terça-feira, 31 de dezembro de 2019

POR ESTE 2019 QUE SE VAI



(Têm-me sabido bem estes dias de férias com alguns trabalhos para acabar, evitando filas de trânsito e tempos de espera nada aceitáveis do ponto de vista da descarbonização da nossa aglomeração metropolitana. O conforto do escritório banhado pelo sol, a proximidade aos livros e à música é um bom contexto para um balanço deste 2019 que se esvai.)

Vou fazer o balanço à moda de revista de atualidades, realçando as dimensões que me são mais próximas, em registo de proximidade pessoal aos temas e sem preocupações de ser exaustivo, sobretudo porque me falta arcaboiço para tal.

Comecemos pelo desporto.

O acontecimento desportivo que mais me marcou em 2019 foi o regresso de Tiger Woods ao caminho das vitórias e ainda ontem passei os olhos pela magnífica cobertura do Masters de Augusta. Tiger Woods não é aquele atleta simpático com o qual a empatia se cria quase espontaneamente. Mas as condições que estiveram subjacentes ao seu regresso às vitórias em torneios de grande expressão mediática e de prestígio internacional representam um caso excecional e raro de resistência à adversidade, à dor física, à pressão do regresso. Os últimos três buracos do 4º dia do Masters em Augusta são um prodígio de resistência e como aquela multidão precisava do regresso de Woods. Talvez um regresso efémero, as costas talvez cedam de novo e a possibilidade de igualar o sempre eterno Jack Nicklaus nos seus seis triunfos do Masters talvez se transforme numa miragem. Mas o feito principal está alcançado e aquela explosão quando a vitória se consumou é um rugido de resistência que tenho dificuldade em encontrar algo de similar no desporto.

Na literatura

Tenho-me aproximado cada vez mais da literatura espanhola, sobretudo a partir do momento em que comecei a sentir-me com mais confiança para desbravar algumas obras em castelhano.

Em 2019, por entre muita literatura em que mergulhei houve duas obras que fizeram a diferença e ambas têm por autores escritores espanhóis que podem considerar-se de uma média idade ainda jovem.


EM TUDO HAVIA BELEZA (Ordesa na versão espanhola) de Manuel Villas (Alfaguara Portugal, fevereiro de 2019) é um verdadeiro prodígio de sensibilidade e de exercício afetivo da memória num registo pessoal que nos entra pelas entranhas. Li-o antes e depois de perder a minha Mãe e apetece-me relê-lo quando regresso a Seixas onde o livro está guardado.


Mais recentemente, TODAS AS ALMAS de Javier Marías (Alfaguara Portugal, outubro de 2019) trouxe-me um registo de finura literária de que já tinha saudades. O modo como a vivência de Oxford é descrita num quadro de registo de ambiências e de registos que deambulam por aqueles rituais universitários é também um prodígio de elegância. Ler com deleite a descrição de um daqueles jantares nos Colleges, designados de High Tables, numa alusão ao patamar superior em que está colocada a mesa de professores, convidados e do Warden que dirige a cerimónia, face ao plano inferior das mesas dos estudantes vale a obra. O modo fascinante como Marías descreve o progressivo estado de embriaguez do warden Lord Rymer, político conservador influente e vingativo, que se debate com o fascínio pelo decote de Clare Bayes, uma personagem central do livro, e com as suas obrigações de usar o martelo de mestre de cerimónias é um espanto de graça e mestria da escrita. A confusão que se estabelece naquela mesa induzida pela embriaguez progressiva do warden, com os empregados de mesa a serem erradamente induzidos a iniciar novas fases do repasto é uma metáfora deliciosa da vida universitária.


Na música

Em 2019, vi na Gulbenkian finalmente a minha diva e conforto de muitas horas de trabalho, Martha Arguerich, acompanhada por Steven Kovacevich, e isso bastaria para que o ano fosse registado como um marco na minha pobre (de formação) vida musical. Mas gostaria de acrescentar a esse registo a vibrante produção musical portuguesa, jazz e clássica, muitas vezes interagindo virtuosamente. O disco de Bernardo Sassetti gravado no Teatro Micaelense e no seu famoso piano, SOLO (Universal), o disco de Samuel Gapp (um alemão radicado em Portugal), prémio de composição Bernardo Sassetti, em torno da herança de Ravel e o recente ARCUEIL de Joana Gama que trabalha a influência de Eric Satie são exemplos de uma pujança que começa finalmente a chegar à discografia.

Na política

2019 fecha uma década com a confirmação de uma ideia perturbadora. A democracia está sob ameaças profundas. O populismo ganhou a batalha, com manifestações à direita e à esquerda, da crítica e combate à globalização, simplesmente porque o socialismo e a social-democracia não entenderem a importância de não abandonar os perdedores da globalização. E é com essa interrogação (da qual o BREXIT é simplesmente uma variante geograficamente referenciada) que entramos em 2020.


Na economia

Graças a um longo e penoso trabalho profissional de quase 24 meses, travado em torno da avaliação da implementação das Estratégias Nacional e Regionais de Especialização Inteligente em Portugal, tenho hoje mais claro o desafio com que a economia portuguesa se debate de transformar o valioso potencial de investigação e desenvolvimento e de inovação que vai surgindo nas frentes mais avançados do sistema tecnológico nacional em resultados mais efetivos projetados na produtividade, na competitividade, nas exportações e no perfil de especialização produtiva. Empresas “gazelas” existem mas não é ainda seguro que as frentes promissoras de inovação que se vão abrindo na economia portuguesa, com as regiões do Norte e Centro e os seus sistemas regionais de inovação a dar cartas nessa mudança, possam generalizar-se e concretizar a mudança estrutural a que tantos de nós aspiram.

E com isto termino porque me parece uma ponte feliz entre o 2019 que se esvai e o 2020 que está aí à porta e que merecerá reflexões próprias.

Depois de muitos anos e com 70 anos mais sensíveis ao frio do que antes, vou hoje à rua para festejar a passagem de ano, com jantar entre amigos em José Falcão (ainda não sei em que canto).

A todos os leitores deste blogue, um Feliz Ano de 2020, com votos de que a vossa energia cívica não esmoreça. Iremos fazendo por isso.

2020 À PORTA


Tantos anos a falarmos do 20-20 e ei-lo finalmente aí, mesmo ao dobrar da próxima esquina. Pois que o verdadeiro 2020 venha em paz e tanto quanto possível livre das piores más intenções que foram sendo cumulativamente evidenciadas na incrível e vertiginosa década que o antecedeu (acima, os “20 dias que marcaram a década”, 13 lá fora e 7 cá dentro, segundo um interessante apanhado feito pelo “Público”), com algumas a permanecerem ameaçadoramente no ar quando a viragem está iminente. Nada o indica, mas até pode ser que a década que começa nos venha a surpreender na recusa da proclamação que em crescendo se vai generalizando de que o alcançar do progresso tem necessariamente de passar por manifestações de retrocesso. Votos de um bom ano e uma excelente década!

(Klaus Stuttman, http://www.tagesspiegel.de)

(Malagón, http://elpais.com)

(Ben Jennings, http://www.guardian.co.uk)

(Felipe Hernández, “Caín”, http://www.larazon.es)

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

A (IN)JUSTIÇA DE UM PAÍS


Na linha do post anterior, e não insistindo mais (como, aliás, prometi) em matérias de reforma e organização do Estado (sempre com a necessária consagração de uma instância efetiva de poder regional), talvez importe voltar a referir que é a justiça o nosso mais visível estrangulamento de funcionamento enquanto sociedade que se pretende democrática, livre e moderna. Dispenso-me de falar de casos, sobretudo dos mais mediáticos (como o do BES ou o de Sócrates, p.e.), mas aproveito igualmente manchetes deste mês para pôr o dedo numa ferida que parece insuscetível de ser tratada em Portugal e que 2019 expôs como nunca – refiro-me à ligação entre justiça e futebol e, neste quadro, ao “polvo de influência” (cito Rui Pinto, um cidadão ferozmente atingido por uma vertigem que se pretendeu estritamente castigadora dos seus “erros”) que tramita através de uma instituição tão nacionalmente implantada que consegue funcionar como uma espécie de Estado dentro do Estado. Apenas para que fique registado que alguns de nós (minoritários, pois claro, perante o país dos seis milhões) estão a ver o que vai passando, notoriamente a níveis que pouco têm a ver com amadorismos aparolados e inconsequentes que também por aí existem.

CAPAS INDICIADORAS


Ao contrário de outros anos, decidi-me desta vez por não fazer aquele exercício algo gasto do melhor e do pior. Em sua vez, ou talvez nem tanto assim, escolhi cinco manchetes jornalísticas deste mês que são claramente indiciadoras de transformações latentemente em curso na sociedade portuguesa, de decisões de política que fazem efetivamente alguma diferença (seja no ataque a chagas sociais que prevaleciam seja num sentido de correção dos desequilíbrios que nos caraterizam) ou de riscos em presença que importa não desprezar à mão de inércias preguiçosas ou de fogachos imediatistas ou sensacionalistas.

Nas primeiras, a informação de que já existem mais portugueses por naturalização do que por nascimento aponta para a capacidade crescente que vimos revelando para acolher nova imigração, designadamente no caso daquela que mais poderá contribuir para nos ajudar a dar saltos qualitativos em matérias de escassez e qualificação de recursos humanos. Nas segundas, os bons resultados patenteados desde 2011 em termos de interrupção voluntária de gravidez (demonstrando uma consciencialização que os arautos da desgraça negavam ser possível de acontecer) e a hipótese de uma medida de redução do IVA na eletricidade para as camadas mais desfavorecidas da população. Nas terceiras, o impacto do turismo (que importa estudar em todas as suas dimensões e não apenas valorizar do ponto de vista do seu sempre mais conjuntural do que estrutural contributo macroeconómico, dos recordes que o setor vai obtendo ou dos ganhos de manobra orçamental assim permitidos às grandes autarquias) e o populismo em movimento (que Arons de Carvalho denuncia especialmente quando alavancado pelo serviço público de televisão, como vamos vendo acontecer com programas “competitivos” tipo “Sexta às 9”).

Por estes caminhos vamos, se olharmos para além da espuma dos dias...

domingo, 29 de dezembro de 2019

NESTAS FÉRIAS DE NATAL...



As minhas quadras natalícias são habitualmente stressantes pelas azáfamas extraordinárias que tendem a suscitar, entre a negociação dos preparativos e respetiva logística, a compra de presentes de toda a espécie, as correrias entre casas de amigos, o aniversário de um filho, as faltas de última hora e tanto mais. Ao contrário do costume, e por diversas ordens de razões, este ano foi mais calmo na exigência de muitas destas matérias e permitiu-me uma maior fruição dos lados bons associados à época, designadamente em termos de alguma recuperação de tempo perdido em matéria de livros e filmes.

Destaco, no último caso, duas produções de grande qualidade da “Netflix” (para onde vai o cinema, tal como o conhecemos?), especialmente o último e excelente trabalho de Martin Scorsese (“The Irishman”) – onde Robert de Niro surge ao seu melhor nível, embora Al Pacino e Joe Pesci não lhe fiquem nada atrás – mas também o mais desigual “Marriage Story” (de Noah Baumbach, com magníficas interpretações de Scarlett Johansson e Adam Driver e vários apontamentos deliciosos). Quanto a literatura, duas obras de língua portuguesa que não podiam esperar (“Essa Gente” de Chico Buarque e “O Terrorista Elegante e Outras Histórias, escrito a duas mãos por Mia Couto e José Eduardo Agualusa) e uma incursão por um escrito da Nobel deste ano (Olga Tokarczuk), autora que desconhecia e de quem apreciei muitíssimo a capacidade para misturar uma escrita de grande finura e sensibilidade com a revelação de um pensamento marcado por uma notável espessura e profundidade – deixo um representativo excerto do seu “Viagens” de 2007: “Debruçada no topo do dique, fitando a corrente, dei-me conta de que, apesar de todos os perigos, tudo o que está em movimento é sempre melhor do que aquilo que está em repouso, que a mudança é mais nobre do que a estabilidade, que tudo o que estagna acabará por sofrer decomposição, degeneração e transformar-se-á em pó, enquanto aquilo que está em movimento consegue durar eternamente.


TWITTER ADDICTION



(Embora seja um utilizador muito moderado do Twitter este testemunho impressionou-me a ponto de achar que vale a pena transcrevê-lo para este blogue. O testemunho é de John Podhoretz, cronista do New York Post e que chegou a redigir discursos para os Presidentes Reagan e George H.W.Bush, por isso não é um testemunho qualquer.)

Citando John Podhoretz (link aqui):

“Porque é que abandonei o Twitter – coisa que também devem fazer

Já não coloco um post no Twitter há nove meses. O que estou a fazer? Estou ainda em recuperação. Nos últimos 10 anos, escrevi 180.000 tweets. Sim, disse 180.000. O que perfaz 18.000 por ano e 1.500 por mês.
Estava a colocar em média 50 tweets por dia – enquanto tinha um trabalho a tempo inteiro na edição de uma revista, com duas datas limite de publicação todas as semanas e com três crianças, casado com uma mulher que trabalha também a tempo inteiro.
Como é que isso era possível? Bem, escrevi sempre depressa. E durante uma longa parte da minha vida, senti-me como um frustrado e hipotético artista de “stand-up comedy”. Um tweet é algo basicamente de uma linha, pelo que se és um comentador compulsivo que nunca teve coragem para ficar na frente de uma parede de tijolos fazendo pedaços, acaba por ser a saída sonhada. O Twitter funcionou bem para mim de várias maneiras. Ao longo desta década, o meu registo de seguidores cresceu do zero até 141.000 pessoas. Os tweets angariaram audiência para os meus escritos e para os artigos no COMMENTARY, a revista de que sou editor.
Desenvolvi surpreendentemente relacionamentos significativos com escritores que desde sempre respeitei mas com que nunca me encontrei pessoalmente. Descobri jovens autores que deram notícia do seu próprio trabalho através de ligações no Twitter e que se tornaram valiosos colaboradores do COMMENTARY.
E era também um amaciador do meu ego. Ouvi de muitas pessoas em regra diariamente que gostavam do modo como alimentava o Twitter. As pessoas pediam-me em privado para retweetar as suas ligações porque a minha conta de seguidores era tão elevada. E é uma ferramenta de escrita e a restrição de 140 caracteres (presentemente 280) requer competência para dominar. Dominar uma qualquer competência é uma conquista agradável e eu dominei a competência de redigir no Twitter.
Mas mesmo assim 50 por dia. É de loucos. E é um sinal de como o Twitter pode enlouquecer um certo tipo de pessoas. A única substância além da comida calórica da qual dependi foi o tabaco e já deixei de fumar há 33 anos. Mas penso que é justo dizer que na última década, nos meus 50 anos, desenvolvi uma dependência relativamente ao Twitter.
Quando escrevia um tweet envolvido em emoções, especialmente quando respondia a alguma coisa com raiva, podia sentir o afluxo de dopamina. O tweet ultrapassava a emoção e trazia-me a momentânea e abençoada calma. O mesmo poderia dizer das lutas no Twitter, que são sedutoras para uma pessoa combativa que não tenha apenas confiança nas suas próprias perspetivas mas também na sua rápida perspicácia.
Com os altos vieram também os baixos. Uma vez escrevi “cala-te e canta” em resposta a um tweet de um célebre entertainer de cor que tinha dito alguma coisa de que eu não gostei acerca da guerra entre Israel e o território de Gaza. A sua mulher acusou-me então de ser racista – e subitamente enfrentei milhares de pessoas a dirigirem para mim a sua raiva.
O facto de eu ter tweetado essas palavras dá-nos uma ideia do que o Twitter pode provocar em utilizadores compulsivos – era uma resposta infantil e desagradável e, tenho vergonha de o dizer, era algo que tinha escrito com 53 anos de idade. E essa coisa demorou-me dez segundos a tweetar e dias a vivê-la.
É assim que acontece com o Twitter; os (ainda não acredito realmente nisto) 50 tweets por dia realmente não interessam. É antes o 3.401 ésimo tweet que interessa, o que se torna viral, que acaba por nos definir – e a característica de se tornar viral não é em regra algo que nos faça sentir orgulhosos.
Decidi abandonar o Twitter este ano depois de tweetar uma graçola sobre a atacar uma escola de jornalismo com uma bomba de neutrões. Acontece que só pessoas da minha idade ou mais velhas situaram a graça numa referência a uma controvérsia de há cerca de 35 anos que deu então ela própria origem a milhares de anedotas mordazes - porque a bomba de neutrões tinha a característica de ser concebida para matar pessoas e deixar intactos os edifícios.
Fui acusado de advogar o assassínio em massa.Uma vez mais fi-lo como fazendo parte de um padrão de comportamento compulsivo - o tempo entre o pensamento e o tweet: 30 segundos
– o tempo entre o pensamento e o tweet: 30 segundos, terminou com uma controvérsia ridícula que me efz lamentar ter algum dia começado a tweetar. Decidi então acabar. Ponto final. 
Nove meses depois, ainda leio o Twitter - a sua utilidade como fonte de notícias não tem paralelo - mas não participo de todo. E sim sinto a sua falta. Sinto a falta de apresentar o meu trabalho aos leitores. Sinto a falta de apresentar o trabalho da minha própria revista aos leitores. Lamento ter de deixar os "fazedores de uma linha" que me divertem e divertem os outros. 
Poderia encontrar um meio de participar simplesmente tweetando artigos e autores espirituosos. Sim podia. Mas não vejo como é que poderia evitar afundar-me de novo na lama. 
Há uma razão pela qual o Twitter marcou esta década da comunicação. É o meio mais interativo que o mundo alguma vez conheceu e é uma grande diversão. Mas o Twitter tem presentemente uma super-alma e a super-alma é venenosa. Ele retribui o mau comportamento retórico, privilegiando o ultraje em detrimento de todas as formas de razão e encoraja-nos a não nos compreendermos reciprocamente. É o diabo no nosso ombro. Ou, pelo menos, era o diabo sobre o meu."

Não sei se depois da leitura deste texto irei continuar a escrever com tanta rapidez e força de impulso. Já me arrependi de o fazer no e-mail e bem compreendo a angústia do jornalista americano que ocupa o post de hoje.

Bem fez o Eça de Queirós que talvez tenha escrito com rapidez o seu chiste contra Camilo Castelo Branco mas que nunca o enviou (referência a um delicioso artigo de Luís Miguel Queirós no Público (link aqui) sobre uma controvérsia que não aconteceu entre Eça e Camilo). Se Eça tivesse acesso ao Twitter talvez não tivesse resistido ao impulso e sabe-se lá que bela pugna não teríamos para a história.