(A entrevista do
juiz Carlos Alexandre à SIC é inequivocamente um momento de televisão-chave
para compreender a justiça portuguesa, e não há dúvida de que no melhor pano cai sempre uma nódoa)
Não sei se por pura
coincidência ou por que carga de razão, após a visita do presidente Marcelo ao
Departamento Central surge a público a entrevista do juiz Carlos Alexandre,
juiz de primeira instância como o próprio com falsa modéstia procurou afastar
algumas perguntas da jornalista da SIC sobre o seu futuro. E trata-se de uma
peça documental de grande relevância política, construída metodicamente pelo próprio
em tons tais que se o homem decidisse abraçar o comando de um partido populista
no dia a seguir à entrevista teria a sua passadeira vermelha lançada pronta a
ser pisada perante o entusiasmo dos que partilham os sentimentos do juiz.
A minha primeira
interrogação diz respeito às razões da entrevista. Porquê agora, tendo em conta
a imagem de autoafastamento e de apego rigoroso à causa que o juiz Carlos
Alexandre tem conservado com resistência e pertinácia?
O juiz mapeou a
entrevista com a reafirmação da sua austeridade, do seu apego workoólico ao
trabalho, do seu isolamento pessoal e profissional, das privações a que se
submete para levar o seu trabalho até ao fim, das suas profundas convicções
religiosas, do seu retorno ao amor da terra que o viu nascer, do remedeio económico
da sua vida face aos empréstimos que tem para pagar (as contas para pagar ao
fim do mês explicam muita coisa, é certo), da resistência às ameaças que terá
sido alvo e sobretudo do lastro de ruralidade austera e campestre que invocou
repetidas vezes com a deixa do saloio de Mação. Posso assustar-me com estas
características pessoais quando elas coexistem com posições de poder exorbitante,
mas isso não chegaria para considerar muito grave a entrevista do juiz Carlos
Alexandre. Certamente que na magistratura portuguesa essas características não
são caso isolado. Mas numa entrevista em que o juiz terá negociado não falar
dos grandes casos que tem entre mãos, a sua analógica referência pela negativa à
situação que a imprensa tem disseminado do ex-primeiro ministro José Sócrates é
malévola e inspira as maiores reservas. Por que carga de água o juiz por duas
vezes teve necessidade de expressar que não tinha amigos que lhe emprestassem
grossas quantias numa mais do que clara alusão às aludidas relações entre José
Sócrates e o empresário Carlos Silva? Num processo em que não há sequer acusação,
o que é que pode significar o juízo moral que marca aquela analogia, sobretudo
quando contextualizada no quadro de uma entrevista em que o juiz acaba por
fazer do seu quadro de vida impoluto, austero e remediado uma espécie de
sistema de valores à luz do qual condena ou deixa de condenar?
Como é óbvio, a dupla utilização
daquele chiste levanta todo um coro de suspeições sobre as razões que levam um
bicho do buraco e fanático pelo seu trabalho a aparecer em público e para se
mostrar aos portugueses. Será que vem aí uma acusação insegura e contraditória
e o juiz pretende obter na opinião pública cobertura para os resultados
insuficientes do seu trabalho? Ou será que o juiz está simplesmente a
defender-se com uma onda de simpatia populista face ao número de cabeças que poderão
rolar com a concretização dos processos que tem em mãos?
O recurso ao duplo
chiste contra José Sócrates atribui todo um outro significado à afirmação dos
valores pessoais e de vida que o juiz Carlos Alexandre quis transmitir com a
entrevista. Como já me fiz compreender, considero que o segundo mandato de José
Sócrates é uma verdadeira deriva de poder e tenho a intuição como muitos outros
portugueses de que é na complexidade das relações de Sócrates com o BES e com a
PT que iremos encontrar manifestações mais evidentes dessa deriva. Quanto ao
sistema de valores que terão marcado a vida complexa de Sócrates estou-me nas
tintas enquanto isso se mantiver na esfera estritamente privada. Do mesmo modo,
bem pode o juiz Carlos Alexandre ser o austero mais remediado deste mundo que a
única coisa que me interessa é se constrói acusações em função do rigor da
investigação e da lei ou se, pelo contrário, deixa essa prática ser contaminada
pela aversão que mantém face aos que assumem valores contrários aos seus.
Com o duplo chiste que
deixou na entrevista, o juiz Carlos Alexandre abre toda uma série de vias possíveis,
a maior parte das quais não é saudável para a justiça em democracia e
passível de escrutínio político. O Presidente Marcelo vincou recentemente e na
intervenção que poderá ter sido a menos cacofónica das suas tomadas de posição que é necessário os agentes
da justiça, mesmo antes das forças partidárias, se movimentarem para um pacto
de longo prazo na justiça. Com a sua entrevista, o juiz Carlos Alexandre
abalroou seriamente as pretensões do Presidente.
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