terça-feira, 4 de janeiro de 2022

MIGRAÇÕES E CON(DI)VERGÊNCIA

 


(Uma excelente e estimulante reflexão de Branko Milanovic, designada de “Should some countries cease to exist? Globalisation, Migration and the fate of nations”, link aqui, desperta-me um conjunto de outras reflexões sobre um tema que continuará em 2022 na ordem do dia. Os temas da convergência e das migrações continuarão a ser discutidos e a pressionar a decisão política, mas a importância de cada um é tal que tendemos a perder de vista que podem também ser globalmente discutidos e combinadas as suas implicações. E Milanovic tem razão. Nessa perspetiva de leitura combinada novos ângulos de discussão emergem …)

Convergência e migrações são temas que à sua maneira pressionam a decisão política.

A ideia de convergir, crescer a ritmos que compensem progressivamente o desvio entre os menos e os mais desenvolvidos, anima os políticos e, quando a divergência se instala, uma espécie de anátema desce sobre os resultados da ação política, significando desaprovação ou então clamando pela persistência de fatores de exploração e de desenvolvimento desigual entre as nações. Ainda ontem, António Costa ao apresentar o programa de governo do PS (que fica para análise num post posterior) insistia na promessa de crescer a ritmos superiores aos da União Europeia, reafirmando assim o valor da chamada convergência real.

A pressão política das migrações é de natureza diversa, passando por ser claramente a dimensão menos conseguida da globalização, contrariando fortemente a fábula de que “o mundo é plano”, seja para justificar por via da tecnologia a não necessidade de deslocalização das pessoas, seja para abrir o caminho às migrações. É, assim, fonte de pressão política no destino das migrações, já que o populismo xenófobo já mostrou sem hesitações que ficciona se necessário a realidade para justificar a aversão ao outro, como a caminhada para o Brexit nos mostrou com clareza, o que os britânicos começam hoje a perceber. É ainda fonte de pressão política, e de chantagem diria eu também, nos países de passagem que descobriram que as migrações podem ser uma arma de arremesso e a que tristes atropelos humanitários temos chegado. Mas é também fonte de pressão política na origem, porque se as migrações não forem determinadas por circunstâncias de guerra ou de perseguição política e étnica mas simplesmente pela fuga à pobreza e às péssimas condições de vida, a emigração seca os países no que eles têm de últimos recursos (juventude, iniciativa, qualificações).

Nestas duas abordagens, o foco da análise está nos países ou nações. Discutem-se as condições da convergência e as consequências das migrações na perspetiva dos países e não especialmente na perspetiva dos cidadãos independentemente do país a que pertencem ou a que querem pertencer.

Vejamos um pouco mais em pormenor o que resulta de diferente se combinarmos os dois temas e os analisarmos na perspetiva dos cidadãos e não dos países.

A questão da convergência assenta numa fábula que contém uma importante parcela de realidade, mas da qual não podemos ignorar os fatores de perturbação. A ideia da convergência é simples. Os países menos desenvolvidos abrindo-se ao exterior poderão ter acesso a conhecimento e a tecnologia mais desenvolvida e de última geração e com essa possibilidade o estatuto de “chegarem depois” ao desenvolvimento pode compensar, pois disporão de recursos que os que começaram primeiro não tiveram. É importante notar que o acesso se processa a conhecimento e a tecnologia, pois que em termos de qualificações a tendência em globalização é para as pessoas se deslocarem em direção a melhores remunerações e a maiores concentrações de qualificações, ou seja no sentido contrário. Diz-se é verdade que as qualificações têm de ser melhoradas para melhorar aquele acesso. Mas o risco central tende a ser ignorado. Não é garantido que essas melhores qualificações ou cabeças fiquem. Em termos de comparação entre ritmos de crescimento, o que os economistas chamam convergência absoluta, a realidade contradiz a fábula. Em média, os menos desenvolvidos não têm crescido a ritmos superiores aos desenvolvidos. A fábula da convergência é substituída pela tragédia da divergência. Mas os economistas inventaram uma outra forma de convergência: comparam-se ritmos de crescimento compensando (econometricamente diz-se controlando por) as diferentes condições de partida dos países mais pobres e a isto se chama convergência condicional. Tudo se passa como se existissem duas fábulas: os países pobres cresceriam para um destino compatível com os seus recursos de base e os países ricos caminhariam para uma fronteira diferente ditada pela sua valia tecnológica e de qualificações. Controlando por estes fatores, os países mais pobres têm crescido mais do que os mais ricos, falando-se assim de convergência condicional.

Costumo dizer que as populações dos países não “comem” convergência condicional, que é uma abstração econométrica, mas sim convergência absoluta, pois é o ritmo do seu próprio crescimento que determina as suas próprias condições de vida.

Assim sendo, como o destaca subtilmente Milanovic, quando se abandona a perspetiva dos países para privilegiar a das pessoas, “cidadãos do mundo” (por mais artificial que seja esta designação neste momento das nossas vidas pandémicas), rapidamente nos apercebemos que a fuga para os países mais ricos e para melhores remunerações e rendimentos equivale a um processo de convergência de rendimentos (pois embora ganhando pouco irão ganhar substancialmente mais do que ganhariam na pobreza de origem). Em contrapartida, essa fuga equivalerá nos países de origem a um fator de divergência (pois esses países ficarão em piores condições para beneficiar da fábula do acesso ao conhecimento e à tecnologia). Ou seja, contrapondo a fábula à realidade, as pessoas deslocam-se precisamente para aceder ao conhecimento e à tecnologia e com isso a um rendimento mais alto, embora nesses países de destino a desigualdade esteja a aumentar mesmo nos países com Estado Social mais avançado.

Nos últimos tempos e por mais que o populismo xenófobo oculte essa questão, essas migrações beneficiam os países de destino na medida em que tenderão a compensar a progressão inexorável do envelhecimento.

Tal como Milanovic o assinala com rude clareza, esta tendência pode determinar que certos países deixem de existir. O investigador sérvio interroga-nos em termos provocadores: estamos tão e bem preocupados com a preservação da diversidade da fauna e flora (a chamada biodiversidade) e aparentemente damos de barato que a diversidade de línguas e culturas possa reduzir-se brutalmente. E a sua pergunta final ainda é mais brutal: mas quem é que deve pagar os custos da preservação da diversidade de línguas e culturas? Os que defendem esse valor a partir das suas vidas mais confortáveis, como seria desejável? Na prática, não são esses que estão a pagar essa diversidade cultural. São, pelo contrário, os cidadãos dos países pobres ameaçados de extinção que são impedidos de se deslocar livremente em busca de melhores condições de vida.

Se não é um murro no estômago, anda lá muito perto.

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