quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

MORTALIDADE MATERNA



(Não são as correções estatísticas operadas pela Direção Geral de Saúde acerca dos números dos últimos três anos que atraem a minha atenção, nem sequer a magnitude dos números, embora não deixem de ser preocupantes. O que me interessa essencialmente analisar é a natureza da própria morbilidade, que interpreto como algo determinado por uma evolução social muito concreta que não gerou ainda os comportamentos mais adequados em termos de minimização do risco.)

Os números revistos pela DGS respeitantes aos anos de 2016, 2017 e 2018 geraram na comunicação social alguma preocupação, arriscaria mais pelas condições que estiveram na base da revisão operada (essencialmente reencontro e ajustamento de fontes) e pela dança dos números que tal revisão operou do que propriamente pela natureza dos problemas que subjazem a tais acontecimentos.

É sabido que a idade média da mulher no casamento aumentou significativamente, o que não é propriamente o reflexo da condição feminina, mas essencialmente das condições de remuneração e habitação de casais jovens, que protela a idade do casamento. Acresce a este facto o resultado paulatino mas sustentado da decisiva entrada da mulher no mercado de trabalho, com o que isso traz de preenchimento de expectativas de um grupo que atinge as suas qualificações com os resultados mais elevados quando confrontados com os alcançados pelos homens. A progressão na vida profissional é a medida de ajustamento mais relevante com essas expectativas e, para além das condições de conciliação da vida profissional e familiar que, apesar dos progressos alcançados, continua a penalizar a mulher, a mulher ativa enfrenta o dilema da fertilidade, renunciando à mesma ou diferindo-a até aos limiares do possível.

O aumento da idade média das mulheres que têm o seu primeiro filho é uma consequência diríamos natural de um estado de coisas que não é em si natural, antes resulta de condições que penalizam a mulher e que a coloca perante riscos que importa avaliar e não analisar de ânimo leve. E não será espúrio dizer que nesta equação há uma altura em que as condições económicas entram em ação. Nem todas as grávidas de idade mais elevada são acompanhadas com o rigor que uma situação de maior risco exigiria. É sabido que as condições de acompanhamento de processos de gravidez melhoraram de forma muito significativa e pelo que vou sabendo de comparações empíricas internacionais o acompanhamento de uma grávida em Portugal em matéria de meios auxiliares de diagnóstico, designadamente de ecografias, é bem mais generoso do que o observado em alguns outros países europeus mais desenvolvidos do que Portugal.

O que me parece existir aqui é uma alteração significativa de contextos de gravidez, determinados não só pelo aumento de idade média da mulher futura parturiente mas também pelo contexto de vida e pressão profissional que a grande maioria das grávidas tardias enfrenta no seu dia a dia profissional. Ora, numa alteração de contexto desta natureza, interrogo-me se o comportamento de mulheres grávidas e do próprio sistema de acompanhamento estão neste momento devidamente adaptados a essa mudança de paradigma. Se o parto é sempre uma situação de risco, esse risco aumenta neste contexto de processos de gravidez tardios.

O problema da mortalidade materna apresenta assim uma dimensão de problema social que transcende o ato clínico e que ilustra bem como a recuperação da taxa de fertilidade não pode ser afrontado com uma simples retórica política ou com o mais esmerado e politicamente correto “wishful thinking”.

Sem comentários:

Enviar um comentário