segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

FEMINISMO EM 1776

 

(Uma das obras mais aguardadas no domínio da economia em 2022 é a história económica do século XX que Bradford DeLong preparou em “Slouching Towards Utopia: an Economic History of the 20th Century”. Pelo que o economista americano de Berkeley foi publicando na sua newsletter Grasping Reality—The SubStack, agora infelizmente com conteúdos parcelares sob assinatura, estamos perante uma profunda e inovadora visão económica do século XX, mostrando bem o alcance de uma sólida análise económica se aventurar pelo mundo da história económica. Entre os materiais dispersos que foram sendo conhecidos do Slouching Utopia, houve especialmente um que me despertou a atenção e o interesse e que se prende com a explicação económica do advento do feminismo e que nos leva curiosamente a uma data, poucos meses antes da Declaração da Independência dos EUA, 04-07-1776, mais propriamente ao dia de 31 de março de 1776…)

Podemos imaginar, e alguns filmes de culto ajudam-nos a precisar essa imaginação, os tempos conturbados que a ainda colónia britânica viveu no processo que conduziu à Declaração de Independência. É nesse contexto de guerra e perturbação que deve ser compreendida a carta que Abigal Smith Adams, então com 32 anos, escreveu ao seu marido John Adams que haveria de ser Presidente dos EUA. Estadista, diplomata e advogado, Adams foi o segundo presidente dos Estados Unidos (1797–1801) e, anteriormente, primeiro vice-presidente.

A carta é um relato das perturbações desse tempo, das mais pessoais como a preocupação com o estado da habitação dos Adams até a outras considerações que revelam estarmos perante uma personalidade notável. Embora não seja o tema deste post, há uma passagem inicial da carta reveladora de que estamos perante alguém que deixa marcas na história: “Tenho várias vezes pensado que a paixão pela Liberdade não pode ser Igualmente Forte no peito daqueles que sempre se acostumaram a tratar mal o seu semelhante. Tenho a certeza de que tal comportamento não se baseia naquele generoso princípio cristão de que devemos fazer aos outros o que desejaríamos que eles nos fizessem”. Esclarecedor. As alianças com os possuidores de escravos preocupavam Abigail.

Mas a passagem que motiva o presente post é a expressão de um pedido realizado por Abigail a John Adams:

“(…) Anseio por ouvir que declaraste uma independência, e por falar nisso no novo Código de Leis que creio que será necessário elaborar quero que te lembres das Mulheres (Ladies) e que sejas mais generoso e a seu favor do que os teus antepassados. Não deposites um poder tão ilimitado nas mãos dos Maridos. Lembra-te que todos os Homens serão tiranos se puderem. Se não prestarmos cuidado e atenção particulares às Mulheres, teremos de fomentar uma Rebelião sem que quaisquer Leis em que não temos voz ou Representação nos possam segurar.

Que o teu Género é Naturalmente Tirânico é uma verdade tão plenamente estabelecida que não tem discussão, mas alguns de vós desejarão ser felizes cedendo o severo título de Master a um outro mais terno e cativante de Amigo. Porquê então não retirar o poder dos viciosos e dos Sem lei para nos tratar com crueldade e indignidade, com impunidade. Homens de Bom Senso em todas as Épocas abominam esses costumes que nos tratam apenas como vassalos do vosso Sexo. Olhem-nos como Seres colocados pela Providência sob a vossa proteção e que uma imitação do Ser Supremo possa fazer uso desse poder apenas pela nossa felicidade.”

(Disponível nos arquivos: https://founders.archives.gov/documents/Adams/04-01-02-0241)

A minha tradução não é seguramente irrepreensível mas a carta é comovente, sobretudo se pensarmos que embora, como Bradford DeLong o refere, os Adams fossem relativamente abastados e Abigail tivesse seguramente empregadas, ela passou na prática cinco anos grávida para assegurar a vida de uma nova geração de Adams.

É com este contexto que Bradford DeLong analisará depois as condições socioeconómicas que a partir de 1870 irão emergir para precipitar a erosão da supremacia masculina e que estarão também na base da diminuição acentuada da taxa de fertilidade.

O que DeLong assinala é a importância da coevolução da prosperidade económica do século XX, apesar dos dois conflitos avassaladores que o caracterizaram, e de outras ramificações culturais e sociais em que o feminismo se insere, liderado por personalidades marcantes da emancipação da mulher. Uma batalha intensa, do tempo longo, que entra pelo século XXI adentro.

Mas quase um século antes do abrir portas que 1870 representou, o testemunho de Abigail Smith Adams nos seus esclarecidos 32 anos, aguentando a família Adams e os seus interesses enquanto o marido preparava a Independência, representava um refrescante prenúncio que outros tempos iriam precipitar-se.

Venha daí a Slouching Utopia …

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