quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

MISCELÂNEA INSPIRADA POR UMA IMAGEM DE FILME

 

    (Kate Dibiaski, Jennifer Lawrence", no "Não Olhes para Cima", NETFLIX

(Vi o “Não Olhem para Cima” na Netflix em plena época de Natal e festividades associadas com netos à mistura e por isso talvez não lhe tenha prestado a atenção necessária. Aparentemente, trata-se de um filme leve, com alguns personagens histrionicamente algo exagerados, por exemplo a da Presidenta dos EUA, Merryl Streep, mas a metáfora que passa por ali merece que nela meditemos, colocando questões relevantes em termos da comunicação da ciência, emergência climática incluída. Mas há uma passagem do filme deliciosa na sua mensagem, que recupero através deste fotograma que abre este post. Numa longa espera na Casa Branca para serem recebidos pela Presidente americana e o seu Chefe de Gabinete, o cientista-astrónomo Randall Mindy (Leonardo Di Capprio), a jovem doutoranda Kate Dibiaski (a encantadora Jennifer Lawrence) e o incorruptível Dr. Oglethorpe (Rob Morgan) debatem-se com o problema do estômago que dá horas. O oficial do Pentágono que os acompanha consegue trazer para a sala uns snacks, mas sublinha que tais snacks têm de ser pagos. Mais tarde, a jovem doutoranda apercebe-se que foi ludibriada pelo Oficial do Pentágono pois esses snacks eram afinal de distribuição gratuita e daí o desabafo de Diabiaski, “Ele cobrou-nos pelos snacks mas eles eram de graça”…)

A cena é deliciosa, sobretudo quando é alimentada pela frescura indomável de Jennifer Lawrence, que interpreta a jovem doutoranda que não consegue perceber a inércia de toda uma sociedade perante o risco real de estar em vias de desaparecer pelo choque anunciado e previsto com a Terra de um cometa de grandes proporções.

Este fotograma suscitou-me uma miscelânea de reflexões, cujo foco é uma questão muito discutida na viragem que as políticas públicas vinham a atravessar antes da pandemia, sobretudo induzidas pela liberalização e desregulamentação desenfreadas. Apoios públicos “sujeitos a demonstração de recursos” (means tested) transformaram-se numa ladainha que começou a ser ouvida e que partiu de um princípio aparentemente benigno de que os apoios públicos devem ser distribuídos em função dos recursos que as famílias demonstrem não possuir. Trata-se de uma subtil mudança de rumo, pois a ideia de serviço público a preço zero para o utente é substituída pela ideia de que a gratuitidade (universalidade) do serviço absoluto não é absoluta e que os que evidenciam ter mais posses terão de pagar para garantir o seu acesso ou, em casos mais extremos, ver mesmo vedado esse acesso. Insisto de que se trata de uma ideia que passa bem em certas franjas da opinião pública e que é uma maneira relativamente engenhosa e até oculta de concordar com as formas mais descabeladas de populismo. Como sabemos, através da insidiosa prática de confundir a exceção com a regra e de proliferação de fake news nas redes sociais, o populismo mais descarado desconfia de todos os apoios públicos e por isso a questão dos Mercedes e dos Porches associados a rendimentos de inserção foi tão agilizada pelo Chega que o populismo latente em algum pensamento de Rui Rio ajudou a ganhar notoriedade. Lamenta-se que António Costa, a ministra do Trabalho e da Solidariedade Social e o PS como um todo não se tivessem esforçado por cortar rente esta falsidade com números atualizados da aplicação do rendimento de inserção[1].

O problema é que a análise e a experiência mostram que as políticas sujeitas a “demonstração de recursos” constituem sempre a expressão de uma trajetória, que se estima sem dor e por isso começa com uma modalidade que é bem recebida em muitas franjas da população, para uma regressão da própria ideia de política pública.

Não conheço melhor caso desta evidência do que a evolução das políticas públicas e do próprio conceito de bens e serviços públicos no Reino Unido, sobretudo a partir do momento em que o conservadorismo de Cameron e Osborne (em confronto com os conservadores atuais Cameron e Osborne eram potenciais príncipes), apostado numa completamente idiota política de austeridade para uma economia com soberania monetária e moeda internacionalmente reconhecida, iniciou um longo processo de desmantelamento e desregulamentação de políticas públicas. Como seria de esperar, a sociedade do Reino Unido depauperou com essa deriva infraestruturas fundamentais cujo reforço veio a revelar-se imperioso para enfrentar a emergência climática e a pandemia.

Mas o que o governo conservador de Boris Johnson veio demonstrar com as suas sucessivas configurações é a mais pura expressão de desrespeito pelos menos poderosos da sociedade britânica, como a sua gestão pandémica tem vindo a evidenciar, da qual a controvérsia das festas em Downing Street em plenos períodos de confinamento é apenas a ponta de uma série de posturas e procedimentos inenarráveis.

O tweet de Lord Roger Roberts (@LordRRoberts), um político liberal galês, expressa bem esse sentimento:

“Tenho 86 anos de idade, vi 17 primeiros-Ministros, alguns bons, outros maus – mas Boris Johnson é o primeiro que através de uma mistura de arrogância, incompetência e desonestidade governou para tornar as pessoas menos saudáveis e menos ricas, destruindo em simultâneo a democracia. É altura de se ir embora. Agora.”

Johnson esforça-se por estes dias em apresentar desculpas, deputados conservadores multiplicam-se em argumentos e justificações, provavelmente haverá provas a serem destruídas em Downing Street enquanto a Política atrasa o início das investigações óbvias e necessárias.

Mas o problema central não é esse. Formados no cume do elitismo de Escolas como Eaton e outras, mergulhados em arrogância e mordomias desde tenra idade, cultivando por natureza a sobranceria e a superioridade, estes Conservadores (friso bem estes) não fazem a mínima ideia do que é a solidariedade e do papel do serviço público, dando assim uma devida continuidade ao trabalho dos que começaram, timidamente, por introduzir os apoios sujeitos a demonstração de recursos.

Porque no fundo, bem lá no fundo, como a jovem doutoranda Dibiaski compreendeu, esta gente é bem capaz de nos fazer pagar por alguns snacks que são gratuitos. E por isso é que eu acho que o fotograma que escolhi do “Não olhem para cima” é uma poderosa metáfora do que alguma direita nos quer impingir.



[1] Não entendo esta anomia do PS que é extensiva a outras áreas, como por exemplo os excelentes resultados obtidos em matéria de combate ao abandono escolar precoce, que ainda não vi suficientemente expostos e demonstrados nesta campanha.

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