(Se dúvidas houvesse de que é a economia americana que comanda o debate em economia e a novidade dos seus temas, o comportamento do mercado de trabalho americano nos últimos meses está aí para o mostrar com clareza. O pretexto trouxe-nos um novo termo para o nosso léxico de debate. Chama-se “Great Resignation” e tem que ver com o atipicamente elevado número de abandonos voluntários do emprego em plena ressaca pandémica e com o Omicron a baralhar as contas dos americanos. E, como sempre, a primeira preocupação, que é também um alerta, não pode deixar de ser a de contextualizar o debate na economia americana e discutir com a maior das cautelas a sua extensão possível a outras economias.
O mercado de trabalho americano é generalizadamente conhecido como pleno de particularidades onde avulta sobretudo uma “cruel” e inequívoca flexibilidade. Para além disso, já aqui relembrei que, ao contrário da Europa e também de Portugal, em que a opção política foi a de apoiar empresas para preservar emprego, nos EUA a administração Biden apoiou essencialmente o rendimento das famílias e dos indivíduos. Com isso permitiu o encerramento de empresas e a destruição de empregos, confiando na já referida flexibilidade.
A recuperação da economia americana está em curso, a taxa de desemprego caminha a passos largos para o valor de antes da pandemia, estando segundo os dados de novembro de 2021 nos 4,2%, mas o número de novos empregos não agrícolas criados relativamente ao mês de outubro quedou-se pelos 210.000 postos de trabalho. Em contrapartida, estimativas credíveis e fiáveis (pelos investigadores associados, Jason Furman e Wilson Powell e pela instituição, Peterson Institute for International Economics, que acolhe a sua investigação) (link aqui) apontam para a existência de seis milhões de novos empregos potenciais se pensarmos no referencial do período antes da pandemia (ver gráfico que abre este post). Para além disso (ver o mesmo gráfico), a taxa de participação da força de trabalho apesar de se encontrar em fase de crescimento está longe de ainda compensar a sua queda brutal observada com a pandemia. Recordo que este foi dos indicadores que mais tempo demorou a recuperar na Grande Recessão de 2008, o que parece voltar a acontecer.
Paradoxalmente, a recuperação pós-pandémica (com todas as interrogações que o “pós” possa conter) é inequivocamente a mais rápida dos últimos tempos. Um outro economista credível, com direito a página de opinião no New York Times (link aqui), Justin Wolfers, aponta o número de 17 meses que a taxa de desemprego demorou a baixar dos 5%, quando nas três recuperações de recessões anteriores essas percentagens foram de 75, 26 e 59 meses. As diferenças são claras e ilustrativas da rapidez da recuperação.
O otimismo está plenamente instalado na economia americana e existem estimativas que apontam valores para a taxa de desemprego em 2023 de 3,5%. E a pergunta inevitável tem de ser colocada: mas se os 6 milhões de empregos potenciais de que fala a estimativa de Furman e de Powell se apresentarem no mercado de trabalho qual seria a taxa de desemprego observada?
Novos tempos, novas questões de investigação, assim a economia poderá evoluir se pretender seguir uma linha de contributo para a explicação do mundo que nos rodeia. E, por isso, a questão a colocar é a de saber o que é explica que um tão vasto número de pessoas esteja hoje fora do mercado de trabalho quando, pela rapidez da recuperação, tudo indica que encontrariam com relativa facilidade emprego?
Claro que os tontinhos liberais da rejeição de quaisquer tipos de subsídios imediatamente dirão que os apoios ao rendimento da administração Biden foram elevados e que essa almofada de rendimento está a dilatar o regresso ao mercado de trabalho. Em boa verdade, não podemos neste caso ignorar o argumento dos tontinhos liberais. Quem perdeu o emprego pela pandemia, e foram muitos, pode com essa almofada de rendimento dilatar a revelação da sua procura. Mas a dimensão do fenómeno é tal que a explicação tem de ser mais abrangente e multifacetada, não ignorando ainda que os apoios foram do tipo “one-off” e estão neste momento terminados. É neste contexto que surge a expressão, ou o conceito se o quisermos elaborar com mais profundidade, da “grande demissão”. Devo advertir que os economistas são melhores a encontrar expressões ilustrativas de um fenómeno do que a construir explicações robustas para a realidade que as designações criativas descrevem. Parece-me ser este o caso e estamos longe ainda de uma explicação robusta e abrangente que reúna o consenso de um conjunto alargado de pares. Mas há abordagens promissoras.
As evidências de que existe um número extremamente elevado de que aguarda melhor momento para ensaiar o seu regresso ao mercado de trabalho são robustas. Forçados a uma perda de emprego pela pandemia parece que estão a processar informação para uma decisão futura. O pico desse abandono do mercado de trabalho aconteceu em setembro de 2021 com cerca de 4,1 milhões de empregos. Sabemos ainda através de um estudo publicado pela Harvard Business Review por Ian Cook e uma equipa vasta de investigação (link aqui) concluiu a partir de uma amostra muito representativa de empresas, que as taxas de resignação (temporárias ou definitivas) são mais elevadas nos percursos profissionais de meio caminho (entre os 30 e os 45 anos) e incidem com maior relevo nas indústrias mais tecnológicas e de saúde.
Claro que existe uma pandemia de permeio, a segurança sanitária nos EUA não é a que vivenciamos na Europa, o teletrabalho foi mais fundo, a cultura de flexibilidade é generalizada, o valor do rendimento é superior ao da segurança de emprego, contrastando com os nossos valores mais enraizados e, por isso, é natural que os trabalhadores possam fazer o reset do seu posicionamento no mercado de trabalho, isso leva tempo e lá se vai à vida a peregrina ideia do ajustamento rápido e automático nesse mercado. Rashida Kamal no The Guardian (link aqui) chama subtilmente a atenção para que as saídas voluntárias de emprego significam otimismo (a rapidez da recuperação vai nesse sentido), mas o contexto sanitário ainda é de molde a arrefecer esse otimismo.
No que respeita aos trabalhadores de mais baixos salários que incorporam o contingente da resignação, a interpretação de Arindrajit Dube (link aqui), retomada por Krugman (link aqui) é a que me parece mais promissora. O argumento é sedutor. Os trabalhadores de baixos salários tendem pela importância que um emprego para eles representa a subestimar durante longo tempo a péssima qualidade dos seus postos de trabalho e da vida a que os mesmos obrigam para serem mantidos. Ora se a pandemia é um tempo de reset profundo e definitivo, então por questões de contágio podemos estar perante o que Dube chama “a social multiplier to quits”.
E uma recuperação rápida como está a acontecer sugere que a procura de melhores empregos pode ser retribuída.
Percebo bem a frustração de alguns investigadores sobre o mercado de trabalho em Portugal (como o meu filho Hugo) quando se deparam com a impossível transposição dos mundos e das hipóteses de trabalho suscitadas por uma vibrante e muitas vezes cruel flexibilidade americana para a economia portuguesa. O que também poderá ser estendido à economia espanhola. Uma das gordas do El País de ontem avançava que: “A Espanha supera o nível de emprego de antes da pandemia com a criação de 776.000 postos de postos de trabalho em 2021, constituindo o maior aumento desde 2005, com 574.000 novos inscritos na Segurança Social e menos 140.000 desempregados do que antes do impacto do COVID-19” (link aqui). E, não o esqueçamos, com o mais problemático governo da democracia espanhola, Frankenstein ou como lhe queiram chamar, e com a Omicron a bombar e combativas autonomias regionais à perna.
Moral da história:
Recuperação rápida não significa que aquilo de que estamos a recuperar não seja profundo nas suas consequências. Na minha interpretação, a “Great Resignation” não é mais do que a expressão dessa evidência. A pandemia impulsionou o “reset” de muita coisa. E, ao contrário do informático informal que temos em nós, esse reset não é a simples tentativa desesperada de resolver magicamente um problema. Por isso, as organizações mais ágeis (e por isso criativas e flexíveis) vão ser as que melhor vão tirar partido desta mudança.
Nota final
Saúdo o facto, até porque acontece em condições muito difíceis para o jornal, que de uma vez por todas há um órgão de informação em Portugal a acusar o toque de um debate fresco nas suas evidências. O Expresso online, com site provisório, refere-se na sua newsletter que recebi como assinante ao fenómeno dos 4,5 milhões de americanos que se despediram do emprego.
Sem comentários:
Enviar um comentário