segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

OS DESAFIOS QUE PERMANECEM SEGUNDO TEIXEIRA DOS SANTOS

 


(Confesso-vos que não tinha intenções de ler tão cedo o livro apresentado pelo Fernando Teixeira dos Santos por estes dias e que suscitou tanto regozijo entre o universo de “Fepianos”. A minha lista de leituras económicas em fila de espera é longa, não consigo despachar a tempo o que me vai chegando pela Amazon, pois o trabalho profissional ainda me ocupa uma grande parte do tempo disponível, cada vez gosto mais de dormir e sou um eterno devorador de sugestões culturais aliciantes para lá do mundo da economia e, meus caros, há tanta coisa de interessante nesse mundo da transgressão disciplinar. E, como tenho insistido por estas páginas, não gostaria de ser membro de um clube que me aceitasse como sócio, por isso o mundo “Fepiano” já me diz pouca coisa, apesar de a ele ter dedicado uma longa parte da minha vida. Gosto de olhar para a frente e não para trás. É uma forma de me manter velho, mas vivo. Além disso, o meu colega de blogue já se tinha referido ao livro, tenho confiança na sua análise crítica, li coisas interessantes nas entrelinhas da sua curta recensão e por isso decidi que haveria tempo de me dedicar a tal leitura. Acresce, não menos importante, que começo a ficar farto de explicações em livro de gente que passou por governos PS e que ao que parece não ficou lá muito de bem com a sua consciência, como é aliás visível por exemplo no pensamento do Daniel Bessa que prefacia o livro de Teixeira dos Santos. O exercício de funções públicas deste calibre e natureza, muito louvável pela prestação de serviço público que representa, terá sempre implicações, custos e benefícios e irrita-me um pouco que se pretenda estar de bem com Deus e com o Diabo. E no caso de Teixeira dos Santos ser ministro de Sócrates é cá um Karma … Mas isso faz parte do exercício do serviço público. O que me interessa verdadeiramente é o tipo de reflexão que estas experiências despertam do ponto de vista da economia como disciplina de suporte à política económica e será sempre nessa perspetiva que me vai interessar a leitura do livro do Teixeira dos Santos.)

Resumindo, estava o “Mudam-se os Tempos, Mantêm-se os Desafios” sossegado na fila de espera da minha ampla secretária em casa, nos últimos tempos menos arrumada pelos efeitos do teletrabalho (curiosamente a secretária do escritório de Matosinhos nunca esteve tão irrepreensivelmente arrumada …) quando numa passagem rápida pelo Facebook, que só frequento, esclareço, para alargar um pouco a audiência a este modesto blogue me apercebi que a publicação do livro do Teixeira dos Santos estava também associada a um regresso do autor e colega aquelas páginas. Não vou especular sobre o timing escolhido para esse regresso, é da vida e ponto final.

Mas o que despertou a minha atenção foi o que considero ser uma verdadeira preciosidade protagonizada por um post de Teixeira dos Santos, que reproduzo aqui em imagem, já que não consegui fazer copy do texto da mensagem:


Claro que pensei duas vezes, para quê perturbar a lista de espera de obras para analisar? Mas a leitura do post gerou-me uma ampla e completa desconfiança. E explico porquê. Essa história de “isto é verdade para uma família, para o Estado e para o país como um todo” é uma refinada falácia que povoou a defesa obstinada que alguns macroeconomistas fizeram do uso da austeridade na gestão macroeconómica da crise de 2007-2008 e das dívidas soberanas, para mal dos nossos pecados de infrator e cobaia da terapia. Aqueles que se recusaram a participar no enterro precoce de Keynes nos anos 70 da estagflação e da crise da política económica e que nunca acreditaram que o ciclo económico estava domesticado pela via da política monetária (enterrando a política fiscal), sabiam que Keynes deu por certo voltas ao túmulo pela confusão entre famílias, Estado e País.

Ora, isto é particularmente relevante quando o post de Teixeira dos Santos defende que a “austeridade” é uma invenção do discurso político e mediático, ignorando aparentemente (não ignoro que se trata de um post e por isso dou o benefício da dúvida ao autor, dependente por isso da leitura do livro, de que tenho de mudar a posição na fila de espera). Conviria recordar, e não fazê-lo é suspeito, que se desenvolveu um longo e frutífero debate entre os macroeconomistas que, em meu entender, destruiu a falácia a que me referia anteriormente. E ao contrário do que poderá parecer aos menos avisados, os contributos mais relevantes nessa controvérsia não pertenceram a economistas esquerdistas ou a caminhar para essa classificação. Não é objetivo deste meu post fazer alarde do muito que li nessa altura para demonstrar como é precipitado ignorar o debate desenvolvido em torno da abordagem “austeridade”. Basta-me recordar aqui o perspicaz contributo do economista Richard C. Koo, analista no NOMURA SECURITIES, “The Escape from Balance Sheet Recession and the Quantitative Easing Trap”, publicado pela Wiley em 2015. A leitura desta obra é suficiente para compreender como, num contexto em que famílias e empresas estavam no mundo a diminuir dívidas, sujeitar os setores públicos a uma profunda compressão de despesa representou um suicídio macroeconómico desnecessário.

E ao contrário do que mentes apressadas poderão pensar, não adianta retorquir que lá está este a ignorar o peso da dívida em Portugal. Estou perfeitamente à vontade nesta questão, pois posso demonstrar que, em trabalho de avaliação intercalar do chamado QCA III em Portugal, alertei para a perigosa deriva que a alocação de recursos em Portugal estava a atravessar, porque já nessa altura a expansão dos não transacionáveis na economia portuguesa, visível na subida do preço relativo dos serviços não em linha com o desenvolvimento económico português, estava a provocar sérios estragos nos indicadores de rendibilidade na economia portuguesa. A mais elevada rendibilidade do capital no setor dos não transacionáveis estava a dar sinais perversos ao investimento em Portugal, que se afastava dos transacionáveis, onde se ganha ou perde a competitividade portuguesa. E também nesse trabalho chamei a atenção para os efeitos perversos que a subida dos preços relativos dos serviços estava a provocar na taxa de câmbio real da economia portuguesa. Como sabemos, em contexto de zona euro, a taxa de câmbio real da economia portuguesa é fortemente sensível ao preço relativo dos nossos serviços. Que eu me recorde só Carlos Costa no Banco de Portugal alertou para esta deriva dos não transacionáveis, por exemplo analisando o comportamento do crédito bancário por setor de atividade.

Sou sensível por isso à questão da dívida e ao que ela implica de racionalização do próprio debate macroeconómico em Portugal. E a prova da minha coerência são os dois posts neste blogue sobre o que considero ser o êxito do conservadorismo fiscal do Governo PS na gestão da pandemia (e não sou propriamente um adepto fervoroso de João Leão). Arriscaria a dizer que a inesperada maioria absoluta do PS também passou por aqui.

E cá estou em plena leitura do Mudam-se os Tempos, Mantêm-se os Desafios do Professor Teixeira dos Santos. Tenho cerca de 70 páginas já lidas com atenção e para já alinho sem hesitações com a indicação da produtividade como o principal desafio do país. Voltarei a esta questão quando já tiver avançado mais profundamente na leitura do livro.

Porque é a debater que a gente se entende e a mim interessa-me perceber em que medida o exercício em concreto da política económica nos ajuda a enriquecer o debate das ideias macroeconómicas. Isso para mim é que é importante. Dispenso bem o que poderá ser aliciante para os jornalistas e escuso de explicar do que é que se trata.

Um abraço ao Fernando Teixeira dos Santos.

ABSOLUTO COSTA!

(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt) 

Eu vou fazer como António Costa gosta: no caso, vou virar a página das eleições legislativas ontem acontecidas. E isso porque os resultados foram de tal modo improváveis e imprevistos, mesmo que bem melhores do que o que se dizia poder ser a alternativa dita de mudança, que não apetece continuar a jogar o jogo do comentário por manifesta incompetência pessoal para o efeito. Não obstante, e como pequeno prémio de consolação, sinto-me muito bem acompanhado por uma personalidade tão excecional quanto o é o nosso Presidente da República (que ficará doravante semi-desocupado, i.e., impedido de concretizar algumas das principais incursões de pressão e intriga que preparava desde outubro) e pela larga maioria da nossa comunicação social e das empresas de sondagens (que saíram da noite de ontem completamente descredibilizadas, podendo mesmo haver quem considere com alguma legitimidade que havia nelas algumas agendas políticas a quererem ser impostas com a ajuda de incompetentes, incautos ou servis comentadores ― não direi nomes, pelo menos por ora). Quanto ao resultado, ele deixa claro quanto o País depende na matéria de uma massa muito representativa de funcionários públicos, pensionistas e assalariados mal pagos (os do salário mínimo e do médio que se lhe aproxima) por contraponto ao maior dinamismo potencial dos jovens, das classes médias e da criação de riqueza; o que impõe que aqui expresse um desejo forte: o de que a maioria absoluta não seja um adicional elemento fomentador de nepotismos por demais perigosos e de um continuado imobilismo nacional perante as reformas urgentes de que carecemos.

CHAPEAU!

 

(Aguentei firme até ao início da madrugada para seguir uma das surpresas mais significativas que a democracia portuguesa nos proporcionou, a começar por uma surpreendente descida da abstenção em plena onda Omicron. Não sei se foi o universo dos votantes grisalhos que se movimentou, confinados ou não, em isolamento ou em qualquer outro estatuto, já que não se viu movimento relevante na hora indicativa, mas a verdade é que em plena pandemia reforçar participação e alterar robustamente os resultados de duas semanas de “track polls” como nunca tinha havido na comunicação social portuguesa é obra de um eleitorado que não para de nos surpreender. Como tinha assinalado nos meus “bad feelings”, tenho matéria para concluir que a guinada de António Costa na última semana da campanha foi decisiva, não só não derrapou como conseguiu orientar a viatura para uma maioria absoluta, capitalizando uma das mais precipitadas decisões que a esquerda não PS terá assumido na história da democracia portuguesa, fruto do que eu considero uma anomalia da nossa democracia, a excessiva concentração do debate político na discussão do Orçamento de Estado.)

Certamente que alguns dos traços estruturais do comportamento de António Costa não vão alterar-se na sequência da estrondosa vitória ontem alcançada, produzindo um mapa eleitoral que até arrepia. Mas, depois de seis anos de governação, quatro em regime de uma surpreendente geringonça que passou pelos jornais mais influentes de todo o mundo e mais dois anos de conflitualidade à esquerda e pandemia no lombo de todos os nós e do Governo em particular, conquistar uma inequívoca maioria absoluta é obra que não está ao alcance de muita gente. Por isso “chapeau”, muito respeitosamente.

Curiosidade única da política interna, desta vez não foi Rui Rio a poder reivindicar-se de que comentadores, sondagens e toda a dinâmica de ampliação de tendências eleitorais em que a comunicação social mergulhou ávida nas últimas semanas não compreendiam de todo o pulsar do eleitorado português. Foi um António Costa a que muitos tinham feito já o enterro político (e desculpem, não é embirração até porque gosto imenso do que a personalidade escreve em estilo único, mas estou ansioso por ver o fácies de Clara Ferreira Alves a comentar esta vitória de Costa) a ultrapassar esses limites do cansaço de governação, contrariando toda a encenação de falso suspense que as track polls das últimas semanas nos proporcionaram.

Por mais bizarro que possa parecer, podemos imaginar que afinal um dos mais criticados e, temos de convir estranhos, atos comunicacionais de António Costa, a apresentação na televisão no debate com Rui Rio da capa do Orçamento de Estado para 2022 chumbado na Assembleia, mesmo antes de passar à discussão na especialidade, acabou por ser validado nas urnas. Creio que é Susana Peralta que o diz na sua crónica pós-eleições de domingo, que afinal o Orçamento de 2022 teve a sua vingança, servida do modo mais frio que se possa imaginar.

A ciência política não tem demonstrado com clareza se as condições macroeconómicas e seu reflexo nas condições de vida pesam ou não fortemente nas decisões do eleitorado. Mas, como escrevi em alguns posts e ontem o Daniel Oliveira o sublinhava num dos seus comentários, não se entendia bem como é que a gestão eficaz do conservadorismo fiscal à portuguesa que o Governo tinha conseguido fazer da pandemia, a manutenção do emprego em níveis elevados, a própria gestão da pandemia e a reposição de rendimentos realizada nos primeiros quatro anos da geringonça batiam com o ressurgimento eleitoral de Rio e do PSD. Havia ali qualquer coisa que não batia certo.

Rui Rio mergulhava ontem no mais completo espanto quando concluía que à esquerda o voto útil tinha funcionado e o PS tinha conseguido essa proeza e à direita tinha sucedido o contrário. Não compreendo esse espanto. Não gosto de malhar em quem perde e não será obviamente desta vez que o irei fazer. Mas sobretudo nos debates com essa direita, sobretudo IL e CDS, Rio não fez o mínimo esforço para justificar e afirmar a importância desse voto útil. Antes pelo contrário, não raras vezes Rio assumiu aquela figura notável do que eu considero ser um dos melhores e mais intrigantes filmes de Woody Allen, ZELIG, aquela personagem camaleónica que tem o dom de se confundir com as personagens com quem convive, transformando-se nas mesmas. O problema é que retirando o caso do CDS, os programas da IL e o não programa de protesto do Chega são totalmente incompatíveis com o do PSD. E quando, tal qual ZELIG apurado, Rio condescendeu com as diatribes de Cotrim de Figueiredo e da IL, estava obviamente a cavar a sepultura do voto útil.

Na sua declaração final de ontem, Rio foi igual a si próprio, a ponto de trazer para a sua declaração a comunicação de que a sua campanha não tinha deixado dívidas. Mas era e custa-me dizê-lo um homem atordoado, atropelado por um veículo pesado sem saber exatamente o que lhe tinha acontecido, estava com vida, mas ele próprio a confessar, em português ou alemão, de que não tinha argumentos para justificar a sua presença com uma maioria absoluta do PS. O que é uma das mais bizarras e surpreendentes declarações de demissão que alguma vez ouvi na política portuguesa e internacional.

E, arrepia-me dizê-lo, que se confirma uma das constantes mais aterradoras da política portuguesa – a impossibilidade de um líder regional chegar a primeiro-Ministro.

No fim de contas, uma maioria absoluta de contornos avassaladores, com registos impensáveis em distritos como Bragança (em que poucos votos no interior fizeram desta vez a diferença), Vila Real, Viseu, Leiria e um resultado notável em Setúbal que talvez tenha sido a expressão máxima, fora da capital, do voto útil à esquerda e que deixou a própria Ana Catarina Mendes surpreendida.

Chapeau por isso.

Mas os problemas estão aí, a começar por uma seca tenebrosa que vai assombrar a entrada em funções do novo Governo.

A crítica permanente deste blogue será contributiva, como sempre o foi a pensar sobretudo nos problemas estruturais (não os que andam normalmente associados às banalizadas reformas estruturais da Troika) e na imperiosa necessidade desses constrangimentos não virarem ladainha do impossível e do complicado.

Acredito que Costa tem a perceção da responsabilidade que lhe assenta a partir de ontem nos ombros, visto como caso de estudo por alguma imprensa internacional. Por estranho que pareça as dificuldades da governação vão começar efetivamente agora. Decisões firmes e simultaneamente a criação de um clima de diálogo político que faça esquecer a maioria absoluta de Sócrates, ele também derrotado amplamente na noite de ontem, constituem um desafio político de grandes proporções. E de uma saída precoce da vida política, Costa poderá estar na margem de uma passagem pela democracia portuguesa que honra o que de melhor ela pode conter.

Espero que não me desiluda, porque já não tenho idade para grandes desilusões.

domingo, 30 de janeiro de 2022

MARCELO VAI ENTRAR EM JOGO!

(André Carrilho, https://www.rtp.pt/play/p4088/spam-cartoon)

Mal sabia eu que, quando ontem aqui escrevi que Marcelo já estaria a aquecer os motores para o pós-eleições, o Presidente da República se preparava para uma declaração ao País em que, apelando naturalmente ao voto de todos, deixava recados incisivos sobre esse próximo futuro. Dizendo coisas com sentido, como na maioria das vezes, mas fazendo-o de forma deslocada no tempo (“encharcar com milhões as areias de um deserto” é algo que há meses foi ficando escrito com a definição do PRR!) e indiciadora de uma vontade de negociação ao centro que será o único modo por ele discernível ― certa ou erradamente, ça dépend ― de se procurar evitar tal encharcanço...


(Luís Afonso, “Bartoon”, https://www.publico.pt)