Só o dever e o gosto de assinalar a entrevista de um grande pensador – George Steiner (“L'Europe est en train de sacrifier ses jeunes”, Télérama, http://www.telerama.fr/idees/george-steiner-l-europe-est-en-train-de-sacrifier-ses-jeunes,75871.php) – me poderia levar a interromper assumidamente estas semanas de ausência, não só virtual mas também física.
Contenho-me na eloquência desta passagem: “No estado actual, é possível [o colapso da Europa]. Mas vamos sair desta situação de uma forma ou de outra. Irónico é a Alemanha poder voltar a dominar. É um passo atrás. Entre Agosto de 1914 e Maio de 1945, a Europa, de Madrid a Moscovo, de Copenhaga a Palermo, perdeu quase 80 milhões de pessoas em guerras, deportações e campos de extermínio, fome, bombardeamentos. O milagre está em que sobreviveu. Mas a sua ressurreição foi apenas parcial. A Europa está a passar por uma crise dramática; está a sacrificar uma geração, a dos seus jovens, que não acreditam no futuro. Quando eu era jovem, havia esperanças para todos os gostos: o comunismo, com certeza! O fascismo, que foi também uma esperança, não nos deixemos enganar. E, para os judeus, havia ainda o sionismo. Havia ideologias aos montes... Isso já não existe. Ora, quando a juventude não é tomada por uma esperança, mesmo que ilusória, o que resta? Nada.”
E já que, coincidentemente, se encerra hoje o ano, junto um calendário de 2012 (publicado no “24 Heures” de Lausana por Raymond Burki) e não resisto a contrastá-lo com “A Ideia de Europa” com que Steiner nos brindou em 2004. Começava assim essa exaltação da cultura e da memória: “A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo.” E concluía: “É porventura apenas na Europa que as fundações necessárias de literacia e o sentido da vulnerabilidade trágica da condition humaine poderiam constituir-se como base [do sonho novamente sonhado].” Bom Ano Novo!
sábado, 31 de dezembro de 2011
sexta-feira, 30 de dezembro de 2011
NA ROTA DA DESIGUALDADE?
Não podemos
ignorar que se trata de números calculados antes da incidência dos impostos
sobre o rendimento, o que aconselha alguma cautela de interpretação. A
fiscalidade pode introduzir acertos ou até consolidar os padrões de desigualdade
do topo 1% da população. Mas tendo em conta que os padrões de austeridade
impostos estão a ser mais gravosos para os rendimentos mais baixos, a tendência
será para uma rota ascendente na escala da desigualdade e não descendente em
direcção aos padrões escandinavos. O que confirma o padrão da evolução
observada entre 1990 e 2007. Os 18,3% de rendimento apropriado pelos 1% mais
ricos dos Estados Unidos impressionam, mas permitem compreender grande parte
das incidências do debate político na sociedade americana de hoje. “We are the
99%” não é de facto uma simples palavra de ordem a perder-se na vertigem do
tempo. Veio seguramente para ficar.
quinta-feira, 29 de dezembro de 2011
TER OU NÃO TER PODER DE EMISSÃO MONETÁRIA
Via Joe Weisenthal
(Business Insider), recuperado por Bradford DeLong, fica mais um gráfico
perturbador. Ele mostra a evolução recente dos rendimentos dos títulos da dívida
pública a 10 anos da Finlândia (linha verde) e da Suécia (linha laranja). Depois
de um período, sensivelmente até inícios de Março 11, em que o nível e comportamento
dos rendimentos praticamente se confundem, eis que a partir dessa data os
investidores solicitam na prática um prémio de risco aos títulos finlandeses. Abre-se
um gap entre os dois tipos de rendimentos. A data de 24.11.2011 marca mesmo um
comportamento diametralmente oposto dos rendimentos, intensificando esse gap.
Moral da história:
os mercados parecem premiar quem tem capacidade de emissão monetária (Suécia) e
penalizar quem a não tem (Finlândia). Ambos parecem ser países sérios e sem
problemas conhecidos de competitividade estrutural. Perturbador não é?
quarta-feira, 28 de dezembro de 2011
APANHADO NAS MALHAS DO AFINADOR PERFECCIONISTA
Tenho andado às
voltas com a volumosa biografia de Steve Jobs, Walter Isaacson, versão
portuguesa, aliás pouco cuidada, dadas as múltiplas gralhas que a edição
consultada apresenta. Diga-se que não sou propriamente um fan ou seguidor
inveterado do falecido Steve Jobs. A biografia interessa-me sobretudo porque
nos proporciona um valioso e multifacetado material sobre as condições de
contexto que enquadram os diferentes gadgets que fizeram a história da Apple e
a marca de Steve Jobs. Aliás, lida sob esta perspectiva de contextualização dos
processos de inovação, a biografia é a meu ver indissociável de dois artigos da
New Yorker, ambos de autoria de Malcolm Gladwell: “Creation Myth” (16 de
Maio de 2011) e “The
Tweaker” (14 de Novembro de 2011”). O último artigo inspira aliás
o título deste post. A tese de Gladwell é que o génio de Steve Jobs poder-se-ia
resumir no estatuto de perfeccionista compulsivo.
A bem documentada
investigação de Isaacson sistematiza evidências preciosas para explicar o que
tornou possível a aventura de Jobs e Wosniak, parceiro digamos tecnológico de
Jobs. Só o ambiente de mudança e liberdade da costa ocidental americana permite
situar a vertiginosa erupção de oportunidades no âmbito da qual a ascensão e
consolidação do projecto Apple têm de ser compreendidas. É também fascinante a
demonstração que a biografia opera das diferenças cruciais entre processos de
invenção e inovação. Wosniak é seguramente o génio da engenharia dos projectos
iniciais da Apple (digamos o inventor) mas Jobs é quem fareja ou intuiu as
oportunidades e concebe o produto a pensar numa tipologia de consumidor. A ambiência
descrita mostra também como a oportunidade esteve debaixo do nariz da Xerox
PARC, centro de inovação da então Xerox Corporation e que uma administração rígida
e não intuitiva frustrou as expectativas dos investigadores internos abrindo o
desenvolvimento e concretização da ideia à força simultaneamente inventiva e
inovadora da Apple.
Mas hoje o que me
interessa focar é a estimulante oposição de posturas e convicções de Wosniak e
Jobs. Wosniak tem um espírito de “hacker”, aberto ao desenvolvimento “open
source” das ideias. Jobs é o implacável protector de uma ideia e do seu
aproveitamento económico e comercial. É muito significativa a luta que se trava
entre os dois em torno da concepção do Apple II. Wosniak queria-o aberto à
invenção de outros. Jobs não suportava a “sua” máquina invadida por inventores
de garagem. A evolução desta querela nos gadgets da Apple tem hoje alguns
compromissos, mas não é difícil ver que a posição de Jobs influenciou algumas das
mais surpreendentes características dos equipamentos da Apple.
Nestes dias,
senti-me mais perto de Wosniak do que de Jobs. A família resolveu presentear-me
no Natal com um IPAD2. Por azar meu, não sei se já fruto ou não da morte de
Steve Jobs, o aparelho veio com um defeito de fabrico na câmara fotográfica,
tornando ilegíveis as fotografias tiradas. Por política, dizem-me, da Apple e
fraco poder comercial da FNAC, acrescento eu, estou há uns dias sem IPAD2,
esperando uma troca de equipamento com o pagamento já realizado. A marca pelos
vistos tem de ser ela a garantir que o equipamento tem defeito de fabrico e
exige que seja ela a decidir o que fazer. Arrogância, perfeccionismo ou
simplesmente resultado da inexistência em Portugal de uma Apple Store, não sei.
Mas seguramente a evidência de que a linha sonhadora e inventiva de Wosniak não
venceu, para desgosto de quem começava a ficar entusiasmado com o novo gadget.
terça-feira, 27 de dezembro de 2011
APRENDER COM O JAPÃO
Tal como já referi em posts anteriores, os anos 90
proporcionaram situações de instabilidade macroeconómica cujos resultados e
ensinamentos foram largamente menosprezados pelos economistas. O que é
particularmente perturbador já que esse período foi alvo de uma vasta e
multifacetada investigação que, pelos vistos, caiu em saco roto. A coexistência
de uma década de profunda estagnação da economia japonesa com as crises
cambiais das economias asiáticas com epicentro na Tailândia determinou uma
situação de forte instabilidade que só a mais longa expansão da economia
americana evitou que degenerasse numa recessão mundial.
Os ensinamentos suscitados pela década de 90 teriam sido
extremamente úteis na abordagem à Grande Recessão de 2008/09 acaso não tivessem
sido ignorados ou, pelo menos, não suficientemente recordados para influenciar
a política macroeconómica global.
Por isso, é expectável que, após 4 anos de prolongamento
dos efeitos da Grande Recessão, sem uma abordagem consistente à sua superação,
a comparação entre a situação actual e a década de 90 continue a interessar
alguns economistas na busca de soluções mais eficazes. Entre os traços de
comparação explorados, é sobretudo a situação da economia japonesa que é
objecto de mais atenção.
É neste contexto que, para leitores com formação
macroeconómica mais sólida, recomendo vivamente um artigo recente de um
investigador do Nomura Research Institute de Tóquio, Richard C. Koo. O artigo
chama-se “O mundo em recessão de balanço: causas, terapia e política”. O conceito
chave do artigo é o de recessão de balanço (balance
sheet recession). Segundo Richard C. Koo, o que caracteriza uma
recessão desta natureza é o conjunto de comportamentos posteriores a uma bolha financeira. Com o colapso dos
preços dos activos financeiros e com a permanência dos passivos
correspondentes, uma parte substancial do sector privado entra num processo de
minimização da dívida, poupando ou reembolsando parte da dívida acumulada. Esta
minimização equivale a uma desalavancagem generalizada da procura agregada,
aliás como outros economistas têm sublinhado. Numa situação deste tipo, a
desalavancagem do sector privado limita a acção da política monetária, já que o
sector privado mais endividado tende a reduzir a procura de crédito e parte do
sector bancário também atingido pelas imparidades diminui também a oferta de
crédito ao sector mais endividado. A desalavancagem do sector privado acontece
mesmo em contexto de taxas de juro próximas de zero, tendendo a provocar uma
situação de espiral deflacionária. A perda de procura agregada é contínua e
igual à soma da poupança adicional e do reembolso líquido das dívidas. É neste
contexto que a manutenção de um estímulo fiscal é absolutamente necessário para
contrariar e inverter a espiral deflacionária. Do artigo: “(…) Nada pior do que
uma consolidação fiscal quando o sector privado está doente e a minimizar a sua
dívida”.
A analogia é perturbadora: tal como em 1997 e 2001 uma
consolidação fiscal prematura comprometeu irremediavelmente a recuperação da
economia japonesa, também agora uma consolidação fiscal generalizada (friso
bem) pode conduzir a economia mundial ocidental a uma espiral deflacionária.
segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
OCCUPY WALL STREET: RAY KACHEL
(Reuters)
Parte da interrupção
festiva de Natal foi aproveitada para recuperar algumas leituras atrasadas,
designadamente sobre os movimentos OCCUPY. A leitura do vasto material jornalístico
que foi publicado sobre os principais movimentos (Londres e Nova Iorque)
constitui uma rara oportunidade não só para compreender os públicos envolvidos
no movimento, mas sobretudo para tomar contacto com histórias de vida de
fragilidade, de atipicidade, de posicionamentos e regimes precários do ponto
vista do acesso, permanência e marginalização face ao mercado de trabalho.
A imersão neste
conjunto de histórias de vida proporciona uma situação de forte desconforto
relativamente à incapacidade do pensamento económico corrente internalizar
estas situações de atipicidade face ao mercado de trabalho. A comparação entre
os movimentos de Londres e Nova Iorque, ambos focados nos desvarios do sistema
financeiro, confirma ainda a profunda complexidade dos mercados de trabalho
inglês e americano do ponto de vista dessas situações de atipicidade nas relações
de trabalho.
A New Yorker
de 5 de Dezembro de 2011, versão impressa, publica uma comovente reportagem centrada
no OCCUPY WALL STREET. O título e particularmente o sub-título do artigo
(George Packer) são apelativos: “Todas as pessoas iradas – um homem sem
trabalho encontra o espírito de comunidade no OCCUPY WALL STREET”.
Praticamente toda
a reportagem é construída sobre a história de vida de Ray Kachel. Daí o título
deste post. Kachel é um homem de todos os ofícios informáticos, nascido e a
trabalhar em Seattle, com uma trajectória anti-social comum a muitos indivíduos
que labutam no sector da economia da informação. O impacto da grande recessão
de 2008/09 no mercado tecnológico de Seattle leva-o a um processo de precarização
progressiva e de delapidação progressiva do seu reduzido património de
poupança, incluindo todos os seus gadgets informáticos, alguns deles instrumentos
do seu próprio trabalho.
A história da
reportagem foca-se na sua crescente atenção à informação proveniente do OCCUPY
ALL STREET e à sua progressiva identificação com o movimento, que o levaram
algures numa noite de Outubro a instalar-se no Zuccotti Park (Liberty Square). Pelos olhos
interpostos de Kachel, a reportagem fornece uma visão impressiva e riquíssima
das condições de ocupação até à ocupação militarizada do espaço ocupado. Kachel
redescobre o sentido de comunidade mas experimenta também as dificuldades de
participação activa no processo de ocupação.
O fim da
reportagem é arrepiante. Tendo escapado à ocupação militarizada e
desmantelamento do acampamento, algures num banco perto da ponte de Brooklyn,
tenta, em vão, no Tweeter obter alguma informação sobre o que iria passar-se após a
desocupação. Embora determinado a retomar o contacto com o processo que o
aproximou de novo de um sentido colectivo, um pensamento domina aquele seu momento
de repouso: estava só, era um sem-abrigo em Nova
Iorque.
sábado, 24 de dezembro de 2011
AUSTERIDADE E DESIGUALDADE: PORTUGAL NA IMPRENSA INTERNACIONAL
O Financial Times
de 22.12.2011 (http://www.ft.com/intl/cms/s/0/e048b072-24c5-11e1-ac4b-00144feabdc0.html#axzz1hP4qDVl2) dedica, por
fim, após um longo interregno, algumas linhas ao processo de concretização do
resgate financeiro em Portugal. Poderia esperar-se que, de acordo com o
alinhamento do jornal, estivesse essencialmente em foco o grau de cumprimento
do pesado acordo. Mas, pelo contrário, é o tema das relações entre a terapia de
austeridade e a desigualdade que marca a reportagem do correspondente em Lisboa.
Tal como
oportunamente sublinhei na Conferência Economia com Futuro, em 30 de Setembro,
em Lisboa, o grau de desigualdade com que a terapia de austeridade começou a
ser aplicada constitui na sociedade portuguesa uma almofada de reduzidas
proporções protectoras. A margem de manobra que ela permite é muito limitada.
Portugal já era no início do processo a economia mais desigual da União Europeia.
A reportagem
tem pontos controversos, depreende-se que resultantes da entrevista realizada a
António Barreto. Não conheço nenhum artigo representativo de António Barreto
sobre o tema e por isso é difícil perceber se o argumento é do próprio
ou da interpretação feita pelo jornalista. A grande concentração da propriedade
e o peso do Estado (“demasiado gordo e demasiado fraco”) são apontados como os
principais factores de desigualdade. Uma pequena diatribe sobre os professores
e o seu peso negocial, com expressão remuneratória, fecha o argumento. Parece
estranho que a dinâmica de funcionamento do mercado de trabalho fique fora da
explicação da desigualdade. A incapacidade de continuar a criar emprego
desqualificado ao ritmo dos anos 80, por exemplo, representou a primeira
machadada no modelo de baixa desigualdade que a economia portuguesa gerou nos
primeiros anos após 1974.
Mas o que marca
o artigo é a remissão para um recente “paper” do Institut of Economic and
Social Research do Reino Unido (“Os efeitos distributivos das medidas de
austeridade: uma comparação entre seis países da União Europeia”, 2011) (http://www.socialsituation.eu/research-notes/SSO2011%20RN2%20Austerity%20measures_final.pdf).
De acordo com o referido estudo, a terapia de austeridade aplicada é claramente
regressiva, isto é, penaliza mais acentuadamente os grupos de menor rendimento,
capturando percentagens mais elevadas do seu rendimento disponível. Ou seja, não
se trata apenas de matéria impressiva. Corresponde, pelo contrário, a uma
perigosa deriva, comprometendo a já limitada margem de manobra que o grau de
desigualdade inicial consentia.
sexta-feira, 23 de dezembro de 2011
EDP: TODOS CLAMAM POR ESTRATÉGIA
Os resultados
do processo de privatização (leia-se de venda de parte substancial da posição
que o Estado detinha na empresa) despertaram uma ampla diversidade de reacções:
de simples lágrimas de crocodilo pela privatização ao reconhecimento da
transparência do processo de tudo houve um pouco.
Em primeiro
lugar, levantou-se algum coro de preocupações em termos de segurança nacional. Alienar
praticamente o controlo da empresa a uma empresa estatal chinesa, “aqui d’el-Rey”
estaremos dependentes de um poder potencialmente hostil. O curioso e por isso são
lágrimas de crocodilo é que praticamente ninguém com esta opinião criticou
antes o processo de privatizações. O que se foi ouvindo foi apenas o “vai ser
uma venda ao desbarato” dado o momento em que se encontra a economia portuguesa
e o contexto mundial. Nenhuma preocupação ex-ante por questões de segurança
nacional emergiu. Ora, quem privatiza “utilities” como a energia e a água que
se cuide.
Por outro lado,
depois da União Europeia ou mais propriamente o eixo Merkosy andarem a mendigar
o concurso da poupança chinesa para reforçar o Instrumento de Europeu de
Estabilidade Financeira, aparentemente sem êxito e depois do Governo Sócrates
por também os olhos em bico para atrair poupança chinesa à dívida pública portuguesa,
não percebo tanta surpresa. Afinal, a proposta chinesa faz jus ao que se vai
pressentindo para o futuro: a capacidade de poupança das economias emergentes
projecta-se como a grande fonte de financiamento internacional. E com a
economia americana a balouçar, a poupança chinesa não se fixa apenas nos “Treasuries”
americanos. Além disso, é claramente a melhor proposta financeira. Pudera.
Depois, clamou-se
por falta de estratégia. Também não percebo tanta surpresa: não há uma linha
que se preze de posicionamento estratégico internacional, nem sequer sobre a
questão europeia, no programa de Governo. O Ministro Álvaro pesca à linha e com
tudo o que lhe aparece à mão para fazer de cana. Apostar nas economias
emergentes, valorar a posição portuguesa na União Europeia ou concretizar a aproximação
ao Brasil para um eixo atlântico são opções sobre as quais nem uma palavra é
dada pela chamada diplomacia económica.
A meu ver
coerentemente com esta pesca à linha, o Governo usou a única arma justificativa
que podia de facto invocar: transparência do processo e claramente a proposta
que proporciona mais encaixe, contrariando a ideia da “venda ao desbarato”. Questões
de geoestratégia? É profundidade demasiada para quem está abrigado (até
quando?) no memorando da Troika.
quinta-feira, 22 de dezembro de 2011
FRAGILIDADES BANCÁRIAS
Para enquadrar
a operação do BCE ontem realizada, centrada no fornecimento de liquidez à banca
europeia, convém ter presente as necessidades de capital identificadas pela
Autoridade Bancária Europeia.
Um artigo
recente no VOX (http://www.voxeu.org/index.php?q=node/7449), “A short guide to
the EBA’s recapitalisation results” constitui uma boa introdução a esses
resultados. O gráfico seguinte publicado nesse artigo permite situar a banca
portuguesa neste contexto (mil milhões de euros de necessidades de capital).
Banco Comercial Português, Caixa Geral de Depósitos e Espírito Santo são os três bancos portugueses com maiores necessidades de capital (por ordem decrescente) num grupo em que bancos espanhóis, italianos e belgas são os mais expostos.
Banco Comercial Português, Caixa Geral de Depósitos e Espírito Santo são os três bancos portugueses com maiores necessidades de capital (por ordem decrescente) num grupo em que bancos espanhóis, italianos e belgas são os mais expostos.
BCE EM ACÇÃO, A CONTRA-GOSTO?
(Com a devida vénia ao The Vancouver Sun)
Tal como referi no meu último post (20.12.2011), centrado
na entrevista de Mário Draghi ao Financial Times, o dia de quarta-feira (ontem)
foi marcado pela primeira das denominadas operações de financiamento a longo
prazo (empréstimos a 3 anos) concretizada pelo BCE dirigida à banca europeia.
Aparentemente, a operação terá sido um êxito. A procura
excedeu expectativas de analistas atingindo 489 mil milhões de euros,
envolvendo cerca de 523 bancos, superando em mais de cem mil milhões de euros a
operação de 2009, considerada até ao momento a de maior impacto no sistema
financeiro europeu. Ao que se percebe dos dados que foi possível recolher, a
injecção líquida de dinheiro no sistema financeiro terá sido menor do que o
referido montante, já que sensivelmente na mesma data se cumpriam outras operações
de liquidez. Mas se acrescentarmos a esta operação os 28 mil milhões de dólares
que o BCE obteve do Banco da Reserva Federal para injectar na banca europeia,
pode concluir-se que se trata de uma pipa de massa, não esquecendo que se
anuncia uma nova operação deste tipo para Fevereiro de 2012.
Curiosamente, na imprensa especializada está aberto um
debate bastante alargado acerca do impacto que esta operação tenderá a provocar
na situação que afinal interessa debelar e que ultrapassou há muito o simples
estatuto de crise das dívidas soberanas para se confundir com a crise do
sistema bancário europeu e do próprio euro.
Alguns aspectos desse debate merecem atenção:
- Embora o BCE não a assuma verdadeiramente como tal, trata-se de uma operação essencialmente destinada ao sistema bancário europeu; isto demonstra a complexidade apresentada pela situação actual e sobretudo a evidência segura de quanto mais tardia é a solução definitiva mais imbricada ela se torna, cavalgando rapidamente novas dimensões. Daí ter-se chegado à vulnerabilidade da banca como última manifestação do problema: o acesso ao financiamento de mercado por parte da banca europeia foi brutalmente atingido e com essa inibição todo o sistema estaria em risco;
- Discute-se ainda se esta operação não constituirá uma forma disfarçada do BCE concretizar o que permanentemente tendeu a negar: a monetarização da dívida soberana; verdadeiramente, não o é, embora tudo dependa do modo como a banca europeia utilizar estes fundos; injectar na economia real, retomando práticas de crédito ou comprar títulos da dívida soberana, há designadamente espanhóis ou italianos não será totalmente indiferente; mas Gavyin Davies tem razão quando refere que as diferenças entre este tipo de operações e a monetarização das dívidas públicas da zona euro estão cada vez mais nebulosas (http://blogs.ft.com/gavyndavies/2011/12/21/ecb-balance-sheet-sucked-further-into-the-crisis/#axzz1hBd2toZA;
- As reacções do mercado são ainda demasiado frescas para se perceber se as pretensões de Sarkosy e do Banco de França vão ser cumpridas, dando origem a novas compras pela banca de dívida soberana; aparentemente, a reacção em Espanha terá sido melhor do que em Itália, mas são meras intuições;
- Com a lentidão exasperante com que o Instrumento Europeu de Estabilidade Financeiro está a ser montado, não restaria ao BCE outra alternativa; a moeda de troca será a subida bastante acentuada das responsabilidades do BCE, mesmo tendo em conta que a aceitação de títulos colaterais como garantia dos respectivos empréstimos é feita com um desconto à cabeça, e consequentemente a maior exposição do próprio BCE a eventuais insolvências no seio da zona euro.
Mas o que
interessa essencialmente destacar é que a magnitude da operação não garante que
o problema do financiamento à economia real venha a ser superado. A utilização
dos fundos agora disponibilizados para um compasso de espera da banca e sua
posterior aplicação em operações de consolidação interna da sua própria situação
tenderão a diferir significativamente no tempo a produção de efeitos sobre a economia
real.
Resumindo, a
ortodoxia estatutária do BCE continua a impedir uma abordagem consequente à
complexidade da situação. A Presidência de Draghi é seguramente menos monótona
do que a de Trichet. Mas a fidelidade a essa ortodoxia leva a intervenções que
geram por sua vez novas indeterminações. Não será um jogo de soma zero, mas a
aproximação a uma solução convincente é exasperantemente lenta.
terça-feira, 20 de dezembro de 2011
A ENTREVISTA DE DRAGHI
O período natalício
continua a ser marcado pelas ameaças da crise da zona euro. O excelente cartoon
de Kipper Williams no Guardian ilustra bem o contexto.
Os últimos dias
são claramente marcados pela primeira entrevista de Draghi, neste caso ao
Financial Times. A entrevista não traz aparentemente nada de novo, tendo em
conta que reafirma o princípio geral de respeito absoluto pelo mandato inicial
do BCE, por outras palavras a plena submissão à ortodoxia monetarista que
esteve na base da sua configuração estatutária. Mas só aparentemente a
entrevista não traz nada de novo. O que há, então, de relevante para além da
lengalenga conhecida?
O primeiro
elemento de interesse diz respeito às considerações que Draghi realiza sobre a
decisão tomada de realizar operações de refinanciamento a longo prazo,
eufemisticamente designadas de medidas não padronizadas. Nas suas considerações,
Draghi reafirma a ideia por todos percebida de se tratar de uma medida que visa
essencialmente aliviar as pressões de financiamento experimentadas pela banca
europeia. Mas o Presidente do BCE teve de concordar que não há condições para
garantir qual vai ser o impacto final dessa operação. Será que a operação vai
concretizar-se em compras adicionais de títulos da dívida pública periférica? Será
que em última instância virá a facilitar a vida às pequenas e médias empresas
europeias, impactando como o desejável a economia real? O realismo de Draghi ao
referir que essa possibilidade dependerá do comportamento da banca envolvida
nessas operações em matéria de avaliação de risco é claro quanto às limitações da
abordagem, ou seja da natureza do mandato estatutário do BCE. Já o havíamos referido:
uma coisa é intervir directamente nas condições de procura, uma outra é actuar
por via da facilitação do financiamento à banca.
O outro ponto
da entrevista que merece atenção é o incómodo manifestado por Draghi quanto à
sequência de intervenções de abordagem à crise da zona euro, considerada como não
a mais adequada. Trata-se de uma crítica velada à falta de lucidez e coordenação
em todo o processo, embora seja de facto uma crítica muito indirecta.
O incómodo de
Draghi poderá caracterizar-se assim:
- Primeiro do que tudo o EFSF (Instrumento Europeu de Estabilidade Financeira) deveria ter sido plenamente operacionalizado (duas cimeiras não chegaram para tal);
- Só depois deveriam ter sido realizados os novos testes de stress à banca e definidas as necessidades de recapitalização: neste momento, é clara a contradição que pesa sobre a banca;
- Finalmente, só depois deveria ter sido tomada a decisão de envolver ou não o sector privado em processos de reestruturação da dívida (como foi o caso da Grécia).
O incómodo é perceptível. Não era a sequência que
pretendia. Mas a crença no mito continua persistente: “ Não há nenhum trade-off
entre austeridade fiscal e crescimento e competitividade. Não nego que a
consolidação fiscal conduz à contracção no curto-prazo, mas aí temos de nos
interrogar: o que é que pode mitigar essa contracção”. Pois, pois, a lengalenga
virou crença.
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