação e de discrição e escrutínio da sua atuação. Por isso, aquilo que está diante dos nossos olhos é do foro de uma séria ameaça sobre o regime democrático.

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

UMA NOTA COMPLEMENTAR SOBRE O INFERNAL METROBUS

 


(Saúdo obviamente o post do meu colega de blogue sobre o metrobus da Avenida da Boavista e da Marechal Gomes da Costa e sobretudo sobre as condições infernais de tráfego que a obra tem suscitado. Sou um dos martirizados com essa situação, sobretudo quando às terças e quartas feiras tenho de subir a Avenida da Boavista no regresso a casa de Matosinhos. Gostaria apenas de acrescentar uma nota complementar e ela prende-se com a reduzida discussão pública que a solução técnica do metrobus suscitou. E aí estou a marimbar-me para a celeridade imposta pelo PRR. Essa celeridade não pode nunca contribuir para uma consciência cívica e participativa cada vez mais murcha. E a Câmara Municipal do Porto tem a obrigação de não apenas se insurgir contra o inferno das obras. Cabe-lhe também promover uma discussão ampla das soluções técnicas que se abatem sobre a Cidade, seja nas áreas mais finas e sofisticadas como a Marechal, mas também noutras zonas mais desfavorecidas.)

O meu ponto é muito simples. Sei quem influenciou tecnicamente a solução do metrobus, mas não quero entrar por aí e nem me interessa remoer sobre o assunto. O meu ponto é outro. A solução técnica escolhida, a do canal de metrobus, não é a única possível e já não estou sequer a ponderar a hipótese de não haver metrobus algum. Suspeito que as estimativas existentes de procura têm raiz em alguns trabalhos para a rede de metro e admito que não tenham sido realizadas estimativas para a solução específica de metro bus. Mas dou de barato que essa procura potencial existe.

A alternativa óbvia seria uma linha de metro. Não vi qualquer debate sobre essa matéria e a celeridade do PRR é uma desculpa de mau pagador.

Questiono por exemplo se existem boas práticas sobre a matéria noutras Cidades europeias que nos permitam confiar abertamente na solução.

Alguém me dizia há dias que a mais bondosa interpretação da obra é que, pelo menos, vai ficar um espaço canal para uma futura linha de metro, pronta para ser operacionalizada se o projeto der com os burros na água e se revelar insustentável.

Obviamente que esta voz avisada não morre de amores pela solução do metrobus, mesmo descontando a perceção infernal das obras que ele exigiu.

 

A VIDA ATRIBULADA DE ANTÓNIO GUTERRES

 


(Sou dos que, com convicção, tenho orgulho em ter um Português como António Guterres como Secretário-Geral das Nações Unidas. António Guterres poderia obviamente estar sossegado e cultural e socialmente interventivo como sempre foi a gozar as amenidades de uma reforma, fosse lá onde fosse. Mas a sua consciência crítica e social, que está indissociavelmente ligada às suas profundas convicções religiosas, levou-o a enfrentar com coragem e tenacidade os desafios de liderar uma organização internacional que está sempre sob o fogo das contradições de governação do mundo de hoje. E, de facto, talvez nenhum outro Secretário-Geral teve de enfrentar um contexto internacional tão desafiante e perigoso como aquele em que o mundo hoje vive, com a multiplicação de guerras locais e regionais e a cada vez mais intensa ameaça de um conflito mundial de maiores proporções. Certamente que António Guterres nunca imaginaria ter de estar à boca de cena de uma situação internacional de grande conflitualidade, expondo a nu de forma crua as limitações do modelo de governação mundial que a ONU protagoniza. Assumindo posições corajosas a propósito do conflito entre Israel e o Hamas, que os especialistas da diplomacia mais calculista se apressaram a criticar, Guterres tem agora de enfrentar o duro golpe de ver uma das suas agências alegadamente envolvida em ligações menos claras com o Hamas (possível envolvimento de membros da UNRWA no fatídico ataque de 7 de outubro de 2023). Isso determinou que uma dezena de países, não é difícil imaginar quais, tenham suspendido as contribuições financeiras para essa agência, complicando as já trágicas condições de assistência humanitária ao povo palestiniano. A acusação envolve a alegada participação de 12 membros da UNRWA no referido ataque e a também alegada existência de cerca de 1200 em 1300 funcionários com relações com o Hamas que Israel terá detetado cruzando informação.)

Não é seguramente de hoje e muito menos atribuível à liderança de Guterres a por vezes nebulosa atividade de algumas agências internacionais em termos de conflitos de interesses e de algumas formas mascaradas de corrupção. O mesmo acontece em agências europeias. Amigos meus angolanos torciam frequentemente o nariz a algumas agências europeias implantadas em Angola, com comportamentos que podiam confundir-se com corrupção. Como é óbvio, em organizações internacionais com uma dimensão gigantesca de efetivos e de implantação territorial é praticamente impossível evitar a ocorrência de casos tresmalhados de comportamentos menos claros. O que importa de facto é a evidência de que existem processos internos de monitorização e supervisão dessas situações, limitando-as a situações pontuais e dissuasoras e sobretudo conseguindo que isso não se transforme num efeito perverso de reprodução das condições favoráveis à corrupção disseminadas por muitos dos países sob ajuda humanitária internacional.

A literatura fornece-nos ampla evidência de que os mecanismos de distribuição da ajuda humanitária internacional em muitos desses países representam uma fonte potencial de corrupção, já que essa distribuição não pode deixar de envolver as próprias organizações da sociedade local e torna-se praticamente impossível controlar a transparência e equidade da sua atividade. Não podemos ignorar que muitos desses países são atingidos por conflitos étnicos e armados que desestruturaram toda a cadeia de relações sociais e institucionais, gerando vazios fortemente apetecíveis para a proliferação de práticas e interesses menos claros.

Os EUA foram um dos países que suspenderam imediatamente a contribuição para a UNRWA, mas Antony Blinken enunciou publicamente uma tomada de posição relativamente equilibrada, exigindo a realização de investigação rigorosa, mas não deixando de sublinhar que a ajuda humanitária da UNRWA em Gaza não poderia ser interrompida, sob pena da tragédia humanitária nesse território poder ultrapassar todos os limites do tolerável.

De qualquer modo, a verificar-se efetivamente evidência de infiltração da UNRWA por elementos do Hamas, isso pode representar um rude golpe na capacidade de afirmação de Guterres e da ONU na tentativa de infletir e moderar a reação israelita. Sabíamos que o Secretário-Geral tinha já uma vida atribulada. Sabíamos também que as pretensões de desmantelamento da UNRWA por parte de Israel não são de agora. Mas o facto é que não existe em Gaza qualquer outra agência que possa liderar a distribuição da ajuda humanitária. Por isso, o Secretário-Geral iniciará brevemente uma série de visitas aos países doadores que agora suspenderam o apoio.

Guterres e a população palestina martirizada de Gaza não mereciam este rude golpe. O Hamas parece ser cada vez mais uma organização em que tudo em que toca deixa um rasto nefasto, numa espécie de modelo de toque de Midas ao contrário. Suspender a guerra será obviamente um grande desafio, mas restabelecer as condições decentes de uma representação palestiniana será uma tarefa ainda mais ciclópica.