segunda-feira, 19 de setembro de 2016

AS LENTES DA CONSTRUÇÃO CIVIL


(Simplesmente à boleia de um bem-sucedido post do meu colega de blogue, para acrescentar algumas notas sobre algumas ideias distorcidas que se foram consolidando em Portugal sobre o papel da construção civil)

O setor da construção civil, ou mais rigorosamente a construção civil-imobiliário, já que para mal da primeira tenderam a tornar-se indissociáveis no passado recente, esteve no coração da débacle que se abateu sobre a economia portuguesa por força do resgate financeiro. E esteve de modo absolutamente contraditório. Primeiro, foi participante ativo do processo de degenerescência do modelo de crescimento económico que precipitou o ajustamento, dele beneficiando e contribuindo para o seu agravamento. Segundo, a destruição de valor e de emprego provocada no setor pela crise do ajustamento foi excessiva e dramática, o que não significa admitir que de qualquer modo e sem resgate financeiro o setor não tivesse necessariamente de experimentar algum ajustamento.

Entendamo-nos. O papel da construção civil como setor dinâmico de uma economia é inversamente proporcional ao grau de complexidade e de desenvolvimento desta última e essa relação tende a ser verdadeira qualquer que seja a escala territorial, nacional, regional ou local. É óbvio que constitui uma grande força de absorção de emprego (particularmente de emprego mais desqualificado) e que o seu efeito multiplicador pode ser significativo em termos de emprego, rendimento e capacidade de geração de receitas fiscais, quanto mais articulada for a fileira produtiva em que se insere. Daí a ser apontada como o principal motor da economia, como algum discurso empresarial por vezes o apresenta, vai uma grande distância. Quanto mais real for essa afirmação, mais preocupados deveremos ficar com o estádio de desenvolvimento da economia. Estas reservas não devem ser entendidas como indicador de que a construção civil transporta uma imagem de passado e que deve ser como tal destruída, como algum ideário de suporte ao projeto do PAF chegou a deixar cair. A construção civil como qualquer outro setor pode ou não apresentar uma imagem de modernidade, de organização, de padronização de processos e, consequentemente, de capacidade de oferta de preços competitivos.

A primeira fonte de distorção atrás sugerida teve origem no papel que o binário construção civil-imobiliário (não raras vezes alimentado também por uma conceção demasiado imobiliária do turismo, veja-se os pontos agudos de crescimento do turismo na Madeira e no Algarve) desempenhou na terciarização não transacionável do crescimento económico nos anos 90 e 2000. Nesse período, a construção civil foi apanhada no logro de uma alocação de recursos que suplantava com facilidade os ganhos das atividades transacionáveis (o aborrecimento da concorrência externa), sempre apadrinhada por uma atividade bancária que bem cedo começou a internalizar os riscos elevados que o refinanciamento internacional atribuía ao crédito ao setor produtivo transacionável. Diga-se ainda que a imigração internacional prolongou o surto, sem a qual o esgotamento do modelo teria acontecido. O surto prolongado de investimentos infraestruturais cofinanciados pelos Fundos Estruturais (sim não foi apenas apadrinhamento do crédito bancário) fez o resto e consolidou o discurso do motor económico. Todo o país tem a bolha imobiliária que está ao seu alcance. Como foi percetível, a portuguesa esteve a léguas da irlandesa e da espanhola e pelos números que são conhecidos a destruição de valor foi bem inferior. Mas como a economia apresentava um menor grau de desenvolvimento essa destruição de valor teve em certos territórios um efeito devastador, pois nem tínhamos o potencial exportador irlandês nem a diversidade estrutural da economia espanhola a servir de almofada para tal destruição.

Há hoje evidências de que a ilusão de energia desse motor adiou a racionalização do processo produtivo, a sua qualificação e o seu afastamento da dependência face ao crédito. Como sabemos, quando a destruição de valor não é calculada, o ajustamento selvagem é sempre mais devastador. Assim aconteceu. Alguns pseudogrupos ruíram como baralho de cartas e o peso dessa ruína abateu-se sobre as imparidades bancárias, incluindo as do banco público. Para tornar ainda mais complexa a questão, o governo PAF iniciou em Bruxelas a negociação do Portugal 2020 a jogar em terreno negativo, ou seja, a ter de dar à perna para começar a jogar para pontos positivos. A explicação é simples. No discurso político combateu-se a deriva das infraestruturas, associando o ao governo de Sócrates (com alguma razão não o ignoro) e a um fascínio pela obra de fachada para o regime e para os “regimes locais”, aprendizes da tentação nacional. O mundo é global e os senhores de Bruxelas também espreitam os jornais portugueses. Logo, a negociação começou com um perentório “infraestruturas não, já estão nelas afogados”. Quando os “regimes locais” acordaram para os riscos que daí advinham já era um pouco tarde e a estratégia negocial teve de mudar. Acessibilidades terminais ou para a competitividade, e reutilização de edifícios para novas funções foram algumas dos atalhos ensaiados. Constou mesmo que o secretário de Estado do Desenvolvimento Regional da época, não sei, provavelmente não, se com o conhecimento do Ministro Poiares Maduro, deixou mesmo descair em algumas reuniões com autarcas que uma interpretação inteligente da eficiência energética seria a solução. E a banca rapidamente tirou o cavalinho da chuva e assim como ajudou ao fogo rapidamente tirou o tapete a alguns dos pseudo grupos da construção.

E não nos esqueçamos que a ideologia de alguns jovens turcos ocultos no ideário PAF sempre consideraram a construção um resquício do passado. Destruição com ela para purificar o sistema produtivo. E assim não tenho dúvidas de que o ajustamento selvagem foi além da destruição necessária, apenas com o ponto positivo da reorganização empresarial e da consolidação de alguns grupos empresariais da construção a operar em ambientes internacionais, das Arábias e Dubais até à América latina, passando por Angola. Nas minhas reduzidas viagens ao estrangeiro nos últimos tempos, quase sempre deparei com operários da construção deslocalizados para missões de trabalho no estrangeiro. Mas o papel da construção nas economias locais levou um grande rombo.


Começam a ficar criadas as condições para a não distorção das lentes. Mas a tentação espreita sempre, designadamente o balão de oxigénio dos vistos Gold, cujo papel no reacender especulativo do setor um dia será demonstrado. A reabilitação e a regeneração urbanas não alimentam ainda um paradigma alternativo. E aproxima-se aí o tempo da conservação, manutenção e renovação de grandes infraestruturas físicas. Mas o orçamento público está à míngua, criando um novo problema. Já fomos considerados bons na inventiva da resolução de problemas. Nos últimos temos sido criativos a criá-los.

Sem comentários:

Enviar um comentário