quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

“CROWDING OUT”? MAS QUAL?



(Regresso aos posts de economia dos quais andava um pouco arredado para dar conta de uma nova investigação referenciada pelo Financial Times, como isto vai mudando, que quantifica econometricamente algo que outros economistas já tinham, empiricamente e com narrativas sobre indústrias concretas, demonstrado. Há nomes conhecidos nesta matéria e o tema centra-se em algo que faz parte da matriz intrínseca deste blogue, as relações entre o investimento público e privado.)

Uma das lengalengas que a menos cuidada iniciação à economia costuma derramar sobre os incautos alunos e discípulos é na nomenclatura anglo-saxónica designada por “crowding-out”(do investimento), que equivale na prática a uma destruição de recursos. O princípio subjacente a esta lengalenga assume várias variantes consoante a sofisticação imaginação dos modelos que a suportam. Mas a variante principal prende-se com o efeito que uma dose demasiado volumosa de investimento público (que tem de ser financiado) provoca sobre o preço em mercado dos recursos financeiros. O Estado para financiar as suas frentes de investimento tenderia a fazer subir as taxas de juro, provocando por essa via a queda do investimento privado. Por outras palavras, o financiamento do investimento público “come” recursos, o que vai acabar por afetar negativamente o esforço de investimento privado. Por isso, os seguidores do “crowding out” afirmam que o impacto sobre a procura que o aumento de investimento público tenderá a gerar não pode deixar de ser cotejado com a queda de investimento atrás assinalada, podendo no limite e em condições de efeitos penalizadores máximos mais do compensar o impulso intervencionista, rebaixando investimento e emprego.

Falo em lengalenga pois este é um dos casos em que os cientistas que trabalham em domínios mais rigorosos da ciência riem-se a bom rir destes mecanismos causais, já que eles ignoram aspetos básicos da mantra neoclássica, como por exemplo a elasticidade do investimento face às variações da taxa de juro, que são na prática bem mais baixas do que o argumento tende a sugerir. Mas há outros fatores que o argumento ignora como por exemplo a influência sobre o investimento de dimensões como a estabilidade do horizonte económico, a incerteza, as antecipações da procura futura, etc, etc.

A muito na berra economista Mariana Mazzucatto, cuja trajetória de ascensão vem do trabalho conjunto que realizou com Carlota Pérez (mulher de Christopher Freeman e co-autora de muita reflexão sobre os paradigmas técnico-económicos do capitalismo) em torno dos determinantes e processos de inovação, foi das primeiras a sistematizar e a desenvolver narrativas empíricas sobre setores e projetos concretos, mostrando o efeito impulsionador do Estado nas trajetórias de inovação. O mecanismo é o das externalidades geradas pelos proto-investimentos do Estado, gerando condições que sem o seu lançamento seriam fortemente inibidoras da entrada da iniciativa privada dada a dimensão dos custos de incerteza de tais projetos. Bastante antes de Mazzucato, outro economista seminal da inovação, Nathan Rosenberg, elaborou também aprofundadas narrativas empíricas sobre, por exemplo, o papel do investimento público em grandes projetos ligados à defesa e aos aparelhos militares.

A coerência dos grandes processos parece vir ao de cima quando há poucos dias o Alphaville do Financial Times (link aqui) trazia para o conhecimento dos leitores do jornal não só a retoma das teses de Mazzucato, mas também os resultados de um paper recente do NBER – USA elaborado por uma tríade de economistas, Enrico Moretti, John Van Reenen e Claudia Steinwender (link aqui). Moretti é o mais conhecido da tríade, sendo autor do trabalho de investigação mais fino sobre a nova geografia do emprego nos EUA, diz-se uma pesquisa de cabeceira do Presidente Obama (este justificava o P grande) (link aqui) . Por ironia do destino, o paper de Moretti e companhia incide nos efeitos da despesa em I&D na área da defesa. Quase que arriscaria dizer que as narrativas empíricas precederam a investigação quantitativa. Esta última pode dar-se ao luxo de quantificar que, para uma base de dados OCDE, um aumento de 10% na despesa pública de I&D em defesa gera um aumento de 4% na despesa privada de I&D no ano seguinte.

Para os dados apresentados com a chancela do NBER, apetece dizer: mas qual crowding-out? Neste caso, trata-se antes de um “crowding-in”. E também apetece perguntar se todo o zeloso transmissor da teoria do “crowding-out” terá ou não a honestidade intelectual de, nas suas aulas ou palestras, apresentar o contraditório revelado pelo paper do NBER ou das narrativas de Mazzucato.

E o que é espantoso é que os argumentos que poderão explicar os resultados de Moretti e companhia estão ao alcance de uma elementar formação em economia: custos fixos muito elevados dos projetos de fronteira nesta área que inibem a entrada do setor privado na investigação a realizar; efeitos de spillover gerados pelo investimento público e constrangimentos de crédito enfrentados pelo setor privado. E os autores até encontram evidências de spillovers entre diferentes países.

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