(Um conjunto de personalidades em que reconheço alguns amigos publicou ontem no Público um artigo de opinião, apelando à formação de uma maioria plural de esquerda a partir das eleições de 30 de janeiro de 2022. Dediquei algum tempo a analisar esta tomada de posição e os fundamentos que a determinaram, não deixando de reiterar, para expressão de conflitos de interesses, que continuo fiel aquela máxima do Grouxo Marx, “eu nunca faria parte de um clube que me aceitasse como sócio”…)
As 100 personalidades que assinam este testemunho pré-eleitoral apresentam-se como apoiantes de primeiro tempo de convergências à esquerda, não consideram um drama a devolução do voto aos cidadãos e mais importante do que tudo entendem que “a concretização de uma agenda socioeconómica mais ambiciosa é uma tarefa que o PS, sozinho, não poderá cumprir”.
Percebe-se que a plataforma que conduziu ao documento assenta num denominador comum mínimo, que passa pela defesa do Serviço Nacional de Saúde público e universal, pela reversão das leis laborais da Troika, recusa da precariedade e dos baixos salários, apoio a uma política de habitação pública que não expulse os jovens dos centros das cidades e que anule a segregação social e racial, defesa da escola e da Universidade públicas (é estranho que coloquem escola com e pequeno e Universidade com U maiúsculo), a produção cultural e o respeito pelos seus profissionais e assume a preservação do planeta rejeitando a urgência climática como oportunidade de geração de negócios.
Independentemente de achar que alguns dos princípios enunciados são excessivamente vagos para fundamentar uma plataforma de intervenção em termos de governação e da referência à urgência climática com rejeição de que possa constituir uma oportunidade de negócios (que é talvez a manifestação mais expressiva de que este grupo tem dificuldade em conviver com a ideia de oportunidades de investimento empresarial, o que me faria, sem invocar a máxima de Grouxo Marx, não pertencer a tão ilustre plataforma), o testemunho desperta-me algumas considerações críticas, tendo sido, recordo e sem contradição, um apoiante convicto da convergência à esquerda que se formou a partir das eleições de 2015.
A minha primeira perplexidade é não perceber como é que uma plataforma de princípios como esta não seria compatível com a aprovação do Orçamento de Estado para 2022. É verdade que os signatários se apressam a afirmar que não será nenhum drama devolver o voto aos cidadãos e confessam fazer um balanço diferenciado das razões que levaram à interrupção da legislatura. Espero sinceramente que na noite de 30 de janeiro possam manter esta desdramatização da ida às urnas em plena pandemia, fase já não sei que número tantas elas foram.
Não me recordo que algum dos signatários tenha vindo a terreiro enunciar a sua posição sobre os riscos da não aprovação do Orçamento 2022 neste contexto que vivemos. Posso ter-me distraído ou então os signatários estão cientes de que não será de facto drama algum e estarão confiantes que o eleitorado nacional irá manter a maioria sociológica de esquerda. Claro que do ponto de vista político não é a mesma coisa promover o alargamento desta frente ou visar a sua recomposição interna em termos de poder eleitoral como a estratégia eleitoral do PS parece indiciar.
Mas onde me parece que os fundamentos da plataforma falham é na compreensão de que o contexto de 2015 mudou substancialmente. Quem é favorável a uma convergência das esquerdas não pode ignorar o meu tão reclamado tema das condições objetivas para uma plataforma de entendimento. Recorrendo, talvez imperfeitamente a linguagem de aconselhamento familiar, reatar uma relação depois de uma rotura relativamente traumática nunca será a mesma coisa. E, além disso, não me parece também, que os desafios estratégicos do país sejam os mesmos. Não nego que existem ainda resquícios da passagem da Troika, mas a tal agenda socioeconómica mais ambiciosa de que falam os autores do testemunho e que consideram que o PS não poderá, sozinho, concretizar, está já muito para além da ideia de reposição de direitos e rendimentos. E, não menos importante, tem implicações nos princípios do denominador mínimo comum que fundamentam a plataforma dos cem. Creio que a defesa intransigente do SNS já não pode mais ignorar a presença do setor privado, a política de habitação pública adquire uma importância mais elevada do que a que a assumida na presente tomada de posição, a defesa da Escola pública tem de ser reequacionada com novos desafios e, poupem-me, não retirem as oportunidades de investimento da urgência climática, porque sem elas não haverá transição energética e climática. E, sobrepondo-se a tudo o resto, eliminem o tabu da empresa na convergência à esquerda. Se insistirem nessa ideia, assumindo que ela é incompatível com uma esquerda renovada, então dediquem-se à pesca, à reflexão contemplativa, autodeclarem-se espécie em extinção ou enveredem por uma outra modalidade qualquer de honrosa retirada. Ainda não estou nessa.
Esperemos que esta discussão possa ser reatada com os resultados de 30 de janeiro. Será um bom sinal.
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