terça-feira, 10 de dezembro de 2019

DÁ QUE PENSAR!



(O Twitter é um monumento de acesso a informação, acaso se escolham as entradas certas e os seguimentos aconselháveis de quem valha a pena. Foi através de um tweet sugerido pelo grande e na berra Branco Milanovic, ver próximo post, que cheguei a este curioso enviesamento dos media.)

Não conhecia a existência do FAIR – Challenging media bias since 1986, ou seja, um sítio web dedicado à análise dos enviesamentos de cobertura jornalística dos principais meios de comunicação, com relevo para os EUA. Como é óbvio, um leitor atento deve preocupar-se com os eventuais enviesamentos de quem pretende registar e criticar enviesamentos como o FAIR, mas neste caso a investigação parece-me extremamente pertinente.

2019 foi claramente o ano da erupção de movimentos de massas de grande amplitude que vieram à rua, mais ou menos organicamente, mais menos do que mais, combatendo injustiças, deceções com a vida política, com as desigualdades e com medidas que reproduzam tais desigualdades, nem que sejam apresentadas sob a capa de adaptações estruturais entendidas como inevitáveis (estou a pensar neste último caso na violenta emergência dos “maillots jaunes” em França na sequência de uma encapotada fiscalidade de Macron de suporte aos ricos, inicialmente disfarçada sob o lema da transição climática).

Mas, embora a comunicação social em Portugal tenha os seus próprios enviesamentos (ideia sugestiva para um espaço neste blogue), e por isso não seja um fiel reprodutor dos enviesamentos da grande comunicação internacional, a verdade é que já tinha intuído este enviesamento de que fala o FAIR, claramente ilustrado pelo gráfico que abre o post de hoje.

Alan Macleod demonstra no já mencionado FAIR (link aqui) o foco seletivo que órgãos de comunicação como o New York Times e a CNN têm realizado sob as gigantescas manifestações de Hong-Kong, quando comparadas com uma abundante diversidade de outras experiências de protestos e repressão associada observadas em países como o Chile, o Equador e o Haiti. Podemos discutir a transcendência do movimento de protesto em Hong-Kong que tanto tem seduzido intelectuais da nossa praça, como por exemplo Clara Ferreira Alves, para falar talvez na mais mediática e o que ele representa de luta pela liberdade nos tempos modernos, desafiando o poder chinês como ninguém o desafiou desde Tiananmen. Tudo isso é relevante mas o que não podemos ignorar é que os protestos no Chile, Equador e Haiti são incomparavelmente mais mortíferos e repressivos, pelo menos a partir dos números de mortes provocadas pela repressão policial (8 no Equador, 42 no Haiti e 26 no Chile). Em termos de mortes diretas provocadas pela repressão em Hong-Kong não há pelos registos que se conhecem mortes observadas, o que contrasta com as 737 histórias registadas por aqueles dois órgãos de comunicação americanos.

Podemos interrogar-nos sobre o sentido deste óbvio enviesamento. De um lado, Hong-Kong e do outro Chile, Equador, Haiti. Ora, a centralidade da visualização e registo dos protestos de Hong-Kong tem duas dimensões: a integração no mundo desenvolvido e o facto do alvo dos protestos ser a China e o seu modelo de capitalismo de Estado, repressivo e autoritário. Isso basta nos media para abafar a revolta dos descamisados e empobrecidos pela desigualdade no Chile, no Equador e no Haiti.

O artigo de McLeod toca ainda numa outra tecla, essa bem mais controversa e carenciada de maior pesquisa. Segundo o articulista do FAIR, ao esmagadoramente mais elevado número de histórias jornalísticas sobre Hong-Kong corresponde a menor diversidade de opiniões. Ora, é matéria de aprofundamento necessário. Que outras interpretações seriam possíveis dos protestos de Hong-Kong para além da narrativa “luta pela liberdade contra uma autoridade comunista repressiva”? É uma boa pergunta mas não tenho elementos para a abordar, pelo menos por agora.

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