sábado, 22 de janeiro de 2022

ESTRANHAS ALIANÇAS, UMA HOMENAGEM E UM GOSTO

 


(Uma das dificuldades que o aprofundamento do projeto europeu enfrenta situa-se hoje no que muitos de nós sempre admitiram ser um importante ativo, a diversidade cultural. Não é que a diversidade cultural (toda a diversidade afinal) deixe de ser um fator importante de dignificação da vida, mas é antes a profunda incompreensão que essa diversidade suscita de norte para sul e vice-versa e de oeste para leste e vice-versa. Um bom exemplo desta realidade pode ser encontrado na geografia dos movimentos anti-vacinas, que se reflete aliás nas diferentes taxas de vacinação com duas e terceiras doses que se registam por toda a Europa).

Este tema de reflexão surgiu-me quando procurava estabelecer algumas diferenças entre o negacionismo anti-vacinas que grassa pelos EUA e por alguns países europeus. Nos EUA, como reflexo em câmara lenta do trumpismo na governação, existe hoje uma profunda divisão entre Democratas e Republicanos e embora haja outros fatores a ter em conta (qualificações, tipo de presença no mercado de trabalho, por exemplo), a verdade é que hoje se observam correlações significativas entre territórios azul (Democratas) e taxas de vacinação mais elevadas e territórios vermelho (Republicanos) e baixa taxa de vacinação. Isto pode significar que o profundo “divide” que fratura a sociedade americana e que também designamos de forte polarização política resulta em grande medida da utilização de Trump do COVID-19 como matéria de afirmação da sua impunidade. Todos nos recordamos do passeio de automóvel quando o personagem esteve internado num hospital pela infeção contraída e fazia disso imagem da sua pretensa força.

Ora, no caso da União, a polarização política não está ausente e mesmo assim o negacionismo atrai algumas massas de gente que não são totalmente despiciendas.

A Alemanha é um caso muito particular que me desperta a maior das perplexidades. Todos nos recordamos quando na primeira onda pandémica muitos dos nossos comentadores, epidemiologistas de última hora mas de profundo coração, se maravilhavam com a identificação do povo alemão com as medidas pragmáticas de contenção e confinamento que foram sendo tomadas e também, já agora, com a pretensa superioridade logística daquele país em processos desta natureza. Diga-se que alguns desses comentadores engasgaram-se um pouco quando os alemães, inspirados na solução portuguesa do Vice-Almirante, optaram também eles por chamar uma personalidade militar para coordenar a sua logística.

O que me causa perplexidade é o facto dessa confiança se ter esvaído muito depressa, sobretudo revelado quando se começou a perceber que a Alemanha estava com evidentes dificuldades em fazer avançar a vacinação, a ponto de neste momento os alemães apresentarem uma das mais baixas taxas de vacinação (73%). Em paralelo, a expressão física dos movimentos negacionistas, manifestações, marchas, exercícios violentos de protesto, começou a ser cada vez mais visível. E a perplexidade aumenta quando se percebe que em torno do negacionismo alemão se forjaram alianças sociais e políticas que tenho muita dificuldade em compreender, do ponto de vista da sua génese e dos fatores que justificam estatutos muito diversos marcharem e manifestarem-se, por vezes, violentamente, lado a lado. É verdade que a extrema-direita alemã representada AfD (Alternativa para a Alemanha), a que se juntam nazis, nacionalistas ferrenhos (tipo Djokovic na Sérvia) e hooligans que parecem fazer disso profissão, continua a estar no centro do movimento negacionista. A jornalista Katrin Benhold a escrever de Nuremberga para o New York Times (na edição em papel pois não consegui encontrar a versão digital do artigo) identifica porém no crescimento do movimento a presença de outras figuras sociais onde coloca por exemplo uma esquerda de pendor libertário e saudosa dos anos 60 e, o que é mais perturbador, cidadãos aparentemente normais, sem filiação partidária evidente e que parecem ter encontrado no negacionismo uma forma de protesto vital, como se a sua penosa e desinteressante vivência encontrasse alívio nesse protesto. Ainda não é possível antecipar se a ameaça expressa pelo SPD no poder da vacinação poder tornar-se em obrigatória terá alargado a incidência destes movimentos.

Tenho andado a estudar a diferença entre liberais e libertários, pois parece-me que essa distinção é vital para compreender o que se passa neste alargamento da base social anti-vacinas. Em muitos dos negacionistas o argumento mais forte e mais utilizado é o da defesa da integridade do seu corpo, regra geral associado à mais profunda desconfiança para com a ciência. Parece haver assim territórios, como o da ex-RDA, em que a extrema-direita e neonazis são o coração do movimento e outros, porém, em que a mistura social é mais complexa e pode envolver gente que já poderá ter votado à esquerda ou Verdes.

Como é compreensível, o maior perigo deste fenómeno complexo é a partir do negacionismo poder instalar-se uma grande nebulosidade entre a extrema-direita e estas extensões, banalizando a primeira e contribuindo assim para alargar fortemente o seu peso eleitoral. A jornalista do NYT antecipa que a discussão no Parlamento da obrigatoriedade da vacinação poderá representar um sobre-rastilho para toda esta complexa convergência.

A Alemanha continua a surpreender-nos pelas suas amplas e variadas contradições, que cavando um bocadinho surgem à evidência.

Regressando ao tema inicial, quando não se compreende o outro não há integração ou cooperação possível. É claro que estamos a falar de algo minoritário, que não envolve um número avassalador de alemães. Mas não ficamos, por isso, menos perplexos e a história não se apaga facilmente.

Nota complementar - uma homenagem sentida

O meu colega de blogue, com muito mais proximidade à personalidade que nos deixou, o Professor António Silva Cardoso da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto e da equipa Reitoral, já deixou neste espaço a expressão do nosso desalento pelos Melhores que nos deixam. Desde o contacto que tive no também desaparecimento precoce do seu Irmão e meu colega em alguns trabalhos, o Professor Abílio Silva Cardoso, os meus contactos com o Professor António Silva Cardoso limitaram-se a pequenas e curtas conversas muito matutinas no Piolho, quando na qualidade de madrugadores convictos, ele para começar cedo na Reitoria e eu para uma escapada à tesoura do Senhor Moreira na Barbearia Invicta, a questão da Universidade do Porto vinha sempre à baila nas nossas conversas. Pelo papel que teve na modernização infraestrutural de todo o parque universitário, poucas vezes vi alguém com tanta persistência e coerência de ideias, num tema que exigia sempre forte concertação, seja com a Câmara Municipal do Porto, com a CCDR Norte ou mesmo com o poder central em Lisboa. A mesma avaliação fi-la já mais recentemente, e quando certamente estaria já doente, nos contactos que tive com ele no âmbito dos trabalhos de elaboração do Plano Estratégico do Porto, por agora suspenso em função da mudança de Conselho Geral da U.Porto. A mesma atitude de consistência e sobriedade, de abertura à discussão, enfim alguém que servia a U. Porto como vi poucos fazê-lo. Para as pessoas da família que conheço melhor, o Engº Nuno Cardoso e sua cunhada, viúva do Abílio, um grande abraço solidário.

Rui Moreira

A vida é um universo de contrastes. Fiquei satisfeito com o facto de Rui Moreira ter sido totalmente absolvido do imbróglio Selminho. Quando aceitei colaborar em duas iniciativas para a reeleição de Rui Moreira (não votando eu no Porto) fi-lo expressando a minha convicção da sua inocência, embora salientando que me parecia ter sido um procedimento altamente imprevidente. Quando pesei o valor dessa imprevidência face às vantagens de o reeleger (dado que o PS continua a não acertar com a eleição para o Porto) não tive dúvidas. Foi reeleito e se a Relação não perturbar esta sequência está agora liberto de qualquer suspeição.

Ainda bem.

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