(O Twitter é um
monumento de acesso a informação, acaso se escolham as entradas certas e os
seguimentos aconselháveis de quem valha a pena. Foi através de um tweet sugerido pelo grande e na berra Branco Milanovic,
ver próximo post, que cheguei a este curioso enviesamento dos media.)
Não conhecia a existência do FAIR –
Challenging media bias since 1986, ou seja, um sítio web
dedicado à análise dos enviesamentos de cobertura jornalística dos principais
meios de comunicação, com relevo para os EUA. Como é óbvio, um leitor atento
deve preocupar-se com os eventuais enviesamentos de quem pretende registar e
criticar enviesamentos como o FAIR, mas neste caso a investigação parece-me
extremamente pertinente.
2019 foi claramente o ano da erupção de movimentos de massas de grande
amplitude que vieram à rua, mais ou menos organicamente, mais menos do que
mais, combatendo injustiças, deceções com a vida política, com as desigualdades
e com medidas que reproduzam tais desigualdades, nem que sejam apresentadas sob
a capa de adaptações estruturais entendidas como inevitáveis (estou a pensar
neste último caso na violenta emergência dos “maillots jaunes” em França na
sequência de uma encapotada fiscalidade de Macron de suporte aos ricos,
inicialmente disfarçada sob o lema da transição climática).
Mas, embora a comunicação social em Portugal tenha os seus próprios
enviesamentos (ideia sugestiva para um espaço neste blogue), e por isso não
seja um fiel reprodutor dos enviesamentos da grande comunicação internacional,
a verdade é que já tinha intuído este enviesamento de que fala o FAIR,
claramente ilustrado pelo gráfico que abre o post de hoje.
Alan Macleod demonstra no já mencionado FAIR (link aqui) o foco seletivo que órgãos de
comunicação como o New York Times e a CNN têm realizado sob as gigantescas
manifestações de Hong-Kong, quando comparadas com uma abundante diversidade de
outras experiências de protestos e repressão associada observadas em países
como o Chile, o Equador e o Haiti. Podemos discutir a transcendência do
movimento de protesto em Hong-Kong que tanto tem seduzido intelectuais da nossa
praça, como por exemplo Clara Ferreira Alves, para falar talvez na mais
mediática e o que ele representa de luta pela liberdade nos tempos modernos,
desafiando o poder chinês como ninguém o desafiou desde Tiananmen. Tudo isso é
relevante mas o que não podemos ignorar é que os protestos no Chile, Equador e
Haiti são incomparavelmente mais mortíferos e repressivos, pelo menos a partir
dos números de mortes provocadas pela repressão policial (8 no Equador, 42 no
Haiti e 26 no Chile). Em termos de mortes diretas provocadas pela repressão em
Hong-Kong não há pelos registos que se conhecem mortes observadas, o que
contrasta com as 737 histórias registadas por aqueles dois órgãos de
comunicação americanos.
Podemos interrogar-nos sobre o sentido deste óbvio enviesamento. De um
lado, Hong-Kong e do outro Chile, Equador, Haiti. Ora, a centralidade da visualização
e registo dos protestos de Hong-Kong tem duas dimensões: a integração no mundo
desenvolvido e o facto do alvo dos protestos ser a China e o seu modelo de
capitalismo de Estado, repressivo e autoritário. Isso basta nos media para
abafar a revolta dos descamisados e empobrecidos pela desigualdade no Chile, no
Equador e no Haiti.
O artigo de McLeod toca ainda numa outra tecla, essa bem mais controversa e
carenciada de maior pesquisa. Segundo o articulista do FAIR, ao esmagadoramente mais elevado número de histórias jornalísticas sobre Hong-Kong corresponde a menor
diversidade de opiniões. Ora, é matéria de aprofundamento necessário. Que
outras interpretações seriam possíveis dos protestos de Hong-Kong para além da
narrativa “luta pela liberdade contra uma autoridade comunista repressiva”? É
uma boa pergunta mas não tenho elementos para a abordar, pelo menos por agora.
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