(Os sinais de
rejeição do outro e da diferença estão cada vez mais ativos numa Europa incapaz
de lidar com os demónios que libertou, e sabemos que o pior da natureza humana tenderá a fazer o resto)
Esta semana trouxe novos
elementos a uma tendência que é larvar, que tem grassado pela Europa, sobretudo
a partir do momento em que começou a revelar séria incapacidade de lidar com os
demónios que vai libertando.
Os acontecimentos de
Calais em que um grupo relevante de residentes ou de atores que operam
economicamente nesse território (agricultores e camionistas) se manifestam
contra a proximidade a um centro de refugiados ansiosos por pisar terras
britânicas que não para de aumentar, sob os olhos da impotência das autoridades
francesas, marcam o início das manifestações territorializadas. Um dado
território rejeita uma concentração de refugiados por considerar que ela é
incompatível com as características da sua atratividade. É uma etapa clara.
Claro que ainda ontem os ativistas do movimento de protesto se apressaram a
reafirmar que nem são racistas nem apoiantes da Frente Nacional. Sabe-se,
entretanto, que Calais é uma das cidades em que a Frente Nacional de Marine Le
Pen alcançou um dos seus melhores resultados. Há também evidências de que a
segurança nas imediações da “selva” de Calais (que tem planos de
desmantelamento sucessivamente adiados) tem vindo a deteriorar-se
inapelavelmente, aí campeando organizações de tráfico de seres humanos que
emergem naturalmente em torno destas concentrações.
Calais é bem o resultado
de um problema, a emigração descontrolada combinada com a crise dos refugiados,
em cima do qual se abrigam a inação política e a incapacidade da União Europeia
que envolve dois países (com o BREXIT o problema muda de figura), a França
(como local de passagem para a outra margem) e o Reino Unido (como destino
desejado dos migrantes). Esta combinação é cumulativa e interdependente. A
partir de uma dada escala de intensidade e expressão territorial do problema,
ela tende a gerar a libertação dos X-demónios da rejeição e da autodefesa, o
que significa que está descontrolado. Sabemos que a capacidade de tolerância
para com estas situações é muito diferenciada entre as sociedades. Veja-se, por
exemplo, a espantosa capacidade de acolhimento do território grego, o que não
significa que aí não se vivam situações descontroladas.
Negar que o descontrolo
destas situações tem necessariamente consequências políticas tenderá a agravar
as incongruências que se abatem sobre o problema. A Frente Nacional explorará
até à medula o seu posicionamento político em Calais.
Noutro plano e não
relacionado com a “selva” de Calais, mas antes com a crise dos refugiados na
Alemanha, a derrota da formação política de Merkel na sua região de origem
(salva por um acordo possível com o SPD) para o partido populista e xenófobo do
Afd marca uma outra fase da escalada política suscitada pela decisão de
abertura das fronteiras alemãs aos refugiados. Estou em crer que a aliança
CDU-SPD poderá resistir a esta escalada, embora mitigando a abertura e
procurando evitar que ela seja empolada por uma desigual distribuição de
refugiados pelo território europeu. Também a consolidação das forças políticas
populistas e xenófobas faz parte da emergência dos X-demónios, pois instala na
luta democrática as consequências do medo do outro, da insegurança, da quebra
da tolerância e da solidariedade.
Sem uma resposta
consistente na origem, na fonte dos problemas e do êxodo migratório, a
globalização designadamente da comunicação jogará sempre a favor da propensão à
saída. Fiscalizar e reprimir violentamente os mecanismos de tráfico ilegal de
pessoas poderá minimizar o problema. Mas há algo aqui de semelhante com a
teoria das migrações entre o campo e a cidade, há tanto estudadas por
economistas como Arthur Lewis ou Michael Lipton. Enquanto subsistir o gap de
rendimentos possíveis entre o campo e a cidade, ainda que minimizado pela baixa
probabilidade de encontrar emprego nesta última, a migração será sempre
“racional”. Assim também, enquanto na origem subsistirem os países inviáveis, a
guerra sem tréguas, a descida aos infernos do valor da vida humana, haverá
sempre um traficante a explorar o desejo natural da migração para a
sobrevivência, mesmo com ela associada uma elevada probabilidade de morte. E
não podemos esquecer que o ocidente andou a mexer onde não devia.
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