quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

DOURO: PROBLEMAS RECORRENTES

 

                          (Uma bela fotografia de Rui Duarte Silva para o Expresso)

(A eleição de uma nova Direção para a Associação das Empresas de Vinho do Porto (AEVP), agora presidida pelo excelente António Filipe em representação da casa Symington, voltou a colocar o Douro e os seus problemas recorrentes na agenda mediática (ver, por exemplo, artigo no Expresso de Margarida Cardoso, link aqui), sem esquecer os aniversários da classificação como Património Mundial UNESCO que suscitam regra geral reanimação similar. Curiosamente, nas últimas semanas, uma outra notícia cruzou os ares, essa mais ameaçadora, e que consistiu em dúvidas colocadas por algumas equipas científicas sobre a real idade de alguns vinhos do Porto analisados. Por estas razões regresso a este tema, subordinando a minha reflexão a esta ideia central que me é cara: o Douro enfrenta um complexo sistema de regulação, sobretudo do vinho do Porto, mas interrogo-me se apesar dos constrangimentos que determina se não é esse constrangimento regulatório que tem evitado coisas piores.)

Começo pela explicitação de algum conflito de interesses. Em 2007-2008, coordenei em colaboração com o Centro de Estudos de Gestão e Economia Aplicada do Centro Regional do Porto da Universidade Católica (e com participação de uma equipa da UTAD, dirigida pelo Professor João Rebelo para análise do setor cooperativo) os estudos do PLANO ESTRATÉGICO PARA OS VINHOS COM DENOMINAÇÃO DE ORIGEM DOURO, DENOMINAÇÃO DE ORIGEM PORTO E INDICAÇÃO GEOGRÁFICA DURIENSE DA REGIÃO DEMARCADA DO DOURO, para o Instituto do Vinho do Porto (IVDP) então dirigido pelo Engº Jorge Monteiro. Em 2015-2016, coordenei para a AEVP um trabalho designado de ATUALIZAÇÃO DO DIAGNÓSTICO ESTRATÉGICO DOS VINHOS DO DOURO E PORTO E IG DURIENSE DA REGIÃO DEMARCADA DO DOURO, que terei de o dizer nunca foi bem compreendido pelo então Presidente do IVDP Manuel de Novaes Cabral. Devo ainda dizer que integrei uma equipa multidisciplinar (luso-galaica) que iniciou para a Fundação Rei Afonso Henriques (Bragança-Zamora) os estudos preliminares que haveriam de dar origem à Candidatura a Património Mundial Unesco ao abrigo do conceito de paisagem cultural. Curiosamente, mas já estamos habituados a isso, quando se fala de candidatura a património mundial só se fala do estudo coordenado por Bianchi de Aguiar e participação importante da Arquiteta Teresa Andresen (que também estivera no estudo inicial), mas isso deve-se às especificidades de que a Região Norte é muito prolixa e que já me habituei a desvalorizar e atirar para canto.

Sei que, entretanto, entre 2016 e a atualidade, houve outro estudo essencialmente realizado pela UTAD, em que não participei, mas que sem falsa modéstia, não acrescenta praticamente nada aos problemas estratégicos e recorrentes que o Douro apresenta desde há muito.

A nova Direção da AEVP vem trazer a alguns dos problemas estruturais novas ideias e propostas (link aqui) e, embora a Associação não represente obviamente a totalidade dos interesses que se confrontam no Conselho Interprofissional, mas apenas a dos exportadores, a verdade é que dela têm brotado as ideias mais avançadas e promissoras, não esquecendo que tais empresas são hoje já responsáveis por uma elevada percentagem de vinha no Douro.

Trata-se como já anteriormente o referi de um sistema fortemente regulado, historicamente determinado pelo Vinho do Porto. Esta regulação, sobretudo determinada pela preservação da qualidade considerada em última instância a defesa maior do terroir Douro e da sua diferenciação única associada à sua singularidade, é vasta, envolvendo praticamente toda a cadeia de valor, desde a vinha e uvas até à regulação dos stocks e uma complexa variedade de produtos (Tawnys, Rubis, Vintages, Late Bottled Vintages, Colheitas, etc, etc) que me deu cabo da cabeça nos estudos atrás referidos. Em cima de tudo isto, existe o corpo regulatório da Região Demarcada, da qual o IVDP também se ocupa. Refira-se que na questão da vinha e das uvas, existe uma também complexa classificação das parcelas de vinha, iniciada com o chamado método Moreira da Fonseca, uma classificação devida ao Engenheiro Agrónomo Álvaro Moreira Fonseca que a aplicou inicialmente em 1947 e que ainda é a base da classificação regulada pelo IVDP. A produção de vinho do Porto é regulada em cada ano pelo Conselho Interprofissional que estabelece produção máxima de uvas em função da referida classificação e que atribui aos proprietários um benefício que decresce das classes de maior qualidade para as de pior qualidade.

Este sistema fortemente regulado tem evidenciado dificuldades óbvias em lidar com dinâmicas entretanto observadas das quais importa destacar as seguintes:

  • As uvas são as mesmas mas a produção de vinho do Douro, algum do qual de extrema qualidade e de elevada reputação mundial na sequência da notável progressão da enologia e da investigação sobre a vinha, começou a coexistir irreversivelmente com a do vinho do Porto;
  • A concentração do setor tem vindo a acentuar-se, com os principais exportadores (Sogrape, Taylors, Symington e outros) a assumir uma percentagem crescente de vinha na região;
  • A situação dos pequenos produtores começou a complicar-se sobretudo pela evolução do preço da uva pago ao produtor para valores incompatíveis com a sustentabilidade da sua presença, criando uma bomba social ao retardador;
  • As principais cooperativas de produtores começaram a apresentar, salvo raríssimas exceções, uma situação financeira desesperada;
  • A Casa do Douro desmoronou-se e não está ainda totalmente resolvido o imbróglio jurídico-administrativo associado à sua extinção, julgo saber que o seu valioso (ou não?) stock de vinhos não estará ainda alocado;
  • Crescem por parte sobretudo das empresas exportadoras as reservas quanto ao modelo institucional protagonizado pelo IVDP para responder às exigências de flexibilidade, capacidade de resposta e defesa das denominações de origem, determinadas sobretudo pela sua dependência face ao Estado e falta de autonomia financeira;
  • A emergência climática entra no problema e os principais grupos no setor têm sido pioneiros no desenvolvimento de soluções nesta matéria;
  • O vinho do Porto continua a enfrentar alterações de modelos de consumo que apontam cada vez mais para a diminuição do seu mercado em termos quantitativos e aumento de valor médio das garrafas vendidas;
  • Como vinho fortificado que é, não está também totalmente resolvido o problema da aguardente que se acrescenta (importada ou de produção regional?);
  • A região está, entretanto, cada vez mais apetrechada em termos de investigação e produção de conhecimento e têm sido dados os primeiros passos no fortalecimento do sistema de inovação (transferência de conhecimento);
  • A região e os  grandes grupos descobriram o eno-turismo.

Destas questões imagino que a nova Direção da AEVP vá focar-se na questão do modelo institucional e de reconsideração do papel do IVDP. Mas a bomba-relógio que a região enfrenta está no problema social que o baixo preço da uva no produtor representa. Por isso, o complexo e tão criticado regime de benefício persiste, com aquela velha questão do preço mais elevado da uva beneficiada a ser uma espécie de balão de oxigénio para os produtores com esse benefício. Claro que o imbróglio de distinguir uvas para Douro.Doc e uvas para Vinho do Porto fica para os eleitos e para os “connaisseurs”.

Desde os trabalhos a que anteriormente me referi, tenho-me interrogado sobre que modelo de intervenção pode ser antecipado para uma situação regulatória tão complexa como esta. Tanto poderíamos antecipar uma intervenção disruptiva, como uma intervenção com pinças, de pendor incremental, inclinando-me mais para este último modelo, com o pressuposto de que a questão social do Douro exige uma dimensão de intervenção de política social que não pode ser misturada e confundida com a da modernização do setor e do seu sistema regulatório. E a minha principal interrogação resulta desta minha dúvida: será que aliviar o sistema regulatório permitirá manter o foco na qualidade que parece ser a única fonte de preservação de competitividade que o terroir apresenta?

Claro que, por exemplo, existe na Região conhecimento suficiente para uma revisão do método de classificação Moreira da Fonseca que atenda à emergência climática e à relevância crescente do Douro DOC face ao Vinho do Porto. Considero essa dimensão uma inovação incremental e a Região estará madura para o fazer. Mas mexer no regime de benefício equivalerá a mexer num balão de oxigénio que é também uma bomba relógio e se isso acontecer sem uma identificação e delimitação rigorosas do problema social potencial pode ser devastador. Mesmo que os grandes grupos tenham vindo a aumentar a sua quota na vinha e na produção de uvas, uma debandada em massa de pequenos produtores teria efeitos óbvios no terroir pelos efeitos sobre a paisagem.

São esses riscos que explicam o vasto conjunto de cumplicidades, fechar de olhos, hipocrisias, banalização de pequenas ilegalidades, acrimónias reiteradas que o Douro e a matéria dos vinhos do Douro e do Porto hoje acolhem, num mercado mundial cada vez mais exigente, rudemente competitivo e feroz. Qualquer precipitação que reforce quantidade em vez de qualidade equivalerá ao fim do terroir e da sua singularidade. Pelas suas características físicas, e basta comparar as produtividades /hectare do Douro com as produtividades de outras regiões, no velho mundo e no novo mundo, o futuro da singularidade sustentável do Douro (Douro Doc e Vinho do Porto) estará obviamente na qualidade, desejavelmente refletida no preço, e não na quantidade. Esta é a grande contradição entre os que já inscreveram a questão da qualidade no seu modelo de negócio e os que ainda associam sobrevivência a quantidade e daí defender que a questão social do Douro exige uma abordagem autónoma.

A recente notícia de que alegadamente a pressuposta idade de alguns vinhos do Porto não estaria a ser comprometida exige confirmação. Uma investigação holandesa terá determinado que garrafas de Tawny de 10 anos e 20 anos não estariam a justificar essas atribuições de idade. A confirmar-se essa possibilidade, teríamos aqui uma via falsa de promoção da qualidade, colocando em evidência que qualquer alteração do sistema regulatório tem de ser tratada de facto com pinças.

Vou seguir com curiosidade o que a AEVP terá a dizer sobre a alteração do modelo institucional do IVDP, sobretudo do ponto de vista da sua agilização para um modelo mais descentralizado e autónomo e valorizando de uma vez por todos a institucionalização da colaboração interprofissional.

Curiosidade ou não, não vi nada disto discutido no debate eleitoral.

Sem comentários:

Enviar um comentário