sábado, 8 de janeiro de 2022

IMPOSTOS

 


                                                                    (Diário de Notícias)

(Pelo que se conhece dos programas eleitorais e de possível governo do PS e do PSD, a matéria dos impostos emerge como a principal fonte de marcação de diferenças entre as duas forças políticas, até porque em relação à questão da justiça ainda não compreendi bem se as propostas do PSD relevam mais das ideias pessoais de Rio se de uma reflexão ampla e abrangente dentro do PSD. Mas não me parece mal que os confrontos eleitorais se façam em matérias circunscritas e não na amálgama do costume de listagens de propostas que se perdem rapidamente na confusão dos eleitores. E até se trata de matéria suscetível de gerar um bom debate político, claro que se as partes estiverem nisso interessadas.)

Pelo que foi possível apanhar na comunicação social sobre o pensamento do PSD nesta matéria percebe-se que não terá sido fácil estabilizar a posição final. Algumas declarações da muleta económica de Rio, o economista Joaquim Sarmento, sugeriram a ideia de que a descida de impostos seria condicional em função do desempenho do ritmo de crescimento económico. Mas a apresentação do programa eleitoral na passada sexta feira dissipou as dúvidas. Está clara a proposta de descida de impostos a curto prazo, com relevo para a descida da taxa de IRC, a atenuação de taxas de imposto sobre o rendimento dos estratos de menor rendimento que pagam impostos, uma descida temporária do IVA da restauração, abaixo dos 13% que o PS ultimamente fixara.

É assim visível que o PSD opta por uma proposta mais disruptiva, enquanto que o PS envereda por fiscalidade de pormenor, realinhamento de escalões e créditos fiscais às empresas na medida em que elas cumpram determinados objetivos de política macroeconómica e de rendimentos, como por exemplo o aumento de salários, não apenas do salário mínimo.

Antes de comentar esta efetiva diferença de perspetivas entre os dois partidos em matéria chave para o rendimento das famílias e lucratividade das empresas, importa relembrar algumas questões de base e de princípio que são frequentemente ignoradas.

A primeira diz respeito à exígua base fiscal da economia portuguesa. Não tenho os números rigorosos de última extração, mas podemos partir do princípio de que mais de metade da população ativa portuguesa não paga impostos e não estamos a falar dos que não têm existência para a base oficial de registos fiscais. Estou a referir-me aos que, pelo baixo nível de rendimento auferido no mercado de trabalho, não atingem os limiares mínimos a partir do qual o seu rendimento é efetivamente tributável. Claro que sempre existiu um fenómeno de economia informal ou subterrânea que deturpa a base fiscal das famílias. Não conheço nenhuma análise sistemática sobre a incidência desse fenómeno nos diferentes estratos de rendimento para efeito de fiscalidade, pressupondo que na base (por exemplo o efeito da “biscatização” na economia) e no topo (o efeito da evasão fiscal para offshores) existirão manifestações desse fenómeno, embora compreensivelmente com uma grande desigualdade de massa de recursos envolvidos. Mais difícil é antecipar a incidência em escalões intermédios de rendimento. Obviamente que o aumento da base fiscal de tributação da economia portuguesa é um tema de grande impopularidade eleitoral, qualquer assessor de comunicação correria a pontapé algum iluminado que propusesse essa dimensão programática. Compreende-se e mais do que isso é um problema que só um melhor desempenho económico em termos de geração de rendimento poderia proporcionar atacar com minimização de dor e impopularidade. Por conseguinte, retirando posições de PCP e Bloco em relação a uma maior tributação de “ricos”, antecipo que o alargamento da base tributária não será discutido na campanha.

A segunda questão é mais substancial e prende-se com os termos em que uma eventual descida de impostos pode ser decidida.

Nesta matéria, há duas abordagens possíveis, pelo menos em termos de posições mais extremas.

Uma posição analisa a questão em função apenas do nível em que se encontra a carga fiscal, alta ou baixa, e nessa base decide politicamente descer ou aumentar impostos. Diria que se trata de uma abordagem “quase ideológica”, pois ela é assumida sobretudo em linha com a posição de considerar desejável uma intervenção mais ou menos saliente do Estado. Para uma dada base fiscal, define-se a capacidade de arrecadação de impostos, a chamada punção fiscal, e a dimensão do Estado e da despesa é definida em consonância com tal posição. Ou seja, a receita fiscal determina os limites em que a despesa pública poderá evoluir, considerando como é óbvio também a capacidade de endividamento para eventual financiamento de défices programados e o estado desejável para a redução da dívida pública.

Uma outra posição parte pelo contrário da dimensão e papel do Estado e da intervenção pública que se pretende alcançar, com os respetivos objetivos estratégicos e resultados em linha e, tendo em conta as mesmas preocupações com o endividamento e redução da dívida pública, avalia-se que capacidade de punção fiscal é necessário assegurar.

Como é óbvio nenhuma destas posições é em termos puristas aplicada. Na primeira, é impossível ignorar por completo a despesa pública que é necessário reduzir e na segunda algumas opções de despesa são descartadas à partida por se duvidar de uma infinita capacidade de punção fiscal, atendendo sobretudo ao nível de “fadiga fiscal” existente.

Paralelamente, há questões que são chamadas inevitavelmente à colação, como por exemplo a chamada perceção da punção fiscal. Por exemplo, uma carga fiscal muito desigualmente distribuída tende a exacerbar a perceção dessa punção fiscal entre os mais tributados e pode obviamente conduzir a uma maior evasão fiscal ou desincentivo ao rendimento.

No plano de uma comparação pelas grandes linhas, diria que o PSD está mais próximo da primeira abordagem e que o PS estará mais próximo da segunda.

Mas devo reconhecer que, pelo menos nas entrelinhas do programa eleitoral, o PSD aparentemente não enveredou pela explicação que a direita economicamente mais liberal em regra apresenta para justificar as descidas de impostos, sobretudo aos mais ricos e com maior capacidade de investimento. A descida de impostos libertaria recursos que magicamente se deslocariam para o investimento e com isso dinamizaria o crescimento económico e o rendimento, potenciando uma maior arrecadação de receitas fiscais. Esta foi a treta que os trumpistas apresentaram à economia americana, que na prática foi apenas uma transferência de rendimento para os mais ricos e poderosos, acentuando a já grave desigualdade de distribuição do rendimento que atinge a economia americana. Do discurso de Rio parece mais resultar que a despesa pública será controlada e reduzida, designadamente a mais ineficiente e geradora de resultados mais duvidosa, para poder acomodar o aliviamento fiscal. A ideia de que a descida de impostos liberta automaticamente recursos para o investimento exige escrutínio e evidência e não raras vezes o que determina é agravamento dos défices públicos (e como a direita desculpa este tipo de défices e berra com os défices determinados pelo aumento da despesa pública).

Veremos se no debate Costa versus Rio esta matéria virá à tona na discussão. Embora como eleitor e como economista esteja claramente mais próximo da abordagem PS a esta questão, sobretudo se acompanhada por algum esforço de aumento da base fiscal, de eficiência tributária e de maior rigor de aplicação de despesa pública em função de resultados, devo reconhecer que a perceção que o cidadão eleitor tem destas opções não é sempre clara e que pode haver surpresas de reações interpretativas. A abordagem PS pressupõe que o cidadão eleito seja sensível à intensidade e qualidade dos serviços públicos que a despesa pública possibilita. Pelo contrário, a abordagem PSD-Rio pressupõe que o cidadão-eleitor é mais sensível à descida do imposto que paga. Mas convém não esquecer que os impostos estão sujeitos a um lag de perceção. Para muita gente, uma descida de impostos decretada em 2022 só na declaração de 2023 se fará sentir. Pelo contrário, qualquer alteração de despesa pública (para mais ou para menos) faz-se sentir quase imediatamente.

Mas para políticos experimentados, isto é “ensinar o padre-nosso ao vigário”.

Para bom entendedor …

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