quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

MACRON A CANTAR DE GALO OU DE GARNIZÉ?

 

(O discurso de Emmanuel Macron no Parlamento Europeu para assinalar o início da Presidência francesa e anunciar alguns textos fundamentais que serão discutidos pelos Parlamentares nos próximos meses é uma boa oportunidade para revisitar ambição e limitações do Presidente francês, não do ponto de vista da sua frágil posição interna, mesmo assim beneficiada pela dispersão de candidatos à direita e à esquerda, mas antes na perspetiva europeia. E embora o pensamento de Macron não possa ser ignorado ficamos por vezes com a sensação de que o projeto de reconstituição da unidade europeia é areai demasiada para a capacidade de armazenamento de Macron. E, sem os desvalorizar, temos de convir que discursos leva-os o vento. Daí o título talvez, e por isso me penitencio, demasiado ofensivo para alguém com quem temos de contar para aguentar o barco …)

E até começo este post com a recordação e o reconhecimento de um momento ímpar de política na televisão protagonizado por Macron, aqui reconhecido neste blogue e que definiu para mim um posicionamento de que nunca me esquecerei. Quem teve a coragem e a audácia de fazer aquilo merece-me sempre o benefício da dúvida. Estou a falar do célebre debate de Macron com Marine Le Pen, no qual ao contrário de alguns cobardolas que se refugiam no nacionalismo para discutirem ao mesmo nível dos populistas Macron desmontou o primarismo político de Marine Le Pen com um discurso totalmente europeísta e defensor dos valores e realidades europeus. Na altura, “Chapeau”. Algo de bem diferente do que se passou recentemente quando “uma bandeira da União Europeia, colocada no Arco do Triunfo, em Paris, para assinalar o início dos seis meses da presidência francesa do Conselho da União Europeia, foi retirada, (…), após pressões de Marine Le Pen e de outras figuras da extrema-direita francesa.”

Nos últimos tempos e obviamente após a saída de cena de Angela Merkel, Macron tem ensaiado a sua projeção como o líder europeu capaz de projetar de novo a unidade europeia e, de uma vez por todas, romper com o estatuto de menoridade quando se discute geopolítica no mundo, fazendo-se ouvir no concerto das grandes potências com influência na geopolítica internacional. Por isso, Macron trepou pelas paredes, como De Gaulle se esgotaria em impropérios pouco simpáticos para os Americanos, quando se percebeu que a besta negra do AUKUS (acordo para o Pacífico entre os EUA, Reino Unido e Austrália) tinha deixado a França e a União Europeia na mais completa obscuridade e que anunciava o já conhecido reposicionamento estratégico dos EUA, agora pela mão de Biden e não do tresloucado Trump.

Analistas americanos com um artigo que considero muito revelador na Foreign Affairs de 19 de janeiro de 2022 (Francis J. Gavin e Alina Polyakova, “Macron’s Flawed Vision for Europe - Persistent Divisions Will Preclude His Dreams of Global Power”, não são meigos quando escrevem (link aqui):

“(…) Esta visão (a de Macron) pressupõe que um continente com uma longa história de divisões está agora unido em torno da sua política de defesa e da sua política externa. Mas um olhar breve sobre os recentes debates sobre a Rússia, a China e mesmo os Estados Unidos mostram uma falta de coerência estratégica entre os estados Europeus. A visão de Macron, em resumo, pode fissurar e diluir as suas capacidades e o seu foco, enquanto joga com os piores instintos dos Estados Unidos para não se comprometer com a aliança transatlântica focada na China.

(…) A ascensão da China, a agressão Russa, o enfraquecimento da democracia, o aquecimento climático, a regulação tecnológica e a saúde pública todos exigem ação coletiva e isso é o oposto do que o presidente Francês parece querer propor”.

Alertado por este artigo de uma revista prestigiada, a Foreign Affairs, mas que navega em torno dos desafios da política externa americana, foi com mais atenção que li o discurso de Macron no Parlamento Europeu (link aqui). E apesar de nele se intuir que não será apenas uma Presidência europeia que responderá por si só às diferentes encruzilhadas da União, é mesmo assim um bom discurso. No quadro de uma triangulação de objetivos, democracia, progresso partilhado e paz, foi importante que Macron começasse pela questão dos valores e da afirmação da inalienabilidade da democracia, do Estado de direito e dos direitos humanos, coisas aparentemente tão simples e banais que pelo facto de o serem temos tido a tendência para o desvalorizar e não construir linhas vermelhas para os defender: “O fim do Estado de direito, é o reinado do arbitrário”, “não podemos deixar que se instale a ideia de que o Estado de direito seria no fundo uma invenção de Bruxelase “o Estado de direito é o nosso tesourosão afirmações que é bom ouvir nas mais altas instâncias da União. Macron propõe assim um regresso aos valores comuns, que é também uma defesa do Estado Providência que uniu os Europeus do pós-2ª guerra, por mais heterogéneo que ele se apresente nos 27, mas que deve ser combinado com as exigências da competitividade e não um edifício inorgânico subjugado a essa mesma competitividade. Macron retira daqui um dos motes da Presidência francesa: “fazer da Europa uma potência democrata, cultural e educativa e orgulhosa dela própria para superar esse desafio”.

Na dimensão do progresso partilhado, há menos fervor porque as agendas já são conhecidas e estão já em progressão. Um novo modelo de crescimento económico para integrar a transição energética e climática e a transformação digital são os pilares, já os conhecemos, avançando um pouco na questão do digital com referência ao mercado único europeu do digital, com referência à discussão no Parlamento Europeu dos diplomas sobre os serviços digitais e da discussão sobre o que poderá ser o modelo digital europeu.

E percebe-se que o terceiro vértice do triângulo do discurso, a defesa e a paz, é aquele que traz mais dificuldades às aspirações de Macron, com os olhos em África, nos balcãs ocidentais com a ideia de criar expectativas sólidas de uma trajetória de longo prazo para uma adesão e na necessidade de reconstruir a confiança com o Reino Unido, esta última na minha perspetiva em fase de espera até que os britânicos consigam arrumar a casa, ou seja, apear Boris das suas excentricidades. E é na parte final que surge talvez o principal escolho no caminho de Macron: “O que temos de construir é uma ordem europeia baseada em princípios e regras em torno das quais nos possamos alinhar e que tenhamos atuado não contra e sem, mas com a Rússia”.

A questão da Rússia, colocada no discurso no sentido de recuperar acordos assinados há trinta anos, parece constituir uma das principais fontes de divisão no espectro europeu, já que está mergulhada num círculo vicioso que se pode transformar em infernal: para conduzir a Rússia de Putin a esse posicionamento seria necessário que a União estivesse sólida para o fazer, mas essa procura de coerência encontra no posicionamento face à Rússia a sua principal dificuldade”.

Fica bem a Macron recordar no fim do discurso os “esforços criadores” de Robert Schumann. Mas imagino que nem com a ajuda de todos os Santos Fundadores isso será obra de um homem só e esse é em meu entender o grande problema do Presidente francês, isto pressupondo que consegue resolver a frente interna, reelegendo-se. O galo terá de cantar de outra maneira. A reinvenção dos eixos será necessária e a coesão europeia pode ser uma dessas vias.

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