sexta-feira, 30 de setembro de 2016

BRAVO ANTÓNIO, JÁ NÃO HÁ DE FACTO VERGONHA!




(Não é hoje seguro que a política dos golpes palacianos concebidos fora do escrutínio democrático não venha a sobrepor-se à superioridade moral, intelectual e política de António Guterres na eleição do novo Secretário-Geral das Nações Unidas, mas independentemente do que vier a passar-se fica o ensinamento de que é possível ultrapassar o estigma do País)

José Pacheco Pereira tem sido talvez o mais insistente e consistente na defesa de que o avanço da candidatura de António Guterres ao novo (veremos se será efetivamente novo) processo de seleção do secretário-geral das Nações Unidas é essencialmente o resultado da qualidade e da prática do candidato. Também alinho nessa posição, pois a ação de Guterres na área do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados não é pera doce, nem lugar para dondocas ou pusilânimes. Guterres reúne talvez o melhor de uma geração que outros partilharam como o presidente Marcelo e constitui talvez a mais consistente representação do progressismo católico em Portugal, que teve também o seu contributo para a construção do Portugal democrático e dele precisaríamos hoje provavelmente com mais intensidade.

Tenho maus presságios quanto aos efeitos da golpada em curso, preparada claramente no interior do PPE, cada vez mais a evidência de quão degradada andou a social-democracia europeia para viabilizar a ascensão de tão sinistra convergência de forças. Juncker é hoje o habilidoso de feira que está na convergência de tais forças e, uma vez mais, a Europa escolhe a pior via para se afirmar no contexto da geoestratégia internacional. Entendamo-nos. Ninguém ignora que a candidatura de Guterres correria riscos de sacrifício se o desenho de alinhamento de forças entre os EUA, a China e a Rússia, com a França e o Reino Unido hoje algo alquebrados nas suas ambições de hegemonizar o que quer que seja, se orientasse para outros rumos. Por vezes, a origem de um país pequeno e inofensivo dá jeito para esses arranjos, outras vezes sucede o contrário, sobretudo quando se está perante um candidato que pensa, atua, conhece o terreno e está disposto a denunciar hipocrisias. Se fosse essa infelizmente a tendência e aconteça ela no quadro das candidaturas que se sujeitaram ao escrutínio transparente e público, a questão era outra. Mas quando a dissonância é uma golpada das mais sinistras, com a Comissão Europeia metida ao barulho, estará tudo dito.

Se Guterres aguentar incólume esta falta de vergonha a todos os níveis, teremos um processo exemplar conduzido a partir da tenacidade e da qualidade e generosidade intrínseca de um personagem da nossa democracia.

Se isso não acontecer e as forças da geoestratégia mais oculta ou da simples falta de vergonha adulterarem a transparência de um processo, não teremos apenas uma vitória moral como por vezes reivindicamos no desporto dos pequeninos. Teremos, isso sim, a manifestação de que são fortes os constrangimentos e estigmas de País mas que a força da personalidade e da exemplaridade de um rumo podem aspirar pelo menos a minimizar tais escolhos. Qualquer que seja o resultado da seleção.

O PENSAMENTO ECONÓMICO DE HILLARY




(Já que do primarismo primata de Trump não resulta qualquer pensamento económico que valha a pena discutir, só erros que alguns dos seus apoiantes potenciais já reconheceram, vale por isso a pena avaliar se a candidatura de Hillary traz novidades nesse campo)

Nos últimos tempos, as eleições americanas têm-se transformado num vazio de confronto de ideias. Não porque Obama não tenha trazido ao debate matérias importantes, como por exemplo a dos estímulos fiscais, mas sobretudo porque do lado republicano a falta de decoro e a defesa dos interesses do 1% da sociedade americana colocou o discurso económico do partido no grau zero da elaboração conceptual. Longe vão os tempos em que, por exemplo, a célebre curva de Laffer, em torno dos efeitos perniciosos dos altos impostos, animava e suportava as hostes republicanas. O primarismo de Trump tem levado este vazio à caricatura e à deformação das ideias. Ainda nos últimos dias, Trump trouxe para a ribalta do debate a ideia peregrina de que reduziria a zero o défice externo da economia americana e impulsionaria por essa via o PIB americano. Depois de Krugman zurzir quanto baste nesta iletrada ideia, até Gregory Mankiw (ver link aqui), um economista que anda pelos lados dos republicanos, veio confirmar que a ideia é peregrina, pois um défice externo é sempre sinónimo de entrada de capital no país pelo que anular esse défice não pode deixar de influenciar por via da taxa de juro o consumo e o investimento. É por isso que, há dias, Brad DeLong ironizava com o facto do grupo de economistas apontado como apoiantes de Trump estarem mais preocupados com a agenda económica de Hillary Clinton do que efetivamente em apoiar o alucinado Donald (ver link aqui). Esclarecedor.

Do lado dos democratas, as primárias entre Bernie Sanders e Hillary Clinton trouxeram para a ribalta uma espécie de confronto “PS versus Bloco de Esquerda” à americana e foi interessante seguir o conteúdo em termos de pensamento económico. Interessa, por isso, observar o conteúdo da candidatura de Hillary Clinton, tendo em conta, entre outros aspetos, a necessidade da candidata democrata ter de acolher uma boa parte dos argumentos que explicaram o tão entusiasta apoio a Bernie de uma fração menos domável do eleitorado democrata.

Mike Koncsal, no incontornável VOX (ver link aqui) em termos de seguimento do pulsar da situação política nos EUA, propõe uma primeira tentativa de sistematização do novo projeto liberal (à americana, entenda-se e nada de confusões com a ortodoxia neoliberal) que inspira a candidatura de Hillary.

Segundo Koncsal, as propostas de Hillary constituem uma rotura face ao pensamento democrático dominante segundo o qual a economia corrige-se e regenera-se a si própria, apontando para três eixos de intervenção: a desigualdade não é uma fatalidade mas o resultado de determinadas políticas, ou seja, a desigualdade é produto de escolhas; há situações estruturais que estão para além de qualquer pretensão de que baste os estabilizadores automáticos atuarem e a ideia de pleno emprego regressa ao discurso democrata; é necessário reabilitar os serviços públicos como fontes de oferta de serviços e de segurança aos cidadãos.

Simples, mas promissor, não acham?

Bastará para combater a boçalidade, o primarismo e a ganância? Oxalá.

UNITED UNIONS, WHAT ELSE?


Por variadíssimas ordens de razões que alguns gostam de designar por geopolíticas, a notícia da entrada da búlgara Georgieva na corrida às Nações Unidas era mais do que esperada e ela aí está pela abençoada mão protetora de Merkel e – sabe-se lá! – de Obama e/ou Putin (?).

Mas não é tanto esse pouco dignificante facto da realpolitik internacional que me incomoda mais profundamente, antes sim o de uma nova e soberba manifestação do desnorte e da desgovernação em que vive a União Europeia de hoje – com Juncker a mostrar todos os dias (ou, para talvez ser mais justo, dia sim dia não) quanto não está à altura do (ou não possui a estatura necessária para lidar com o) desafio de presidir à Comissão que abraçou tudo fazendo e engolindo para tal.

É neste quadro que surge a sinistra figura do seu chefe de gabinete, o spin doctor alemão Martin Selmayr, enquanto verdadeiro orquestrador do essencial da agenda política do “chefe”. O tweet com que este despudoradamente brindou o mundo comprova bem o tricotado alcance de uma manipulação que envolve o pior do PPE e da falcoaria alemã, com a dita União a assistir alegremente (ou aparvalhadamente?) ao confronto aberto entre um português, um eslovaco, um sérvio e duas búlgaras. Sem emenda!


(Michael Kontouris, http://www.efsyn.gr)

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

O CAOS DO PSOE

(El País)


(Não contava que os meus bad feelings sobre o futuro do PSOE se precipitassem tão depressa. O editorial do El País de hoje diz mais ou menos isto “salvemos o PSOE”.  Tudo isto mesmo sem estarem confirmadas as terceiras eleições em Espanha)

O que se vai passando por estes dias no PSOE é um pouco do mais cru e tosco que se possa imaginar poder acontecer em matéria de luta pelo poder interno de um partido. Recordemos a sequência dos acontecimentos. Apesar de não ser realista admitir que consiga formar um governo à esquerda com os acelerados do PODEMOS, o líder do PSOE, Pedro Sánchez, tem-se mantido firme no que ele diz ser uma lealdade profunda para com as bases militantes do partido, rejeitando o apoio, mesmo que por abstenção, à hipótese de Rajoy governar. Há, porém, sinais, de que entre a base eleitoral do PSOE, francamente mais extensa do que a militante, essa não é a posição maioritária. Essa base eleitoral pretenderia que Sánchez negociasse a abstenção e que confinasse Rajoy a determinados limites. Nessa onda de rejeição, Sánchez bateu-se duramente pelo apoio aos seus candidatos nas eleições regionais e com essa presença no terreno eleitoral, indo à luta, comprometeu-se antecipadamente com os resultados. O PSOE teve nas duas regiões uma derrota profunda: não impediu o avanço das forças inorgânicas do PODEMOS, sendo por elas ultrapassado em número de votos e não evitou a maioria absoluta do PP na Galiza e o empate com o PSOE no País Basco. Duro revés para quem foi à luta.

Uns dias depois Sánchez, faz a jogada tradicional de surpreender adversários internos potenciais, propondo primárias em outubro e congresso em novembro, tudo isto a tempo (em passo acelerado claro está) das eventuais terceiras eleições em dezembro. A parte contrária, com protagonistas diversificados, retaliou promovendo a demissão em bloco de 17 membros da Comissão Executiva, admitindo com isso que tal queda em bloco iria provocar a queda da liderança. Mas a minha experiência de observador atento destas matérias confirma que se há matéria obscura (naturalmente et pour cause) do direito é a do direito estatutário dos partidos. A confusão é sempre caótica quando surgem questões desta natureza. Resultado: a Comissão de Ética e de Resolução de Conflitos não tem tido condições para reunir e apesar da sua presidente dizer que quem manda é ela, mensagem transmitida claro a partir das redes sociais, normalmente tweetando, a verdade é que por agora paira a seguinte interrogação: Sánchez está ou não com os seus plenos poderes? Os líderes regionais, e há para todos os gostos, também designados de barões, estão ao rubro nas suas pretensões e mostram também um outro efeito das autonomias regionais, cacofonia mais ou menos caótica de pronunciamentos a favor e contra de Sánchez. Até o sempre relevante Felipe González veio a terreiro invocar conversas pessoais com Sánchez que teria presumidamente manifestado a sua intenção de se abster na investidura de Rajoy.

Imagino que o estático e inábil Rajoy estará a rebolar-se de riso, o que o compensa dos sucessivos salpicos de corrupção que vão emergindo como cogumelos a partir do PP, pensando que tal como os mercados lhe trouxeram em mãos uma situação macroeconómica favorável, também o PSOE irá desagregar-se por ele próprio, tendo apenas que preocupar-se com os acelerados do PODEMOS.

O Rei, entretanto, já terá confessado na intimidade à Olívia Palito Letízia que não esperaria reinar com tanta confusão, em pleno caos diria eu. O seu pai, no entanto, já terá pensado que mais valerá uma caçada furtiva do que aturar e mergulhar em tão grande lio.

Imagino que grande parte dos espanhóis estarão atónitos. E a maioria sociológica do PP dialogará com os seus botões dizendo que se calhar não será tão complicado como isso renovar essa profunda maioria.

A BANCA SOMBRA AINDA ANDA POR AÍ ...


(A crise financeira de 2007-2008 teve vários protagonistas e um deles foi o vazio regulatório da chamada banca sombra, já referenciada nas crises asiáticas cambiais dos fins dos anos 90.  Quase uma década passada, não há sinais consistentes de que o problema tenha sido resolvido)

O estudo aprofundado da instabilidade financeira mundial provocada pelas crises cambiais dos fins dos anos 90, com epicentro na crise do bath tailandês, e o abalo da crise financeira de 2007-2008 permitiram chamar a atenção para o protagonismo da chamada “shadow banking” (banca sombra). Banca sombra pode ser expeditamente caracterizada como instituições financeiras que não são reguladas como banca mas que exercem funções de captação de poupanças e de oferta de recursos financeiros à economia. Nas investigações realizadas, a banca sombra foi apontada como tendo uma intervenção significativa na amplificação dos efeitos da crise, aparecendo no centro do “moral hazard” (risco moral) da crise financeira. A banca sombra tendeu a reforçar a massa de investimentos especulativos apoiados, foi responsável pela intensa sofisticação dos produtos financeiros e precipitou a retirada. Foi assim nas crises cambiais asiáticas, dando guarida a um sistema financeiro pouco confiável desses países e esteve no centro do furacão especulativo precipitado com a falência do Lehman Brothers. Da imensa literatura que passou pelos meus olhos sobre esta matéria, destaco os estudos de Krugman sobre as crises cambiais asiáticas, posteriormente estendidos aos acontecimentos nos EUA da segunda metade dos anos 80 e a obra do ex-secretário de Estado do Tesouro americano, Timothy Geitner, “Stress Test: reflections on financial crisis”.

Uma regularidade das análises então encontradas foi o grande vazio regulatório que pesa sobre a banca sombra. Por outras palavras, estamos perante um equívoco quando pensamos que o sistema bancário é hoje o coração do sistema financeiro mundial e que as suas fontes de instabilidade estão acantonadas nos bancos e nos seus problemas. Na altura, muita ação foi prometida sobre a regulação desta banca que não é banca. O que a informação disponível sugere é que talvez ao nível da banca se tenha avançado mas a regulação da sombra tem que se lhe diga. A realidade tendeu a sofisticar-se. Via Timothy Taylor (para sempre conhecido através do seu papel de editor do grande Journal of Economic Perspectives) do estimável Conversable Economist, tive acesso a uma Economic Letter do Federal Reserve Bank de Dallas na qual encontrei uma das mais sistemáticas caracterizações da banca sombra. Não só essa caracterização identifica os diferentes tipos de instituições que sofisticam o universo do shadow banking, como analisa os canais e mecanismos através dos quais se articulam com o sistema bancário. A informação é preciosa e mostra como o desenvolvimento do sistema financeiro atingiu níveis de sofisticação situados para além do escrutínio democrático e dos próprios reguladores. Os ensinamentos de 2007-2008 parecem não estar ativos. A sofisticação alonga-se e não necessariamente por razões de complexidade de proteção e segurança face a uma crise similar à de 2007-2008 que possa ocorrer, não importa onde vá estar o seu epicentro possível.

A simples progressão da banca sombra, medida pelo stock das suas responsabilidades, quando comparada com a dos bancos explica o seu maior contributo para a instabilidade financeira sistémica. É visível no gráfico que abre este post a relativa estabilidade do stock de responsabilidades da banca americana quando a das instituições que corporizam a banca sombra o seu volume e variação respondem por si. Por isso, quando a política monetária pretende utilizar o sistema bancário como elemento de transmissão das orientações que pretende ver concretizadas na economia real está a tentar influenciar apenas uma parte que já não é dominante do sistema financeiro.

É mais uma dimensão da financeirização das economias de mercado e os mecanismos regulatórios estão ainda longe de poder controlar toda essa complexidade e sofisticação.