(Simplesmente à
boleia de um bem-sucedido post do meu colega de blogue, para acrescentar algumas notas sobre algumas
ideias distorcidas que se foram consolidando em Portugal sobre o papel da
construção civil)
O setor da construção civil, ou mais rigorosamente a
construção civil-imobiliário, já que para mal da primeira tenderam a tornar-se
indissociáveis no passado recente, esteve no coração da débacle que se abateu
sobre a economia portuguesa por força do resgate financeiro. E esteve de modo
absolutamente contraditório. Primeiro, foi participante ativo do processo de
degenerescência do modelo de crescimento económico que precipitou o
ajustamento, dele beneficiando e contribuindo para o seu agravamento. Segundo, a
destruição de valor e de emprego provocada no setor pela crise do ajustamento
foi excessiva e dramática, o que não significa admitir que de qualquer modo e
sem resgate financeiro o setor não tivesse necessariamente de experimentar
algum ajustamento.
Entendamo-nos. O papel da construção civil como setor
dinâmico de uma economia é inversamente proporcional ao grau de complexidade e de
desenvolvimento desta última e essa relação tende a ser verdadeira qualquer que
seja a escala territorial, nacional, regional ou local. É óbvio que constitui
uma grande força de absorção de emprego (particularmente de emprego mais
desqualificado) e que o seu efeito multiplicador pode ser significativo em
termos de emprego, rendimento e capacidade de geração de receitas fiscais,
quanto mais articulada for a fileira produtiva em que se insere. Daí a ser
apontada como o principal motor da economia, como algum discurso empresarial
por vezes o apresenta, vai uma grande distância. Quanto mais real for essa
afirmação, mais preocupados deveremos ficar com o estádio de desenvolvimento da
economia. Estas reservas não devem ser entendidas como indicador de que a
construção civil transporta uma imagem de passado e que deve ser como tal
destruída, como algum ideário de suporte ao projeto do PAF chegou a deixar
cair. A construção civil como qualquer outro setor pode ou não apresentar uma
imagem de modernidade, de organização, de padronização de processos e,
consequentemente, de capacidade de oferta de preços competitivos.
A primeira fonte de distorção atrás sugerida teve origem
no papel que o binário construção civil-imobiliário (não raras vezes alimentado
também por uma conceção demasiado imobiliária do turismo, veja-se os pontos
agudos de crescimento do turismo na Madeira e no Algarve) desempenhou na
terciarização não transacionável do crescimento económico nos anos 90 e 2000.
Nesse período, a construção civil foi apanhada no logro de uma alocação de
recursos que suplantava com facilidade os ganhos das atividades transacionáveis
(o aborrecimento da concorrência externa), sempre apadrinhada por uma atividade
bancária que bem cedo começou a internalizar os riscos elevados que o
refinanciamento internacional atribuía ao crédito ao setor produtivo
transacionável. Diga-se ainda que a imigração internacional prolongou o surto,
sem a qual o esgotamento do modelo teria acontecido. O surto prolongado de
investimentos infraestruturais cofinanciados pelos Fundos Estruturais (sim não
foi apenas apadrinhamento do crédito bancário) fez o resto e consolidou o
discurso do motor económico. Todo o país tem a bolha imobiliária que está ao
seu alcance. Como foi percetível, a portuguesa esteve a léguas da irlandesa e
da espanhola e pelos números que são conhecidos a destruição de valor foi bem
inferior. Mas como a economia apresentava um menor grau de desenvolvimento essa
destruição de valor teve em certos territórios um efeito devastador, pois nem
tínhamos o potencial exportador irlandês nem a diversidade estrutural da
economia espanhola a servir de almofada para tal destruição.
Há hoje evidências de que a ilusão de energia desse motor
adiou a racionalização do processo produtivo, a sua qualificação e o seu
afastamento da dependência face ao crédito. Como sabemos, quando a destruição
de valor não é calculada, o ajustamento selvagem é sempre mais devastador.
Assim aconteceu. Alguns pseudogrupos ruíram como baralho de cartas e o peso
dessa ruína abateu-se sobre as imparidades bancárias, incluindo as do banco
público. Para tornar ainda mais complexa a questão, o governo PAF iniciou em
Bruxelas a negociação do Portugal 2020 a jogar em terreno negativo, ou seja, a
ter de dar à perna para começar a jogar para pontos positivos. A explicação é
simples. No discurso político combateu-se a deriva das infraestruturas,
associando o ao governo de Sócrates (com alguma razão não o ignoro) e a um
fascínio pela obra de fachada para o regime e para os “regimes locais”,
aprendizes da tentação nacional. O mundo é global e os senhores de Bruxelas
também espreitam os jornais portugueses. Logo, a negociação começou com um
perentório “infraestruturas não, já estão nelas afogados”. Quando os “regimes
locais” acordaram para os riscos que daí advinham já era um pouco tarde e a
estratégia negocial teve de mudar. Acessibilidades terminais ou para a
competitividade, e reutilização de edifícios para novas funções foram algumas
dos atalhos ensaiados. Constou mesmo que o secretário de Estado do
Desenvolvimento Regional da época, não sei, provavelmente não, se com o
conhecimento do Ministro Poiares Maduro, deixou mesmo descair em algumas
reuniões com autarcas que uma interpretação inteligente da eficiência
energética seria a solução. E a banca rapidamente tirou o cavalinho da chuva e
assim como ajudou ao fogo rapidamente tirou o tapete a alguns dos pseudo grupos
da construção.
E não nos esqueçamos que a ideologia de alguns jovens
turcos ocultos no ideário PAF sempre consideraram a construção um resquício do
passado. Destruição com ela para purificar o sistema produtivo. E assim não
tenho dúvidas de que o ajustamento selvagem foi além da destruição necessária,
apenas com o ponto positivo da reorganização empresarial e da consolidação de
alguns grupos empresariais da construção a operar em ambientes internacionais,
das Arábias e Dubais até à América latina, passando por Angola. Nas minhas
reduzidas viagens ao estrangeiro nos últimos tempos, quase sempre deparei com
operários da construção deslocalizados para missões de trabalho no estrangeiro.
Mas o papel da construção nas economias locais levou um grande rombo.
Começam a ficar criadas as condições para a não distorção
das lentes. Mas a tentação espreita sempre, designadamente o balão de oxigénio
dos vistos Gold, cujo papel no reacender especulativo do setor um dia será
demonstrado. A reabilitação e a regeneração urbanas não alimentam ainda um
paradigma alternativo. E aproxima-se aí o tempo da conservação, manutenção e
renovação de grandes infraestruturas físicas. Mas o orçamento público está à
míngua, criando um novo problema. Já fomos considerados bons na inventiva da
resolução de problemas. Nos últimos temos sido criativos a criá-los.
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