segunda-feira, 31 de maio de 2021

PASSO A PASSOS

(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

 

Sempre considerei Passos Coelho um simples homem normal. Algo mais politicamente corajoso do que a média dos seus companheiros de profissão, talvez, mas notoriamente incapaz de poder ser encarado como criador e portador de uma visão para o País. Dito isto, o certo é que o que temos vindo a observar nestas semanas, com especial enfoque no que foi o lamentável espetáculo do Congresso do MEL (“Movimento Europa e Liberdade”, também conhecido como o Congresso das Direitas), tende a conduzir-me para uma outra perspetiva de análise: aquela segundo a qual em terra de cegos, quem tem um olho é rei. Porque em Rui Rio, a quem cabia propor diferente, já poucos são os que acreditam como potencial líder de uma qualquer alternativa à crescente frustração socialista, Chicão é uma ridícula inexistência, Cotrim é esforçado mas vive limitado pelo colete de forças de um liberalismo económico estrito e desligado da realidade e Ventura não passa de uma bolha cheia de ar que, cedo ou tarde, rebentará sem honra nem glória (assim o espero, embora este caso do “Chega” devesse merecer outros contornos de leitura que deixarei para futuro post). E olhando o médio prazo (pós-autárquico), e para um quadro em que Rio possa ter sido derrotado a ponto de ter de voltar para casa, também não se vislumbram hipóteses substitutivas promissoras — Moreira da Silva não tem o carisma necessário, Rangel só quer jogar quando está certo de ganhar e Moedas surgiu para o tentar ser mas mostra-se desesperantemente ingénuo na captura a que se prestou por parte de um aparelho sem baias de serenidade política; pelo que Passos estará a pensar bem quando se guarda mais para a frente, para uma altura em que Costa já tenha partido (seja por espírito de missão europeia seja por perda de aceitação eleitoral) e em que mais clarificação exista quanto aos ombros internos e externos que carregarão o seu andor — um cálculo que faz sentido, mas que pode também conter riscos que hoje não se vislumbram a olho nu. 

(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)

A ORIGEM DO CORONAVÍRUS E A NOVA GUERRA FRIA

(Klaus Stuttman, http://www.tagesspiegel.de)

(Ilias Makris, http://www.kathimerini.gr) 

Subitamente, a questão maldita da genealogia do coronavírus, tão provocatoriamente impulsionada por Trump, voltou à superfície. É duvidoso que algum dia se consiga saber com um elevado grau de certeza se o vírus nasceu de um erro ocorrido em laboratório chinês ou de uma veiculação por parte de um qualquer animal. Por isso, o ressurgimento da questão tem necessariamente que se lhe diga, mas não tanto na esfera científica quanto predominantemente no plano político e geoestratégico — segundo alguns entendidos dotados de fontes bastante fidedignas, Biden terá decidido adotar mais esta linha de confronto com Beijing, tornando-se assim um seguidor pontual (muito firme, embora mais moderado na palavra e nas variações) da estratégia de responsabilização da China explorada à saciedade pelo seu antecessor; as suas razões são do foro da rivalidade radical e muito repartida entre as duas potências que disputam o comando da ordem económica internacional em gestação; e num momento em que os argumentos em favor da supremacia chinesa parecem querer ganhar alguma dominância (também porque há muito quem minimize, erroneamente, as imensas contradições e algumas debilidades do gigante asiático), os conselheiros americanos tendem a defender a justeza de se aproveitarem todas as possibilidades de rebaixamento e descredibilização do campo chinês.


BORIS E DOMINIC

Já aqui falamos da zanga histórica que se abateu sobre a cúmplice dupla britânica de ex-best friends forever, Boris Johnson e Dominic Cummings. Volto ao assunto à boleia de uma leitura de fim de semana — “Desamigados” de António Mega Ferreira, uma abordagem interessante aos contornos de onze amizades famosas que acabaram mal (César e BrutoDante e CavalcantiVoltaire e Frederico da Prússia; Bocage e Macedo; Wagner e Nietzsche; Wilde e Alfred Douglas; Freud e Jung; Hemingway e Fitzgerald; Nabokov e Edmund Wilson; Sartre e Camus; García Márquez e Vargas Llosa) pretextada pela estonteante banalização das (des)amizades hoje permitidas pelas redes sociais. O retorno também se justifica pela ferocidade e gravidade das acusações proferidas por Cummings na semana transata (especialmente, as de tens of thousands of people died who didn’t need to die e de being unfit to lead the country) e reproduzidas em manchete de todos os grandes jornais britânicos e não apenas nos respetivos tabloides. Sendo que o visado primeiro-ministro procurou apagar devidamente as suas mágoas nada menos do que com um terceiro casamento celebrado junto de uma jovem de 33 anos.



(Morten Morland, http://www.thetimes.co.uk)

A CORRESPONDÊNCIA INTELECTUAL DE CELSO FURTADO

 

(Celso Furtado e o Brasil estão na confluência de uma das grandes contradições da minha formação, essencialmente auto, em economia do desenvolvimento. Se há país em concreto que mais tenha estudado nesse processo de acumulação de conhecimento é seguramente o Brasil e nunca tive oportunidade de o visitar. A publicação da correspondência intelectual de Celso Furtado entre 1949 e 2004 pela mão e sensibilidade inultrapassáveis de sua mulher Rosa Freire d’Aguiar pela editora brasileira COMPANHIA DAS LETRAS faz-me mergulhar num tempo de formação que me deixou largas saudades e perceber a ambiência intelectual de elevado nível em que Celso Furtado se movia.)

Acabo de receber o livro e por isso ainda não tenho ainda investimento de leitura suficiente para me abalançar a uma visão mais abrangente da correspondência. Quando pelo Facebook de Rosa Freire d’Aguiar, que tive o extremo prazer de conhecer em Serralves numa apresentação que fiz de um livro póstumo de Celso Furtado em que ele escreve sobre a sua experiência como ministro da Cultura (por convite do saudoso Artur Castro Neves), tomei conhecimento do livro, troquei umas saudações com a organizadora e percebi que estava ali material de grande relevo, sobretudo a correspondência com Alfred O. Hirschman (um dos patronos deste blogue), mas também de Raúl Prebisch, o primeiro a estudar profundamente como economista o conceito de centro-periferia, Nicholas Kaldor, Fernando Henrique Cardoso, Maria da Conceição Tavares, Francisco Oliveira, Florestan Fernandes e tantos outros. Relembrar estes nomes é para mim percorrer a memória de tantas horas de leitura na FEP e em casa, sobretudo em torno do que Fernando Henriques Cardoso cunhou de “análises concretas de situações concretas de dependência”. Afinal a matéria nunca por ninguém totalmente resolvida da causalidade interna e externa do (sub)desenvolvimento. Mas já nesse tempo se percebia a reverência profunda pelo que Celso Furtado tinha iniciado. Acho que isso não está estudado por ninguém, mas intuo que a publicação em português pela Dom Quixote do hoje esgotadíssimo Teoria e Política do Desenvolvimento Económico tenha deixado marcas para sempre em quem mergulhou na sua leitura.

Quando a Amazon me fez surpresa de galgar o Atlântico num ápice e me trazer o livro (caríssimo) bem mais depressa do que o esperado, fui a quente direitinho às cartas trocadas entre Hirschman e Furtado. O contacto começou em 1960 quando Celso Furtado dirigia a Sudene e Hirschman se mostrou interessado pela experiência de planeamento e de abordagem ao subdesenvolvimento do Nordeste brasileiro. Andarilho do desenvolvimento e do subdesenvolvimento, sempre focado na identificação de sequências aparentemente pouco canónicas de superação do subdesenvolvimento, Hirschman visitou o território, claro que lhe soube a pouco para perceber a dimensão integral do subdesenvolvimento histórico do Nordeste e por isso manteve uma longa correspondência com Celso Furtado não só aquela região, mas também sobre a evolução da própria situação política brasileira até ao malfadado golpe militar de 1964. Hirschman intuía perfeitamente que precisava da sabedoria global, histórico-económica, de Furtado para compreender as razões daquela situação concreta.

Com a devida vénia ao contributo enorme que a edição de Rosa Freire d’Aguiar para a compreensão da evolução da própria economia do desenvolvimento com esta sistematização da correspondência intelectual de um dos seus mestres (que espero venha a ser distribuída em Portugal), fica-me na memória esta preciosidade de Hirschman dirigida a Celso Furtado:

(…) Precisamos de uma análise do que deu errado, quando e porquê. Por que as forças da extrema esquerda na América Latina são tão perdidamente dogmáticas? Por que elas se tornam tão facilmente, e tão depressa, superconfiantes depois dos primeiros sucessos, pensando que podem tratar qualquer pessoa como um bloco reacionário e irremediavelmente equivocado? Por que são tão incapazes de analisar ou perceber as verdadeiras relações de poder? Por que se tornam mais irresponsáveis quando conquistam um pedaço de poder, em vez de ficarem menos, como em geral seria de esperar? Por qur se comportam tão provocativamente em relação a seus inimigos enquanto dificilmente tomam alguma medida destinada a reduzir sua base de poder real? Por que são tão corruptíveis como você mesmo apontou? Quase que parece que devêssemos acrescentar, ao desejo de morte de Freud um “desejo de derrota” profundamente entranhado, que parece ser prevalente entre as forças de esquerda. Posso pensar em várias hipóteses por que seria assim, mas primeiro o fenômeno precisa ser inteiramente descrito e assimilado. Você, Celso, pode dar uma contribuição única para essa tão necessária autocrítica e espero muito que você o fará” (Obra citada, página 263).

Infinitamente grato, Rosa Freire d’Aguiar, por esta profunda arqueologia do saber em torno do desenvolvimento.

domingo, 30 de maio de 2021

TUDO AZUL, PELO MENOS ATÉ VER!

Final da Champions no Dragão, a mais bem disputada dos últimos anos (quer em qualidade de jogo, quer em emoção). Venceu o não favorito Chelsea, mais equipa em termos coletivos, com mais capacidade de variação de jogo, com melhor defesa e com mais soluções ofensivas. E, sobretudo, com dois médios fora de série, N’Golo Kanté (o melhor em campo, simplesmente fabuloso) e Jorginho, e com um treinador muito capaz e em plena afirmação, o alemão Thomas Tuchel que venceu taticamente Pepe Guardiola (incompreensível como este parte para um jogo destes sem um equilibrador no meio-campo!).

 

Além disto, o essencial do ocorrido no relvado, o resto foi o espetáculo nem sempre agradável dos fãs ingleses pela Cidade (apesar de tudo, essa dimensão nem correu mal de todo quando comparada com a habitual selvajaria dos ditos) e o ruído político em torno da realização do evento em terras portuguesas e com assistência de mais de 14 mil adeptos em campo (entre o silêncio comprometido do Governo, enredado nas suas incumpridas promessas de bolhas e demais garantias, os críticos da excecionalidade dirigida a este caso, quando toda a época futebolística nacional foi jogada em recintos fechados ao público e quando a vacinação começa a permitir aberturas relativamente seguras, e as extemporâneas referências negativas de Marcelo ou as deslocadas bocas de Rui Rio). Espero bem que o vírus possa demonstrar que não existiram razões fortes para que a atividade turística da Cidade possa ter tido o benefício de uma dinâmica que já não acontecia há mais de um ano!


 

FRIENDS

 

(Continuo na senda da HBO, hesitei em ceder à nostalgia de regressos ao passado, mas o Friends Reunion é tão tentador que não resisti, afinal trata-se de um monumento da cultura urbana televisiva e relembrá-lo com a competência que só os americanos conseguem imprimir a estas coisas valia o risco. Excelente para uma tarde de domingo mais nostálgica do que o habitual, risco ultrapassado, recomenda-se para os fans da série.)

Numa série que durou 10 anos (de 1994 a 2004), e que ainda resiste em inúmeros canais, fortemente globalizada, é natural que para os admiradores convictos da sua existência os nomes dos personagens se confundam com os artistas que os interpretavam. Por isso, o desafio era enorme. Montar um espetáculo recordatória com Rachel Green (Jennifer Aniston), Monica Geller (Courteney Cox), Phoebe Buffay (Liza Kudrow), Ross Geller (David Schwimmer), Chandler Bing (Matthew Perry) e Joey Tribbiano (Matt LeBlanc) com uns anos e provavelmente uns quilos em cima era um risco grande, com uma probabilidade enorme de se transformar numa xaropada, sobretudo para quem não era fan da série.

Talvez por ter necessariamente uma avaliação declaradamente enviesada, a minha avaliação é que o regresso ao palco, ao script e às condições concretas em que a criatividade da série foi construída por David Crane e Martha Kauffman venceu todos os riscos que poderiam ser à partida identificados.

Dizia alguém no episódio recordatória (a expressão é de David Crane) que o Friends representava aquele momento das novas vidas em que a juventude e os amigos próximos são a nossa família. Eu sei que as críticas mais amargas nos vão cravar com a ideia de que se trata de uma injeção insuportável de nostalgia, mas devo dizer-vos que posso bem com essa chancela.

A construção do episódio é interessante pois ele organiza-se em torno de um “talk-show” ao vivo dirigido pelo impagável James Corden, com os seis intérpretes-personagens sentados no sofá dos convidados e na plateia gente direta ou indiretamente ligada à série, seja nos ambientes do bar ou do apartamento, embora sem nunca limitar tudo o resto. O tempo talvez se note mais neles do que nelas, embora em Jennifer Aniston e em Courteney Cox (mais do que em Liza Kudrow) as sequelas das plásticas se notem aqui e ali. Há seguramente na sequência de testemunhos pontos supérfluos e comercialões (como, por exemplo, a presença de David Beckham), como James Poniewosik pertinentemente o assinala no The New York Times (link aqui), mas há momentos bem conseguidos como o da passagem de Lady Gaga para interpretar com Phoebe o Smelly Cat.

Mas os momentos melhor conseguidos são os que acontecem apenas entre os seis intérpretes que vão desfilando experiências, recordações, curiosidades, gafes e flirts não concretizados (o de Jennifer Aniston e David Schwimmer). O episódio consegue, por essa via, vencer a tentação de ensaiar uma espécie de post-finale, numa série que acabou como tinha de acabar e que por isso qualquer tentativa de reinventar a trama seria, essa sim, uma incrível xaropada.

E o melhor de tudo é que quando o episódio termina todos internalizamos a ideia de que não será repetível, magnificamente em linha com a impossibilidade real de ensaiar qualquer reinvenção da história, anulando o seu final.

É que se a interpretação de David Crane está correta, ou seja se Friends nos traz o tempo em que a ambiência da juventude e dos nossos amigos mais próximos são a nossa família, não ignoro que isso do “Forever Young” é uma grande treta e que os que teimam em permanecer nesse limbo saem regra geral chamuscados da vida.

Por isso, tal como os 10 anos da série o episódio dos Friends Reunion passa a integrar a arqueologia do irrepetível.