(Os tempos vão
maus para as piruetas heterodoxas dos bancos centrais e da política monetária,
o seu poder de fogo sobre a economia real e o combate à baixa inflação é arma
de brinquedo para crianças e
a instabilidade do sistema financeiro, com o Deutsche Bank na berlinda, não
ajuda a que seja diferente)
A
instabilidade sistémica que um depauperado Deutsche Bank tende a provocar sobre
o sistema financeiro (devidamente registado neste blogue uns dias antes da
imprensa nacional dele dar conta) está a esconder um debate compreensível e
incontornável nos nossos dias: como combater a armadilha de liquidez em que estão
mergulhadas as principais economias avançadas, a braços com taxas de juro nulas
ou negativas.
Várias
posições se têm perfilado nesta matéria.
A primeira
posição, largamente centrada nos bancos centrais, oscila em torno da ambição e
diversidade com que o fornecimento de liquidez à economia é realizado segundo a
pirueta do quantitative easing (QE) e
do lema “faremos o que for necessário” para travar os riscos deflacionários.
Vale a pena lembrar que importa distinguir entre os efeitos do “faremos o que
for necessário” para ir garantindo o acesso ao financiamento das economias mais
endividadas (caso dos efeitos da prática do BCE em Portugal) dos efeitos
desejáveis de relançamento das economias e da sua luta contra a anemia do
crescimento e riscos deflacionários. Eles são distintos. O primeiro tem surtido
efeito. O segundo nem por isso, apesar da determinação e da heterodoxia das
piruetas. O conservadorismo e inércia instalados nos bancos centrais tenderá a
esticar esta modalidade o mais possível, embora tal prática conduza a uma
engorda dos balanços dos bancos centrais nunca vista na sua história.
Do que tenho
lido sobre esta matéria, não tenho dúvidas de que a melhor explicação para o
insucesso do QE em resolver o problema é a que foi fornecida por Richard Koo,
economista chefe do Research Service da instituição financeira Nomura (também
aqui apresentado neste blogue com grande antecedência à sua divulgação
posterior em Portugal). Ninguém como Koo alertou com tanta clareza para o gap
imenso que existe entre o crescimento da base monetária e o reduzido efeito na
oferta de moeda efetiva à economia viabilização através do crédito bancário. O
economista do Nomura salientou uma coisa óbvia: enquanto o setor privado
estiver a desalavancar, isto é, a corrigir em baixa os seus elevados níveis de
endividamento, não procurará crédito na medida em que o QE sugere que vai
acontecer. Mais ainda. Koo denunciou oportunamente as razões pelas quais o QE
funcionou melhor nos EUA do que nos restantes países (Europa, Japão e Reino Unido)
(ver link aqui, quando escreveu a convite no Alphaville do Financial Times).
Nos EUA, o FED alertou oportunamente para a necessidade do QE ser acompanhado
de estímulos fiscais, ou seja para a necessidade do governo americano não
desalavancar ele próprio. Nos restantes países, a ortodoxia monetária e o
louvor da austeridade fizeram com que o QE à europeia tivesse de conviver com
consolidação fiscal inoportuna. Draghi chama-lhe “operar em águas
desconhecidas”, mas da Suécia à Alemanha, da Holanda ao Reino Unido, os bancos
centrais e o BCE dão por um lado ao mesmo tempo que a política fiscal pressiona
descendentemente a economia. E não é apenas a diferença de mandato de FED e BCE
que explica a situação.
Uma segunda
orientação é magnificamente protagonizada pelo influente Larry Summers. Apoiado
na sua ideia de que o zero lower bound
não é passageiro e que está para ficar, tanto mais quanto durar a miopia
macroeconómica, Summers não acredita nas piruetas da política monetária. O que
ele propõe, pelo menos para os que se encontram com maior margem de manobra
orçamental, é o regresso da política fiscal e sobretudo uma forte carga em
termos de investimento público (ver link aqui para um dos seus pronunciamentos
sobre esta matéria), sobretudo para os países com défices claros de qualidade
infraestrutural, EUA incluído, ainda que essa avaliação nos pareça bizarra.
Finalmente,
uma terceira orientação tem emergido, mais declaradamente na esfera monetária. Esta
terceira orientação tem várias variantes, mas gira essencialmente em torno de
uma proposta claramente oposta à que tem sido praticada pelo conservadorismo dos
bancos centrais. Estes têm levado as suas piruetas para o domínio do
rebaixamento das taxas de juro, ousando entrar no domínio das taxas negativas. O
racional é conhecido. A descida da taxa visa reduzir o custo do investimento,
admitindo que isso é fator de relançamento da economia real. Vários argumentos
têm sido avançados para conduzir o conservadorismo dos bancos centrais para
rumos opostos. Um dos mais populares é o que aponta para a emergência de
projetos com risco demasiado elevado seduzidos por tão baixos custos de
financiamento, intensificando as carteiras especulativas. Outro argumento aponta
para os efeitos desastrosos das taxas negativas na rendibilidade bancária, ameaçando
a solidez de tais instituições. Ora, a contra proposta que tem surgido aponta para
a necessidade de entender a subida de taxas de juro como um estímulo ao combate
à estagnação. Essas posições têm sido designadas de “neo-fisherismo”, numa
linha de homenagem ao pai da economia monetária, o economista americano Irving Fisher.
Fisher é conhecido dos estudantes de macroeconomia sobretudo pela célebre relação
“taxa de juro real = taxa de juro nominal – inflação expectada” ou se
pretenderem “taxa de juro nominal = taxa de juro real + taxa de inflação
expectada”.
Sem pretender
levar este post para domínios demasiado técnicos, os “neo-fisherianos” sustentam
que os bancos centrais podem influenciar a inflação através da manipulação dos
seus objetivos de taxa de juro nominal (link aqui para uma breve exposição da
teoria no Big Picture de Barry Ritholtz). O argumento é genericamente o
seguinte: o aumento da taxa de juro nominal acaba por, a longo prazo, ser neutral
em relação à taxa real de juro e com isso acabar também a longo prazo por ser
neutral em relação à atividade económica e assim transmitir-se através do
efeito de Fisher apenas num aumento de inflação. Estarão a imaginar como esta
orientação deve provocar alergias no conservadorismo dos bancos centrais. O
neo-fisherismo projeta-se no longo prazo, embora tenha de reconhecer que a
curto prazo a subida da taxa de juro pode ter efeitos recessivos na economia ou
comprometer a recuperação que possa estar a observar-se. Não há longo prazo sem
sucessão de curtos prazos.
Ora é neste
nicho que o economista americano da Califórnia Roger Farmer tem vindo a promover
a sua variante de neo-fisherismo (ver link aqui para uma breve apresentação do
argumento). A proposta de Farmer visa precisamente neutralizar os efeitos recessivos
a curto prazo do aumento da taxa de juro. Como não podia deixar de ser, a
proposta convoca a política fiscal para completar a decisão de subida da taxa
de juro. É necessário um impulso fiscal para garantir essa neutralização. Esse
impulso pode ser assegurado quer por uma transferência de dinheiro para as famílias,
por injeção de despesa pública de investimento na economia ou, como Farmer,
prefere, através de uma prática de compra e venda de títulos indexados ao
comportamento da taxa de desemprego. Ou seja, o Estado manteria firme o valor
dos títulos cotados em função de um valor que neutralizasse a influência dos “espíritos
animais” no mercado. Farmer trabalha sobretudo a influência desses espíritos
animais na fixação dos preços dos ativos financeiros e defende pertinazmente a
existência de uma relação estável entre taxa de desemprego e preços de ativos
em mercado.
Haverá
outras orientações de combate à armadilha em que moeda e títulos de curto prazo
são trocados como sucedâneos perfeitos. O conservadorismo monetário está sob
fogo e muito provavelmente não ficará na mesma.
Há uma
constante nisto tudo. E ela é contundente para os que pensaram que o ciclo económico
estava dominado e que a política monetária poderia entrar em piloto automático.
Sem surpresa, essa gente tem aparecido pouco a defender a dama da sua convicção.
Continuarão provavelmente a produzir os seus papers, validados entre pares,
rezando aos seus santos de estimação que a turbulência passe, embora nada tenham
a dizer sobre isso.
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