sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

PARA UM CRESCIMENTO REDISTRIBUTIVO-INCLUSIVO



(Nos últimos tempos têm-se sucedido as críticas internas ao capitalismo. Muito provavelmente isso explica-se pelo registo de que, na senda do que Branko Milanovic nos quis dizer com o CAPITALISM ALONE, não nos resta hoje outra alternativa, nem sequer no mundo da utopia. Mas o que é marcante nesse movimento é a origem dessas críticas internas situar-se no pensamento dos que nunca ousaram estar fora do sistema. Ou seja, não é o resultado de quem se viu frustrado pela autodestruição das alternativas, mas por iniciativa de quem sempre acreditou nas virtualidades ilimitadas do mercado.)

Sabemos que o capitalismo não é uma entidade homogénea, mas antes profundamente heterogénea. Ainda há dias, em post dedicado a Branko Milanovic e à sua última obra CAPITALISM ALONE (link aqui), me referi ao confronto de dois modelos organizados em torno da influência americana e chinesa, realçando a pobreza de tal confronto se não formos para além das categorias principais. A investigação em torno das VARIEDADES DO CAPITALISMO sempre me atraiu com mais intensidade. Para além disso, o modo como as diferentes variedades de populismo entraram na configuração dos modelos concretos de capitalismo tende a reforçar a heterogeneidade atrás referida. A variável do populismo é chave para compreender essa heterogeneidade na medida em que ela emerge associada a um recuo da globalização, a partir do momento em que os populismos de direita e de esquerda ganharam posição na crítica da globalização, derrotando em toda a linha a linha reformista da sua transformação como modelo de alocação de recursos à escala mundial.

Mas o pano de fundo e contraponto de toda essa variedade resiste na frustrada afirmação da alternativa dos modelos de inspiração socialista e comunista. Frustrada afirmação que se desenhou por estádios progressivos de queda de expectativas. Primeiro, foi a degenerescência dos modelos soviético e chinês. Depois foi a desilusão com os movimentos do Terceiro Mundo que buscaram uma alternativa autónoma e que rapidamente desembocaram em estruturas autoritárias e corruptas. Finalmente, o progressivo isolamento do modelo cubano, apesar da sua resiliência e efetivos progressos em matéria de problemas básicos como a mortalidade infantil e as cópias adulteradas que surgiram em alguns pontos da América Latina, com destaque para o afundamento do chavismo.

Neste contexto e dado o inequívoco progresso em termos de bem-estar material que o capitalismo trouxe com o progresso tecnológico a uma massa muito significativa de população, a crítica externa do capitalismo, orientada para alternativas socialistas e comunistas, não poderia deixar de se transformar numa crítica interna do sistema. Pode, aliás, dizer-se que essa transformação é tanto mais inevitável quanto mais as sociedades capitalistas avançaram nas melhorias de bem-estar material. Claro que isso não significa que desapareça a memória das alternativas, mais ou menos saudosistas. Jeremy Corbyn e a sua ala trabalhista representam um exemplo dessa tendência, sendo nesses casos praticamente impossível distinguir onde acaba a crítica interna e começa a externa. O que sabemos é que politicamente essa diluição das duas críticas é trágica e que o Labour demorará um longo tempo até navegar em águas mais cristalinas quanto às opções futuras.

Mas o facto mais sugestivo é a proliferação de críticas internas, provenientes não de saudosistas de uma utopia alternativa, mas de gente que pensa a partir de dentro e que sempre alinhou com as virtualidades pressupostamente ilimitadas do mercado e da alocação de recursos que proporciona. Há um tema particularmente caro a este blogue que é o principal responsável desta avalanche de críticas internas, preocupadas com a sustentatibilidade do sistema. Esse tema é a desigualdade, combinada com a evolução estrutural do sistema para formas de concentração do capital e da procura de trabalho que a reproduzem e fixam enviesadamente a política económica e a fiscalidade.

Durante muito tempo, a desigualdade foi encarada pelo capitalismo como um regulador das preocupações distributivistas do sistema, sendo extremamente conhecida a ilusão do trade-off entre crescimento e equidade. Esta última para ser melhorada exigiria sempre um menor crescimento e esse trade-off era uma espécie de chantagem assusta meninos. Podes redistribuir mas crescerás menos e podes ter problemas de emprego!

Essa fase está hoje claramente suplantada pela evidência de que a desigualdade constitui um inibidor estrutural do crescimento e isso altera profundamente a questão. A desigualdade pode ser entendida como um custo inibidor do crescimento e da dinâmica do sistema. É por isso, por exemplo, que Martin Wolf invoca (link aqui), vejam quem, Aristóteles: “É claro que … esses estados em que o elemento intermédio é forte, e mais forte se possível do que os outros dois (o rico e o pobre) juntos, ou de qualquer modo mais forte do que qualquer um dos outros, terá todas as possibilidades de usufruir de uma bem administrada constituição”. Para Martin Wolf, o enfraquecimento da concorrência, um fraco crescimento da produtividade, uma desigualdade elevada e a degradação da democracia devem ser interpretadas à luz de uma perspetiva global da degenerescência do capitalismo e não como peças separadas de um puzzle com resolução ainda desconhecida.

É o que eu chamo uma crítica interna demolidora, tão ou mais demolidora do que uma visão externa saudosista à la Corbyn.

Mas nós economistas deixamo-nos enredar no ceteris paribus (uma variável mexe-se mantendo-se tudo o resto constante). Que bom que seria. É que hoje a questão não é apenas colocar em prática um crescimento redistributivo-inclusivo. O desafio é mais amplo e envolve a necessidade de configurar uma perspetiva mais saudável do ponto de vista intergeracional, integrando a questão da emergência climática e da sustentabilidade em geral. Assunto para outros escritos.

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