(O universo dos países da família “quistão” é tão estranho e longínquo que não tenho conhecimento nem experiência vivida que me permitam ousar compreender o que por lá se passa. E, nos últimos dias, a violência disparou no Casaquistão e ela tanto pode ser instrumentalizada, anunciar conflitos étnico-religiosos ou ser o simples resultado das profundas desigualdades que se têm enraizado por aquelas paragens. Mas, em contrapartida, o que se conhece melhor são os despojos e troféus da cleptocracia que se instalou depois da desagregação da União Soviética, que zarparam para outras paragens, com relevo especial para a capacidade de acolhimento revelada pela cidade de Londres e respetiva aglomeração.)
A maneira como cheguei a esta realidade conta-se em poucas palavras. Sigo regularmente o Twitter de Ann Pettifor (@AnnPettifor) e há dias dei com este tweet:
“Este artigo de acesso livre é uma das razões pelas quais a Open Democracy deve ser apoiada com donativos”.
E, por sua vez, Branko Milanovic (@BrankoMilan), retweetando Ann Pettifor, acusa o tema ainda em termos mais rudes:
“A Inglaterra, Londres em particular, foi uma das grandes facilitadoras e beneficiárias do roubo massivo de ativos da antiga URSS: solicitadores, advogados, relações públicas, políticos, universidades. E depois os facilitadores e os ladrões criaram conjuntamente thonk tanks sobre democracia e governança”.
E assim cheguei em primeiro lugar ao artigo de Thomas Rowley na Open Democracy net (link aqui), com o esclarecedor título “Enquanto o Casaquistão arde no fogo da desigualdade, a riqueza da sua elite permanece segura e sólida em Londres”. E assim fiquei a saber que a aglomeração Londrina é hoje o paradeiro de algumas moradias de luxo de valor em torno dos 530 milhões de libras detidas pela elite cazaque. O artigo documenta um vasto conjunto de propriedades associadas a membros da família dos Nazarbayevs que têm governado o Casaquistão desde há algum tempo, cujo principal elemento Nursultan Nazarbayev foi agora afastado da chefia do Conselho de Segurança Nacional, ao mesmo tempo que era solicitada a entrada das tropas russas no país para violentamente conter os incidentes de rebelião. E pelo que documenta Rowley no artigo, Londres acolhe também elites que caíram em desgraça, e como é fácil neste tipo de regimes isso acontecer. Offshores nas British Virgin Islands, participações ocultas de capital e o mercado imobiliário de luxo parecem ser assim uma das manifestações mais obscuras da chamada Global Britain, tão orgulhosa da sua soberania e do seu Brexit. E até uma fotografia da pobre da Rainha, ainda com o seu amado Marido e o discutível Duque de York (Príncipe André) com Nursultan Nazarbayev e sua mulher Dariga Nazarbayeva aparece reportada a uma visita de 2015 ao Palácio de Buckinghan. E até o inefável e controverso Príncipe André aparece como vendedor de uma moradia a um dos membros do clã Cazaque.
Claro que me podem dizer que a Open Democracy cheira a ativismo militante. E daí?
Mas para os mais circunspectos, em Dezembro do ano passado a muito confiável e respeitada (o que não significa que a Open Democracy não o seja, antes pelo contrário, no mundo de hoje esse tipo de ativismo é fundamental para a preservação dos valores sãos da democracia) Chatam House - Royal Institute of International Affairs publicou um relatório cujo título anuncia por si muita e variada coisa: “O problema do Reino Unido com a cleptocracia – como a prestação de serviços às elites pós-soviéticas enfraquece o Estado de direito” (link aqui).
O relatório analisa com minúcia a tempestade perfeita que a ocorrência simultânea da desregulação e agudização da globalização financeira e a desagregação da União Soviética representaram para a livre movimentação dos troféus da cleptocracia. E num país que tem dos sistemas financeiros mais modernos do planeta, em que por conseguinte, em princípios os princípios de regulação deveriam estar “au point”, o relatório conclui que o sistema de avaliação de risco de movimentos de capital suspeitos tem falhado em toda a linha, repercutindo-se essas falhas na ineficácia dos tribunais e das agências públicas criminais em seguir e condenar as movimentações fraudulentas de lavagem de dinheiro da cleptocracia ex-soviética.
E uma das conclusões do relatório não poderia ser mais clara:
“Esta situação é material e reputacionalmente lesiva do estado de direito no Reino Unido e do papel do Reino Unido como assumido oponente da corrupção internacional. Exige uma nova abordagem do governo do Reino Unido focada na criação de um ambiente hostil aos cleptocratas de todo o mundo. Um efetivo impulso anticleptocracia deverá eliminar vazios legais, exigir transparência às instituições públicas, decretar sanções contra as elites pós-soviéticas e perseguir os profissionais britânicos que facilitam a lavagem de dinheiro pelos cleptocratas”.
O quadro é conhecido. A partir do momento em que a circulação monetária e outros mercados, como o imobiliário, acolhem com frenesim a sedução do poder e da força da cleptocracia, é de enraizamento, cumplicidade e sedução do “bem-bom” que estamos a falar, com todas as consequências também conhecidas de internalização de comportamentos de “deixa andar”.
Vistos Gold, o lado oculto do futebol e a financeirização desregulada à moda e escala portuguesas são realidades próximas deste mundo da cleptocracia. O melhor é não deixar enraizar.
Nota-testemunho
Embora o meu colega de blogue tenha a arte, paciência e mestria para ir analisando o mundo dos debates eleitorais a dois que se multiplicam como cogumelos na televisão portuguesa, e por isso o felicito, deixo aqui o aviso prévio de que talvez com raríssimas exceções, não terei pachorra suficiente para com as minhas limitações de tempo sacrificar as minhas trajetórias de leitura. Isso não significa que não esteja fortemente preocupado com a mediatização de uma estranha campanha eleitoral como esta. E devo confessar que dou comigo a suspirar por arruadas, comícios, piqueniques ou churrascos como modalidades “old-fashioned” de convite ao voto. É que nesses momentos a necessidade do relato por parte dos jornalistas tende a sobrepor-se ao impulso das ocultas agendas mediáticas.
Uma nota final para lamentar a indesculpável passividade de partido do Governo, Assembleia da República e Comissão Nacional de Eleições para em tempo oportuno, que já lá vai, ter preparado a Lei Eleitoral para a sua adaptação ao tempo pandémico que pode hipotecar literalmente o valor da fiabilidade democrática dos resultados de 30 de janeiro de 2022. Se passassem menos tempo nas redes sociais e se tivessem compreendido que era necessário arregaçar mangas para criar um ambiente de participação favorável ao voto em segurança teriam preenchido o vosso papel, mesmo que tenham passado dois anos na mais completa inação parlamentar (alguns).
Sem comentários:
Enviar um comentário