quarta-feira, 7 de setembro de 2016

FIGURINHAS OU FIGURÕES?




(A Europa parece andar distraída em relação ao que se passa a leste, mas conviria estar atento pois o que se anuncia não é nada favorável à periferia atlântica em que nos integramos)

O Financial Times deposita simpaticamente todas as manhãs no meu endereço eletrónico de assinante da edição digital do jornal uma pequena e preciosa newsletter chamada de FT Brussels Briefing. Ela é preciosa sobretudo para alguém afastado do conhecimento tácito dos corredores de Bruxelas que, com a ajuda desta pequena nota diária e o acompanhamento que o próprio Economist faz das questões europeias, consegue minimizar tal distância. Sempre achei que em Portugal se vive um conhecimento demasiado documental do que vai emergindo na Comissão Europeia e nas restantes instâncias comunitárias, algo que poderia designar de com.conhecimento, mobilizando para aqui a caterva de documentos cuja identificação acaba com a expressão (com). Discute-se pouco o conhecimento tácito que vai emergindo pelos corredores e reuniões. Temos estado focados nos Fundos Estruturais e no dinheirinho que daí se movimenta e interessam-nos pouco as questões que verdadeiramente deveriam interessar-nos. Não sei se nos canais diplomáticos se passa algo de diferente, mas pelo que se vai ouvindo receio que a onda não seja substancialmente distinta.

Pois através da nota do FT Brussels Briefing, o jornalista Duncan Robinson alerta-nos para o que se está a passar no âmbito do chamado grupo dos quatro de Visegrado (Polónia, Hungria, Eslováquia e República Checa) e mais própria e recentemente na aproximação entre as figurinhas (ou figurões) conservadoras e populistas de Jaroslaw Kaczynski da Polónia e Victor Orban na Hungria, a cujo encontro público de mútuo elogio só faltou o beijo na boca. Projetando-se ativamente no pós-Brexit e nas mudanças que o abandono do Reino Unido poderá provocar na organização da União Europeia, as duas personagens reivindicam-se de uma contrarrevolução cultural na União Europeia, cujos traços não são ainda bem percetíveis (mas antecipáveis face ao hálito do pensamento das duas personagens). Na raiz do posicionamento dos dois personagens, está obviamente a rejeição do apagamento das identidades culturais nacionais que, segundo o seu entendimento, as migrações de refugiados determinarão para a Europa, e uma mais que certa reorientação da União Europeia atribuindo aos parlamentos nacionais uma participação mais expressiva no processo e sobretudo um controlo mais apertado das decisões comunitárias.

O que é para mim relevante neste movimento é a clara evidência de que um acerto de rumo no projeto europeu com recuo no processo de transferência do poder dos parlamentos nacionais para as instâncias comunitárias está hoje essencialmente ocupado por forças políticas e personagens como Kaczynski e Orban. Ou seja, pensamentos democraticamente genuínos como, por exemplo, o de Pacheco Pereira, que sempre denunciou a precoce, apressada e não escrutinada perda de intervenção dos parlamentos nacionais, tem hoje involuntariamente companhias muito pouco recomendáveis. Por isso, sem certezas nesta matéria, interrogo-me se, no contexto de recrudescimento perigoso dos populismos e nacionalismos políticos, com carga de religiosidade conservadora no caso da Polónia, será hoje possível e benéfica para a Europa como um todo o recuo estratégico na transferência de poderes para as instâncias comunitárias, não ignorando ainda o débil contrapoder que o Parlamento Europeu hoje ainda apresenta. Entre os dois reformismos possíveis, o do recuo na transferência desses poderes e o do aprofundamento das diferentes dimensões da integração política, interrogo-me qual poderá ser o mais virtuoso do ponto de vista dos interesses globais de quem aspira a partilhar uma identidade europeia. É um facto que os figurões Kaczynski e Orban são péssimas companhias para o primeiro movimento. Mas não é menos verdade que no segundo teremos como má companhia a deriva burocrática que vê no aprofundamento da integração política a melhor via de escapar a um escrutínio democrático saudável.

E há aqui por isso uma significativa alteração de contexto. Estamos habituados a situar o reformismo em contraponto a vias mais radicais. Neste caso, o dilema está instalado no seio das próprias posições reformistas. E a revitalização da social-democracia europeia também passa por esta questão.

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