(Sabemos como os nossos amigos e vizinhos espanhóis valoram diferentemente de nós a festa dos Reis, alongando o período do Natal e do Novo Ano com a noite e dia de Reis Magos. É ludicamente uma forma inteligente de prolongar aquilo que desejamos aos Amigos de Festas Felizes e acho que me daria bem nessa cultura de festividade mais prolongada no tempo. Aliás, em memórias de infância, recordo que se dava mais atenção à consoada dos Reis que se perdeu entretanto. Por isso, como manifestamente não tenho nem formação nem inclinação religiosa para tal, dou comigo frequentemente a procurar em quem sabe interpretações para esse fenómeno. Assim, na linha de abertura e tolerância de pensamento que caracteriza este espaço, trago hoje o que me pareceu ser uma das mais convincentes interpretações do simbolismo dos Reis Magos.
O convidado já é conhecido, o cronista e professor de ciência política Xosé Luís Barreiro Rivas, que escreve na Voz de Galicia, que costumo invocar pelos seus escritos viperinos e pelo seu particular estilo pícaro de comentário. Mas neste caso, o motivo é outro. Trata-se de alguém com sólida formação religiosa, obtida antes de zarpar para a ciência política e também para a vida política comprometida e vale a pena por isso trazer para este espaço a sua crónica sobre os Reis Magos.
O excerto que aqui reproduzo são os dois últimos longos parágrafos da sua crónica, mas bem melhor do que esta tradução adaptada é ler toda a crónica, até porque a originalidade do estilo tem em castelhano outro alcance (link aqui):
“O cristianismo nasceu assim, humanizando Cristo com o relato de Belém e construindo uma síntese muito funcional entre o determinismo bíblico e a crescente e objetiva racionalidade da cosmologia atual. Por isso ocorre-me dizer que o excesso de humanização que a encarnação de Deus todo poderoso e eterno num bebé pobre e chorão, que só os pastores de Belém reconheceram como Deus, teve que ser equilibrada pela Epifania – a festa que hoje celebramos – para demonstrar a implicação plena de Deus na história do mundo. A ideia, herdeira em parte da cultura clássica, surgiu ao apóstolo Mateus muitos séculos antes que Jaeger a descobrisse na teodiceia grega. E por isso a Igreja aproveitou as duas linhas que Mateus escreveu sobre o assunto para configurar um relato dos Reis Magos humano, amável, positivo e de simplicidade credível, que não necessita de qualquer ajuda para ser assumida e aproveitada – como relato ou como história – por todas as pessoas de boa vontade.
Por isso a história dos Reis Magos perdura, representa-se, é enriquecida e nela podem participar todos os que buscam a síntese explicativa, que se atinge por duas vias: fazendo que Deus desça à terra para trabalhar no sentido da transcendência com o que todos alguma vez nos encontramos, ou elevando o homem acima da sua definição aristotélica de animal inteligente e socializado. Por isso os Reis Magos vêm todos os anos. Porque, ainda que as crianças duvidem da sua existência desde muito cedo, somos nós os que contam décadas e não anos – isto é, os pais e os avós – os que não podemos prescindir desta visita anual que as sociedades laicas estão a elevar, sem saber porquê, à sua máxima expressão”.
Para o ano há mais.
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