(Gravura que acompanha o artigo de Deirdre McCloskey no New York Times)
(À boleia de um
debate que foi lançado pelo New York Times e se prolongou pelo Washington Post,
a relação entre a pobreza
e a desigualdade, entendidas como objeto prioritário ou complementar da ação
política e da política económica, é uma questão central do nosso tempo e pela
qual passa também a reinvenção da social-democracia e do socialismo)
Deirdre McCloskey lançou
no início de setembro no sempre apelativo centro de debate que é o THE UPSHOT
do New York Times (ver link aqui) as bases de um debate que transcende
claramente os limites da sociedade americana e que é central a uma possível
reinvenção da social-democracia ocidental e do socialismo democrático.
McCloskey é uma economista do universo liberal americano, professora da Universidade de Illinois, Chicago, integrada no College of Liberal Arts, que tem a
particularidade de ter mudado de género aos 55 anos, assumindo a partir desse
momento o género feminino (Donald versus Deirdre) (ver aqui artigo do Wall
Street Journal em que a economista se refere ao assunto e aqui o lugar que essa
transição ocupa no seu CV). Tomei contacto com a obra de McCloskey sobretudo
através dos seus ensaios sobre retórica e persuasão em economia, matéria que me
fascina pois o modo como o conhecimento em economia é transmitido é hoje
crucial para compreender as dificuldades de se encontrar um novo paradigma de
política económica á altura dos desafios contemporâneos. O seu “The Rhetoric in Economics” de 1983, ainda
Donald McCloskey, no Journal of Economic
Literature está entre os artigos que considero marcantes na minha formação
(ver link aqui).
O artigo de McCloskey no
NYT pode ler-se como uma profissão de fé (a autora designa-se como uma cristã
libertáriaI) nas virtudes da igualdade, da liberdade e da justiça para
assegurar o enriquecimento progressivo do mundo e por essa via reduzir os
níveis e a abrangência da pobreza para níveis mais do que aceitáveis. No seu
discurso por vezes emblemático, McCloskey não hesita em escrever que “o importante não são os iates que a dona da
L’Oréal Liliane Bettencourt possui mas antes que a média das mulheres francesas
tenha que comer”. Nesse registo, McCloskey invoca para o seu argumento a
série espantosa de melhorias de redução de pobreza que o crescimento económico,
ainda que desigual pelo mundo, tendeu a assegurar. Sim, apesar das suas
derivas, a globalização económica tendeu a reduzir substancialmente a pobreza,
embora nessa matéria tenhamos de ponderar bem o efeito que a redução da pobreza
na China provoca nesses números. O grande enriquecimento global é visto por
McCloskey como o resultado da tríade igualdade, liberdade e justiça, associando
a emergência do mundo moderno ao simples facto das pessoas terem começado a ser
tratadas com mais respeito.
McCloskey não é uma
economista qualquer, impõe respeito nas suas convicções e não deixa de ser
salutar que, nos anos da desigualdade como tema (2015 com prolongamento para
2016 em termos de produção teórica e debate), apareça alguém, assumindo
frontalmente que na relação entre pobreza e desigualdade a primeira é
prioritária, centrando assim a relação causal entre crescimento económico e
redução da pobreza.
O debate é quase tão
velho como o é a própria economia política e tem no seu centro lógico o papel
da distribuição em economia. E aqui há três posições que têm mantido uma
conflitualidade desde tempos longos. Primeira: a distribuição não existe
enquanto preocupação da ciência económica. Segunda: a distribuição existe e
deve ser acrescentada como dimensão complementar e reguladora da alocação de
recursos em mercado livre. Terceira: alocação de recursos e distribuição devem
ser conjuntamente equacionadas no âmbito de uma abordagem global e diferentes
modelos o têm ensaiado. A posição de McCloskey aproxima-se mais da primeira,
embora não possa confundir-se com os economistas, também com origem intelectual
em Chicago, que encaram a distribuição como uma tentação que faz mal à classe e
a afasta dos padrões pseudocientíficos que defendem.
No debate de regulação
de prioridades da política económica em torno da pobreza e da desigualdade,
esta última tem ganho nos últimos anos uma maior notoriedade. Várias razões
explicam essa mudança, mesmo num contexto global de aumento do rendimento médio
das populações e de redução da pobreza na economia mundial. Primeiro, a
desigualdade é apontada como uma das raízes do processo de estagnação secular
que ameaça as economias avançadas. Segundo, o rigor científico da análise da
desigualdade rivaliza hoje entre pares com as abordagens que a desvalorizaram.
Terceiro, a perceção da desigualdade pelos mais desfavorecidos não é hoje
neutra do ponto de vista dos seus posicionamentos em democracia, leia-se
repercussão nos padrões de voto e oposição aos rumos da globalização. Quarto,
há evidências cada vez mais seguras de que países mais desiguais não crescem
tanto, penalizando por conseguinte o argumento de McCloskey.
Não espanta por isso que
David Lay Williams, no Monkey Cage do Washington Post (ver link aqui) tenha vindo
questionar o artigo de McCloskey, sublinhando que combater a pobreza não chega,
combater a desigualdade é também imperioso e necessário. Ou que um insuspeito
Robert Schiller Nobel pela sua análise da exuberância irracional dos mercados
financeiros tenha também no THE UPSHOT defendido que “a desigualdade de hoje
pode transformar-se na catástrofe de amanhã” (ver link aqui).
Na minha leitura, o
desenvolvimento pode ser visto como uma função avaliativa de duas variáveis, a
pobreza e a desigualdade, tendendo a gerar performances mais elevadas com
redução de ambas. Mas o problema é que pobreza e desigualdade não são
independentes entre si. Há vários mecanismos que o podem explicar. Mas pelo
menos um é visível. Penalizando o crescimento económico, a desigualdade acaba por
penalizar a redução da pobreza. Daí a preocupação por modelos de crescimento
mais inclusivos, mas isso é conversa para outras charlas.
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