(Desculpem o título algo enigmático, mas foi o melhor que consegui engendrar para vos dar conta da súmula de grandes ideias que identifiquei na sessão de um dia de trabalho do Grupo de Aconselhamento Estratégico do Plano Regional de Ordenamento do Território do Centro, para a qual fui amavelmente convidado. Numa sessão apelativa que compensou de longe o afastamento de parte de um sábado dos meus netos, encontrei ideias interessantes, numa espécie de laboratório em movimento de planeamento adaptativo. Oxalá as poucas pessoas presentes que as regras sanitárias permitiram e as que estiveram em causa a seguir a sessão, infelizmente desta vez sem poderem intervir, tenham também achado que valeu a pena sacrificar algumas horas de sol ou outros benefícios.)
É sempre para mim um prazer partilhar tempo e ideias com personalidades cujo estatuto, científico ou institucional, supera de longe o meu, combinado desta vez com a possibilidade de rever gente que me é próxima e com a qual já trabalhei em vários processos (casos dos Professores Carlos Borrego e João Ferrão), sob o acolhimento amigável da Presidente Isabel Damasceno e do Vice-Presidente Eduardo Anselmo Castro. Por vezes, ficam sensações amargas e de perda de tempo desses encontros, mas desta vez houve ali naquelas discussões, mais informais de manhã, em conversa livre, e no almoço e mais organizadas nas intervenções para o público presencial e on line uma inesperada convergência. Não aquelas convergências entediantes do tipo “faço minhas as palavras do meu antecessor na conversa”, mas uma convergência dinâmica em que as intervenções de uns adquirem um significado mais rico lendo a globalidade dos contributos para a discussão. Um exemplo de trabalho coletivo colaborativo e dinâmico, num ambiente que designei na sessão pública de “planeamento esperançoso”, o único que neste momento, chegado aqui, sou capaz e estou interessado em fazer. Foi também um prazer estimulante conhecer de perto e dialogar com o Professor António Costa Silva, sobre o qual hoje muita gente reconsidera palavras menos agradáveis a seu respeito, comparando agora o produto inicial das suas ideias com o que resultou da sempre difícil negociação com as instâncias europeias.
A síntese final do João Ferrão é também em si própria um momento alto da sessão e esta minha síntese para os leitores do blogue é um misto de síntese pessoal com a convocação da brilhante e convincente síntese que o João elaborou naquele registo, que todos apreciamos, de simplicidade e profundidade.
Organizei as minhas próprias experiências daquele sábado coimbrão, que poderíamos designar à falta de melhor de tentar colocar solida e robustamente o Centro no centro, em torno de algumas palavras-chave. O método nem sempre resulta, tamanha é a vulgarização da abordagem por palavras-chave que tem sido operada pelos algoritmos mais sofisticados.
Uma das palavras (ou conjunto das mesmas) marcantes da discussão convergente que ali se produziu foi “momento único”. Eu bem sei que a retórica dos portugueses está cheia deste tipo de expressões. Temos uma propensão extrema para a formalização do absoluto, as nossas coisas são sempre as mais específicas do mundo (quando isso é produto ou da nossa ignorância ancestral ou da falta de mundo). Temos uma queda arrepiante para absolutizar as mudanças, desta vez é que vai ser diferente, o mundo amanhã vai ser diferente, quando nos devíamos consciencializar que o mundo é feito de mudança e que a única diferença é a do nosso próprio tempo em que vivemos. Os momentos únicos fazem parte desse aparato sensorial e linguístico bem português. Por isso, antes de o trazer para a síntese, pensei duas vezes. Mas momento único, porquê?
O planeamento tem idade, faz-se e alimenta-se de ciclos e a partir do momento em que estamos presos nas “delícias envenenadas” da programação comunitária, tais ciclos até apresentam uma dimensão temporal que toda a gente já se habitou a internalizar. Ora, nem sempre a conjugação dos astros é perfeita nesta matéria dos ciclos de planeamento multinível. Muitas vezes acontece que os relógios não estão sincronizados. Planeamento local e regional que nem sempre pode trabalhar com orientações firmes a nível nacional. Excesso de planeamento setorial majestático que não alinha ou não respeita estratégias mais globais. Enfim, uma série de “disfuncionalidades astrais” que nós planeadores reflexivos, que combinam ciência, técnica e prudência, nos habituamos a gerir, mergulhando no contingencial.
Mas a ideia de momento único para o que hoje temos pela frente é irresistível e tentadora. Senão vejamos. Com as suas virtualidades e limitações dos grandes referenciais, temos hoje um Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território (PNPOT) de nova geração, feito a pensar num horizonte 2030 e picos, que aguarda os exercícios regionais para lhe dar vida e configuração mais concretas. Temos um período de programação comunitário plurianual a começar, com agendas e ambições europeias muito claras. Temos um Plano de Recuperação e Resiliência que fruto da inteligência do António Costa Silva se destina (muita gente o ignora) a concretizar no país o Next Generation EU. Temos Agendas e Estratégias Regionais NUTS II preparadas para um novo ciclo de investimentos. Temos novas Estratégias Regionais de Especialização Inteligente NUTS II preparadas para impulsionar um novo ciclo de inovação. Temos recursos financeiros para aplicar com sabedoria, esperando que a febre da execução a todo o preço não se sobreponha a toda a racionalidade não burocratizada. Temos “planners” mais maduros e aprendentes e instituições envolvidas mais robustas.
Não é isto um momento único? Estarei eu também a inebriar-me com o absoluto?
A segunda palavra foi alinhamento (dialético). Na governação e planeamento multinível há várias lógicas que conflituam. De cima para baixo, majestático ou impositivo. De baixo para cima, por vezes anárquico, impetuoso e sem pensar a transição a partir do presente e esquecendo o contexto. A glória do planeamento impositivo e descendente é atingida quando os níveis inferiores de planeamento internalizam criticamente orientações superiores, sejam elas europeias ou nacionais. E há o caminho mais difícil para um alinhamento inteligente e dialético. Este caminho só é possível quando se conjugam duas coisas muito difíceis de alcançar: estratégias robustas e solidamente participadas e visão estratégica e territorial dos níveis superiores. Desculpem aqui puxar de galões, mas acho que fui eu a cunhar o conceito de Territorialização de Políticas Públicas, num trabalho elaborado para a Secretaria de Estado do Desenvolvimento e Direção-Geral respetiva em 2010 e depois por mim publicada em algumas revistas, designadamente no Compêndio de Economia Regional elaborado pela APDR.
Na sessão do passado sábado, falou-se muito de alinhamento inteligente e dialético e do papel que o PROT Centro futuro pode assumir nesse desígnio. Um dos exemplos desse alinhamento inteligente é de minha lavra na sessão e respeitou à minha proposta de equacionar conjuntamente processos de gestão pública e coletiva de mão-de-obra migrante (indiferenciada e de qualificações elevadas) e estratégias de promoção da resiliência territorial. Ambição para o PROT Centro que eu espero tenham eco na sua preparação. Esta semana animarei um debate interno na Quaternaire sobre esta matéria. Seguirei acompanhando o tema no blogue.
A terceira palavra, policentrismo, encontrou-a amavelmente o João Ferrão na sua síntese. Tenho para mim que o planeamento na região Centro estagnou nos últimos anos em torno da reivindicação do seu modelo policêntrico. Essa estagnação deveu-se quanto a mim a dois fatores essenciais: por um lado, quedou-se pala dimensão do sistema urbano (policêntrico); por outro lado, ao contrário do observado noutros territórios europeus também policêntricos, não teve à sua disposição a massa de investimento público suficientemente elevada para fazer a diferença. Ora como o João Ferrão identificou na minha intervenção, há outras dimensões a ter conta e defendo mesmo que só por essa via o Centro pode ultrapassar a estagnação em que o policentrismo está mergulhado. A dimensão das infraestruturas para a competitividade e internacionalização, a dimensão da territorialização do Sistema Regional de Inovação Centro, sobretudo na perspetiva e na medida em que se organizar territorialmente em torno do tecido de PME e o papel que o novo Plano Nacional Ferroviário pode desempenhar são novas dimensões a integrar na revitalização do policentrismo da Região. Só por essa via se poderá mitigar a sempre instável tensão que se abaterá sobre a Região decorrente da expansão natural das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, respetivamente para norte e para sul.
Um sábado estimulante para o revigoramento e desenvolvimento de ideias que me são caras, em que trabalho profissional e intelectualmente. E também o prazer de usufruir da longa sabedoria do António Costa Silva, do Carlos Fiolhais (pronto para acolher uma ideia de Agência e de Agenda Regional de Ciência e Tecnologia, que bem aprecio) e do Carlos Borrego numa intervenção desafiante sobre o que pode ser um modelo regional com um Pacto para o Clima. Nunca ninguém como o Carlos Borrego a confrontar-nos com ideias como esta: os data centres de que hoje a Internet das coisas se alimenta fartamente são fortes emissores com efeito de estufa e há elementos mais nocivos do que o dióxido de carbono como por exemplo o Óxido Nitroso (N2 O), fortemente ligado às emissões agrícolas.
Com gente lúcida, sabedora e descomprometida é que a gente aprende.
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