sábado, 31 de dezembro de 2011

A ACABAR O ANO…

Só o dever e o gosto de assinalar a entrevista de um grande pensador – George Steiner (“L'Europe est en train de sacrifier ses jeunes”, Télérama, http://www.telerama.fr/idees/george-steiner-l-europe-est-en-train-de-sacrifier-ses-jeunes,75871.php) – me poderia levar a interromper assumidamente estas semanas de ausência, não só virtual mas também física.

Contenho-me na eloquência desta passagem: “No estado actual, é possível [o colapso da Europa]. Mas vamos sair desta situação de uma forma ou de outra. Irónico é a Alemanha poder voltar a dominar. É um passo atrás. Entre Agosto de 1914 e Maio de 1945, a Europa, de Madrid a Moscovo, de Copenhaga a Palermo, perdeu quase 80 milhões de pessoas em guerras, deportações e campos de extermínio, fome, bombardeamentos. O milagre está em que sobreviveu. Mas a sua ressurreição foi apenas parcial. A Europa está a passar por uma crise dramática; está a sacrificar uma geração, a dos seus jovens, que não acreditam no futuro. Quando eu era jovem, havia esperanças para todos os gostos: o comunismo, com certeza! O fascismo, que foi também uma esperança, não nos deixemos enganar. E, para os judeus, havia ainda o sionismo. Havia ideologias aos montes... Isso já não existe. Ora, quando a juventude não é tomada por uma esperança, mesmo que ilusória, o que resta? Nada.”


E já que, coincidentemente, se encerra hoje o ano, junto um calendário de 2012 (publicado no “24 Heures” de Lausana por Raymond Burki) e não resisto a contrastá-lo com “A Ideia de Europa” com que Steiner nos brindou em 2004. Começava assim essa exaltação da cultura e da memória: “A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo.” E concluía: “É porventura apenas na Europa que as fundações necessárias de literacia e o sentido da vulnerabilidade trágica da condition humaine poderiam constituir-se como base [do sonho novamente sonhado].” Bom Ano Novo!

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

NA ROTA DA DESIGUALDADE?


Não podemos ignorar que se trata de números calculados antes da incidência dos impostos sobre o rendimento, o que aconselha alguma cautela de interpretação. A fiscalidade pode introduzir acertos ou até consolidar os padrões de desigualdade do topo 1% da população. Mas tendo em conta que os padrões de austeridade impostos estão a ser mais gravosos para os rendimentos mais baixos, a tendência será para uma rota ascendente na escala da desigualdade e não descendente em direcção aos padrões escandinavos. O que confirma o padrão da evolução observada entre 1990 e 2007. Os 18,3% de rendimento apropriado pelos 1% mais ricos dos Estados Unidos impressionam, mas permitem compreender grande parte das incidências do debate político na sociedade americana de hoje. “We are the 99%” não é de facto uma simples palavra de ordem a perder-se na vertigem do tempo. Veio seguramente para ficar.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

TER OU NÃO TER PODER DE EMISSÃO MONETÁRIA



Via Joe Weisenthal (Business Insider), recuperado por Bradford DeLong, fica mais um gráfico perturbador. Ele mostra a evolução recente dos rendimentos dos títulos da dívida pública a 10 anos da Finlândia (linha verde) e da Suécia (linha laranja). Depois de um período, sensivelmente até inícios de Março 11, em que o nível e comportamento dos rendimentos praticamente se confundem, eis que a partir dessa data os investidores solicitam na prática um prémio de risco aos títulos finlandeses. Abre-se um gap entre os dois tipos de rendimentos. A data de 24.11.2011 marca mesmo um comportamento diametralmente oposto dos rendimentos, intensificando esse gap.
Moral da história: os mercados parecem premiar quem tem capacidade de emissão monetária (Suécia) e penalizar quem a não tem (Finlândia). Ambos parecem ser países sérios e sem problemas conhecidos de competitividade estrutural. Perturbador não é?

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

APANHADO NAS MALHAS DO AFINADOR PERFECCIONISTA



Tenho andado às voltas com a volumosa biografia de Steve Jobs, Walter Isaacson, versão portuguesa, aliás pouco cuidada, dadas as múltiplas gralhas que a edição consultada apresenta. Diga-se que não sou propriamente um fan ou seguidor inveterado do falecido Steve Jobs. A biografia interessa-me sobretudo porque nos proporciona um valioso e multifacetado material sobre as condições de contexto que enquadram os diferentes gadgets que fizeram a história da Apple e a marca de Steve Jobs. Aliás, lida sob esta perspectiva de contextualização dos processos de inovação, a biografia é a meu ver indissociável de dois artigos da New Yorker, ambos de autoria de Malcolm Gladwell: “Creation Myth” (16 de Maio de 2011) e “The Tweaker” (14 de Novembro de 2011”). O último artigo inspira aliás o título deste post. A tese de Gladwell é que o génio de Steve Jobs poder-se-ia resumir no estatuto de perfeccionista compulsivo.
A bem documentada investigação de Isaacson sistematiza evidências preciosas para explicar o que tornou possível a aventura de Jobs e Wosniak, parceiro digamos tecnológico de Jobs. Só o ambiente de mudança e liberdade da costa ocidental americana permite situar a vertiginosa erupção de oportunidades no âmbito da qual a ascensão e consolidação do projecto Apple têm de ser compreendidas. É também fascinante a demonstração que a biografia opera das diferenças cruciais entre processos de invenção e inovação. Wosniak é seguramente o génio da engenharia dos projectos iniciais da Apple (digamos o inventor) mas Jobs é quem fareja ou intuiu as oportunidades e concebe o produto a pensar numa tipologia de consumidor. A ambiência descrita mostra também como a oportunidade esteve debaixo do nariz da Xerox PARC, centro de inovação da então Xerox Corporation e que uma administração rígida e não intuitiva frustrou as expectativas dos investigadores internos abrindo o desenvolvimento e concretização da ideia à força simultaneamente inventiva e inovadora da Apple.
Mas hoje o que me interessa focar é a estimulante oposição de posturas e convicções de Wosniak e Jobs. Wosniak tem um espírito de “hacker”, aberto ao desenvolvimento “open source” das ideias. Jobs é o implacável protector de uma ideia e do seu aproveitamento económico e comercial. É muito significativa a luta que se trava entre os dois em torno da concepção do Apple II. Wosniak queria-o aberto à invenção de outros. Jobs não suportava a “sua” máquina invadida por inventores de garagem. A evolução desta querela nos gadgets da Apple tem hoje alguns compromissos, mas não é difícil ver que a posição de Jobs influenciou algumas das mais surpreendentes características dos equipamentos da Apple.
Nestes dias, senti-me mais perto de Wosniak do que de Jobs. A família resolveu presentear-me no Natal com um IPAD2. Por azar meu, não sei se já fruto ou não da morte de Steve Jobs, o aparelho veio com um defeito de fabrico na câmara fotográfica, tornando ilegíveis as fotografias tiradas. Por política, dizem-me, da Apple e fraco poder comercial da FNAC, acrescento eu, estou há uns dias sem IPAD2, esperando uma troca de equipamento com o pagamento já realizado. A marca pelos vistos tem de ser ela a garantir que o equipamento tem defeito de fabrico e exige que seja ela a decidir o que fazer. Arrogância, perfeccionismo ou simplesmente resultado da inexistência em Portugal de uma Apple Store, não sei. Mas seguramente a evidência de que a linha sonhadora e inventiva de Wosniak não venceu, para desgosto de quem começava a ficar entusiasmado com o novo gadget.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

APRENDER COM O JAPÃO


Tal como já referi em posts anteriores, os anos 90 proporcionaram situações de instabilidade macroeconómica cujos resultados e ensinamentos foram largamente menosprezados pelos economistas. O que é particularmente perturbador já que esse período foi alvo de uma vasta e multifacetada investigação que, pelos vistos, caiu em saco roto. A coexistência de uma década de profunda estagnação da economia japonesa com as crises cambiais das economias asiáticas com epicentro na Tailândia determinou uma situação de forte instabilidade que só a mais longa expansão da economia americana evitou que degenerasse numa recessão mundial.
Os ensinamentos suscitados pela década de 90 teriam sido extremamente úteis na abordagem à Grande Recessão de 2008/09 acaso não tivessem sido ignorados ou, pelo menos, não suficientemente recordados para influenciar a política macroeconómica global.
Por isso, é expectável que, após 4 anos de prolongamento dos efeitos da Grande Recessão, sem uma abordagem consistente à sua superação, a comparação entre a situação actual e a década de 90 continue a interessar alguns economistas na busca de soluções mais eficazes. Entre os traços de comparação explorados, é sobretudo a situação da economia japonesa que é objecto de mais atenção.
É neste contexto que, para leitores com formação macroeconómica mais sólida, recomendo vivamente um artigo recente de um investigador do Nomura Research Institute de Tóquio, Richard C. Koo. O artigo chama-se “O mundo em recessão de balanço: causas, terapia e política”. O conceito chave do artigo é o de recessão de balanço (balance sheet recession). Segundo Richard C. Koo, o que caracteriza uma recessão desta natureza é o conjunto de comportamentos posteriores  a uma bolha financeira. Com o colapso dos preços dos activos financeiros e com a permanência dos passivos correspondentes, uma parte substancial do sector privado entra num processo de minimização da dívida, poupando ou reembolsando parte da dívida acumulada. Esta minimização equivale a uma desalavancagem generalizada da procura agregada, aliás como outros economistas têm sublinhado. Numa situação deste tipo, a desalavancagem do sector privado limita a acção da política monetária, já que o sector privado mais endividado tende a reduzir a procura de crédito e parte do sector bancário também atingido pelas imparidades diminui também a oferta de crédito ao sector mais endividado. A desalavancagem do sector privado acontece mesmo em contexto de taxas de juro próximas de zero, tendendo a provocar uma situação de espiral deflacionária. A perda de procura agregada é contínua e igual à soma da poupança adicional e do reembolso líquido das dívidas. É neste contexto que a manutenção de um estímulo fiscal é absolutamente necessário para contrariar e inverter a espiral deflacionária. Do artigo: “(…) Nada pior do que uma consolidação fiscal quando o sector privado está doente e a minimizar a sua dívida”.
A analogia é perturbadora: tal como em 1997 e 2001 uma consolidação fiscal prematura comprometeu irremediavelmente a recuperação da economia japonesa, também agora uma consolidação fiscal generalizada (friso bem) pode conduzir a economia mundial ocidental a uma espiral deflacionária.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

OCCUPY WALL STREET: RAY KACHEL


(Reuters)
Parte da interrupção festiva de Natal foi aproveitada para recuperar algumas leituras atrasadas, designadamente sobre os movimentos OCCUPY. A leitura do vasto material jornalístico que foi publicado sobre os principais movimentos (Londres e Nova Iorque) constitui uma rara oportunidade não só para compreender os públicos envolvidos no movimento, mas sobretudo para tomar contacto com histórias de vida de fragilidade, de atipicidade, de posicionamentos e regimes precários do ponto vista do acesso, permanência e marginalização face ao mercado de trabalho.
A imersão neste conjunto de histórias de vida proporciona uma situação de forte desconforto relativamente à incapacidade do pensamento económico corrente internalizar estas situações de atipicidade face ao mercado de trabalho. A comparação entre os movimentos de Londres e Nova Iorque, ambos focados nos desvarios do sistema financeiro, confirma ainda a profunda complexidade dos mercados de trabalho inglês e americano do ponto de vista dessas situações de atipicidade nas relações de trabalho.
A New Yorker de 5 de Dezembro de 2011, versão impressa, publica uma comovente reportagem centrada no OCCUPY WALL STREET. O título e particularmente o sub-título do artigo (George Packer) são apelativos: “Todas as pessoas iradas – um homem sem trabalho encontra o espírito de comunidade no OCCUPY WALL STREET”.
Praticamente toda a reportagem é construída sobre a história de vida de Ray Kachel. Daí o título deste post. Kachel é um homem de todos os ofícios informáticos, nascido e a trabalhar em Seattle, com uma trajectória anti-social comum a muitos indivíduos que labutam no sector da economia da informação. O impacto da grande recessão de 2008/09 no mercado tecnológico de Seattle leva-o a um processo de precarização progressiva e de delapidação progressiva do seu reduzido património de poupança, incluindo todos os seus gadgets informáticos, alguns deles instrumentos do seu próprio trabalho.
A história da reportagem foca-se na sua crescente atenção à informação proveniente do OCCUPY ALL STREET e à sua progressiva identificação com o movimento, que o levaram algures numa noite de Outubro a instalar-se no Zuccotti Park (Liberty Square). Pelos olhos interpostos de Kachel, a reportagem fornece uma visão impressiva e riquíssima das condições de ocupação até à ocupação militarizada do espaço ocupado. Kachel redescobre o sentido de comunidade mas experimenta também as dificuldades de participação activa no processo de ocupação.
O fim da reportagem é arrepiante. Tendo escapado à ocupação militarizada e desmantelamento do acampamento, algures num banco perto da ponte de Brooklyn, tenta, em vão, no Tweeter obter alguma informação sobre o que iria passar-se após a desocupação. Embora determinado a retomar o contacto com o processo que o aproximou de novo de um sentido colectivo, um pensamento domina aquele seu momento de repouso: estava só, era um sem-abrigo em Nova Iorque.

sábado, 24 de dezembro de 2011

AUSTERIDADE E DESIGUALDADE: PORTUGAL NA IMPRENSA INTERNACIONAL


O Financial Times de 22.12.2011 (http://www.ft.com/intl/cms/s/0/e048b072-24c5-11e1-ac4b-00144feabdc0.html#axzz1hP4qDVl2) dedica, por fim, após um longo interregno, algumas linhas ao processo de concretização do resgate financeiro em Portugal. Poderia esperar-se que, de acordo com o alinhamento do jornal, estivesse essencialmente em foco o grau de cumprimento do pesado acordo. Mas, pelo contrário, é o tema das relações entre a terapia de austeridade e a desigualdade que marca a reportagem do correspondente em Lisboa.
Tal como oportunamente sublinhei na Conferência Economia com Futuro, em 30 de Setembro, em Lisboa, o grau de desigualdade com que a terapia de austeridade começou a ser aplicada constitui na sociedade portuguesa uma almofada de reduzidas proporções protectoras. A margem de manobra que ela permite é muito limitada. Portugal já era no início do processo a economia mais desigual da União Europeia.
A reportagem tem pontos controversos, depreende-se que resultantes da entrevista realizada a António Barreto. Não conheço nenhum artigo representativo de António Barreto sobre o tema e por isso é difícil perceber se o argumento é do próprio ou da interpretação feita pelo jornalista. A grande concentração da propriedade e o peso do Estado (“demasiado gordo e demasiado fraco”) são apontados como os principais factores de desigualdade. Uma pequena diatribe sobre os professores e o seu peso negocial, com expressão remuneratória, fecha o argumento. Parece estranho que a dinâmica de funcionamento do mercado de trabalho fique fora da explicação da desigualdade. A incapacidade de continuar a criar emprego desqualificado ao ritmo dos anos 80, por exemplo, representou a primeira machadada no modelo de baixa desigualdade que a economia portuguesa gerou nos primeiros anos após 1974.
Mas o que marca o artigo é a remissão para um recente “paper” do Institut of Economic and Social Research do Reino Unido (“Os efeitos distributivos das medidas de austeridade: uma comparação entre seis países da União Europeia”, 2011) (http://www.socialsituation.eu/research-notes/SSO2011%20RN2%20Austerity%20measures_final.pdf). De acordo com o referido estudo, a terapia de austeridade aplicada é claramente regressiva, isto é, penaliza mais acentuadamente os grupos de menor rendimento, capturando percentagens mais elevadas do seu rendimento disponível. Ou seja, não se trata apenas de matéria impressiva. Corresponde, pelo contrário, a uma perigosa deriva, comprometendo a já limitada margem de manobra que o grau de desigualdade inicial consentia.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

EDP: TODOS CLAMAM POR ESTRATÉGIA



Os resultados do processo de privatização (leia-se de venda de parte substancial da posição que o Estado detinha na empresa) despertaram uma ampla diversidade de reacções: de simples lágrimas de crocodilo pela privatização ao reconhecimento da transparência do processo de tudo houve um pouco.
 Em primeiro lugar, levantou-se algum coro de preocupações em termos de segurança nacional. Alienar praticamente o controlo da empresa a uma empresa estatal chinesa, “aqui d’el-Rey” estaremos dependentes de um poder potencialmente hostil. O curioso e por isso são lágrimas de crocodilo é que praticamente ninguém com esta opinião criticou antes o processo de privatizações. O que se foi ouvindo foi apenas o “vai ser uma venda ao desbarato” dado o momento em que se encontra a economia portuguesa e o contexto mundial. Nenhuma preocupação ex-ante por questões de segurança nacional emergiu. Ora, quem privatiza “utilities” como a energia e a água que se cuide.
 Por outro lado, depois da União Europeia ou mais propriamente o eixo Merkosy andarem a mendigar o concurso da poupança chinesa para reforçar o Instrumento de Europeu de Estabilidade Financeira, aparentemente sem êxito e depois do Governo Sócrates por também os olhos em bico para atrair poupança chinesa à dívida pública portuguesa, não percebo tanta surpresa. Afinal, a proposta chinesa faz jus ao que se vai pressentindo para o futuro: a capacidade de poupança das economias emergentes projecta-se como a grande fonte de financiamento internacional. E com a economia americana a balouçar, a poupança chinesa não se fixa apenas nos “Treasuries” americanos. Além disso, é claramente a melhor proposta financeira. Pudera.
 Depois, clamou-se por falta de estratégia. Também não percebo tanta surpresa: não há uma linha que se preze de posicionamento estratégico internacional, nem sequer sobre a questão europeia, no programa de Governo. O Ministro Álvaro pesca à linha e com tudo o que lhe aparece à mão para fazer de cana. Apostar nas economias emergentes, valorar a posição portuguesa na União Europeia ou concretizar a aproximação ao Brasil para um eixo atlântico são opções sobre as quais nem uma palavra é dada pela chamada diplomacia económica.
 A meu ver coerentemente com esta pesca à linha, o Governo usou a única arma justificativa que podia de facto invocar: transparência do processo e claramente a proposta que proporciona mais encaixe, contrariando a ideia da “venda ao desbarato”. Questões de geoestratégia? É profundidade demasiada para quem está abrigado (até quando?) no memorando da Troika.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

FRAGILIDADES BANCÁRIAS


Para enquadrar a operação do BCE ontem realizada, centrada no fornecimento de liquidez à banca europeia, convém ter presente as necessidades de capital identificadas pela Autoridade Bancária Europeia.
Um artigo recente no VOX (http://www.voxeu.org/index.php?q=node/7449), “A short guide to the EBA’s recapitalisation results” constitui uma boa introdução a esses resultados. O gráfico seguinte publicado nesse artigo permite situar a banca portuguesa neste contexto (mil milhões de euros de necessidades de capital).

Banco Comercial Português, Caixa Geral de Depósitos e Espírito Santo são os três bancos portugueses com maiores necessidades de capital (por ordem decrescente) num grupo em que bancos espanhóis, italianos e belgas são os mais expostos. 



BCE EM ACÇÃO, A CONTRA-GOSTO?


(Com a devida vénia ao The Vancouver Sun)

Tal como referi no meu último post (20.12.2011), centrado na entrevista de Mário Draghi ao Financial Times, o dia de quarta-feira (ontem) foi marcado pela primeira das denominadas operações de financiamento a longo prazo (empréstimos a 3 anos) concretizada pelo BCE dirigida à banca europeia.
Aparentemente, a operação terá sido um êxito. A procura excedeu expectativas de analistas atingindo 489 mil milhões de euros, envolvendo cerca de 523 bancos, superando em mais de cem mil milhões de euros a operação de 2009, considerada até ao momento a de maior impacto no sistema financeiro europeu. Ao que se percebe dos dados que foi possível recolher, a injecção líquida de dinheiro no sistema financeiro terá sido menor do que o referido montante, já que sensivelmente na mesma data se cumpriam outras operações de liquidez. Mas se acrescentarmos a esta operação os 28 mil milhões de dólares que o BCE obteve do Banco da Reserva Federal para injectar na banca europeia, pode concluir-se que se trata de uma pipa de massa, não esquecendo que se anuncia uma nova operação deste tipo para Fevereiro de 2012.
Curiosamente, na imprensa especializada está aberto um debate bastante alargado acerca do impacto que esta operação tenderá a provocar na situação que afinal interessa debelar e que ultrapassou há muito o simples estatuto de crise das dívidas soberanas para se confundir com a crise do sistema bancário europeu e do próprio euro.
Alguns aspectos desse debate merecem atenção:
  • Embora o BCE não a assuma verdadeiramente como tal, trata-se de uma operação essencialmente destinada ao sistema bancário europeu; isto demonstra a complexidade apresentada pela situação actual e sobretudo a evidência segura de quanto mais tardia é a solução definitiva mais imbricada ela se torna, cavalgando rapidamente novas dimensões. Daí ter-se chegado à vulnerabilidade da banca como última manifestação do problema: o acesso ao financiamento de mercado por parte da banca europeia foi brutalmente atingido e com essa inibição todo o sistema estaria em risco;
  • Discute-se ainda se esta operação não constituirá uma forma disfarçada do BCE concretizar o que permanentemente tendeu a negar: a monetarização da dívida soberana; verdadeiramente, não o é, embora tudo dependa do modo como a banca europeia utilizar estes fundos; injectar na economia real, retomando práticas de crédito ou comprar títulos da dívida soberana, há designadamente espanhóis ou italianos não será totalmente indiferente; mas Gavyin Davies tem razão quando refere que as diferenças entre este tipo de operações e a monetarização das dívidas públicas da zona euro estão cada vez mais nebulosas (http://blogs.ft.com/gavyndavies/2011/12/21/ecb-balance-sheet-sucked-further-into-the-crisis/#axzz1hBd2toZA;
  • As reacções do mercado são ainda demasiado frescas para se perceber se as pretensões de Sarkosy e do Banco de França vão ser cumpridas, dando origem a novas compras pela banca de dívida soberana; aparentemente, a reacção em Espanha terá sido melhor do que em Itália, mas são meras intuições;
  • Com a lentidão exasperante com que o Instrumento Europeu de Estabilidade Financeiro está a ser montado, não restaria ao BCE outra alternativa; a moeda de troca será a subida bastante acentuada das responsabilidades do BCE, mesmo tendo em conta que a aceitação de títulos colaterais como garantia dos respectivos empréstimos é feita com um desconto à cabeça, e consequentemente a maior exposição do próprio BCE a eventuais insolvências no seio da zona euro.
 Mas o que interessa essencialmente destacar é que a magnitude da operação não garante que o problema do financiamento à economia real venha a ser superado. A utilização dos fundos agora disponibilizados para um compasso de espera da banca e sua posterior aplicação em operações de consolidação interna da sua própria situação tenderão a diferir significativamente no tempo a produção de efeitos sobre a economia real.
 Resumindo, a ortodoxia estatutária do BCE continua a impedir uma abordagem consequente à complexidade da situação. A Presidência de Draghi é seguramente menos monótona do que a de Trichet. Mas a fidelidade a essa ortodoxia leva a intervenções que geram por sua vez novas indeterminações. Não será um jogo de soma zero, mas a aproximação a uma solução convincente é exasperantemente lenta.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

A ENTREVISTA DE DRAGHI



O período natalício continua a ser marcado pelas ameaças da crise da zona euro. O excelente cartoon de Kipper Williams no Guardian ilustra bem o contexto.
Os últimos dias são claramente marcados pela primeira entrevista de Draghi, neste caso ao Financial Times. A entrevista não traz aparentemente nada de novo, tendo em conta que reafirma o princípio geral de respeito absoluto pelo mandato inicial do BCE, por outras palavras a plena submissão à ortodoxia monetarista que esteve na base da sua configuração estatutária. Mas só aparentemente a entrevista não traz nada de novo. O que há, então, de relevante para além da lengalenga conhecida?
O primeiro elemento de interesse diz respeito às considerações que Draghi realiza sobre a decisão tomada de realizar operações de refinanciamento a longo prazo, eufemisticamente designadas de medidas não padronizadas. Nas suas considerações, Draghi reafirma a ideia por todos percebida de se tratar de uma medida que visa essencialmente aliviar as pressões de financiamento experimentadas pela banca europeia. Mas o Presidente do BCE teve de concordar que não há condições para garantir qual vai ser o impacto final dessa operação. Será que a operação vai concretizar-se em compras adicionais de títulos da dívida pública periférica? Será que em última instância virá a facilitar a vida às pequenas e médias empresas europeias, impactando como o desejável a economia real? O realismo de Draghi ao referir que essa possibilidade dependerá do comportamento da banca envolvida nessas operações em matéria de avaliação de risco é claro quanto às limitações da abordagem, ou seja da natureza do mandato estatutário do BCE. Já o havíamos referido: uma coisa é intervir directamente nas condições de procura, uma outra é actuar por via da facilitação do financiamento à banca.
O outro ponto da entrevista que merece atenção é o incómodo manifestado por Draghi quanto à sequência de intervenções de abordagem à crise da zona euro, considerada como não a mais adequada. Trata-se de uma crítica velada à falta de lucidez e coordenação em todo o processo, embora seja de facto uma crítica muito indirecta.
 O incómodo de Draghi poderá caracterizar-se assim:
  • Primeiro do que tudo o EFSF (Instrumento Europeu de Estabilidade Financeira) deveria ter sido plenamente operacionalizado (duas cimeiras não chegaram para tal);
  • Só depois deveriam ter sido realizados os novos testes de stress à banca e definidas as necessidades de recapitalização: neste momento, é clara a contradição que pesa sobre a banca;
  •  Finalmente, só depois deveria ter sido tomada a decisão de envolver ou não o sector privado em processos de reestruturação da dívida (como foi o caso da Grécia).
O incómodo é perceptível. Não era a sequência que pretendia. Mas a crença no mito continua persistente: “ Não há nenhum trade-off entre austeridade fiscal e crescimento e competitividade. Não nego que a consolidação fiscal conduz à contracção no curto-prazo, mas aí temos de nos interrogar: o que é que pode mitigar essa contracção”. Pois, pois, a lengalenga virou crença.