(O velho e desaparecido Consenso de Washington)
(Que os tempos são de mudança, parece que ninguém tem dúvidas, ainda que continuemos mergulhados nas interrogações sobre o que as economias e as sociedades irão ser nos pós-pandemia. Mas nestas ocasiões é muito frequente surgirem proclamações de grande alcance a que normalmente correspondem generalizações abusivas e analogias forçadas. Cada um de nós, em medidas diferentes consoante o nosso entusiasmo e adesão a tais ideias, comete a sua travessa generalização abusiva e eu próprio, certamente, a escrever diariamente praticamente sem interrupção, já as terei cometido.)
Quero no post de hoje referir-me a algumas dessas proclamações pretensamente definitivas, apresentadas como novas verdades ou novos princípios que tenderão a governar o mundo. Não como expiação de algum deslize no sentido de uma generalização menos convincente em que me tenha atravessado, mas pelo simples prazer de as discutir.
Quando essas proclamações ou “statements” revestem a forma de uma analogia histórica com figuras ou acontecimentos do passado, o risco aumenta. A razão é simples. O mote da analogia está no passado e já foi provavelmente objeto de estudo aprofundado. Ora, quando se compara essa aquisição do passado com algo que estamos no presente a viver e a experimentar-lhe os danos ou os benefícios é bem natural que a força da comparação se sobreponha a uma avaliação rigorosa dos termos em que estamos a aplicá-la. Convém, entretanto, não perder de vista que a comparação de algo muito presente com o passado, pressupostamente já muito estudado, pode trazer novas nuances ao estudo desse passado. A obra que conheço melhor com um confronto, por exemplo, entre a Grande Depressão de 1930 e a Grande Recessão de 2008, é a de Barry Eichengreen (Hall of Mirrors – The Great Depression and the Great Recession and the uses - and misuses – of history, Oxford University Press, 2015). Não ousaria dizer se a reinterpretação da Grande Depressão por parte de Eichengreen foi ou não influenciada pela comparação com a outra grande crise, já no nosso tempo. Mas é uma hipótese a considerar, a história económica comparativa traz essa possibilidade, sobretudo porque em cerca de 80 anos a própria teoria económica evoluiu. Há dias, relia um artigo seminal sobre a Grande Depressão de autoria de um dos seus mais lúcidos intérpretes, Ben Bernanke (“The macroeconomics of the Great Depression – a comparative approach”, publicado em 1995 no Journal of Money, Credit and Banking) (link aqui) e interrogava-me se Bernanke (que esteve à frente do FED antes de Janet Yellen entre 2006 e 2014) teria uma outra interpretação se tivesse elaborado o artigo após a experiência da Grande Recessão de 2008.
Vão compreender melhor a razão desta longa introdução quando apresentar o primeiro caso de uma proclamação provavelmente abusiva e fruto do tempo em que nos encontramos.
A esquerda, em que neste caso me incluo sem reservas, está um pouco espantada com o início fulgurante da administração Biden. Parece indiscutível que o velho Biden, apesar de tropeçar nas escadas do avião presidencial, tem revelado uma frescura de ideias digna de espanto, tanto mais pronunciado quanto mais o compararmos com a tragédia caricata de quem o antecedeu. Em meu entender, Biden percebeu e bem que as duas matérias fundamentais sobre as quais o capitalismo tem de ser necessariamente reparado (fixing capitalism) são a questão climático-ambiental e a desigualdade, ambas contraditoriamente colocadas pela pandemia em plano de destaque. Nenhuma e nunca outra figura política percebeu tão bem as ligações entre as duas matérias. Recordem-se que Macron teve o poder em risco por ter querido abordar a questão ambiental sem integrar a questão da desigualdade. Iniciar uma Administração com este alcance não é para muitos.
Ora, muita gente embalada com esta evidência já proclamou que Biden é o novo F.D. Roosevelt para a sociedade e para a economia americana. Entendo que a magnitude do pacote de estímulos com que Biden avançou para gestão da pandemia e as medidas sociais complementares por que se tem batido sugerem essa comparação. O historiador americano Eric Rauchway acaba de publicar em abril um livro poderoso para compreender o realismo da analogia em que Biden está colocado: “Why the New Deal Matters”(link aqui). O New York Times (link aqui) através de um artigo de 16 de abril chama a atenção para o alcance poucas vezes referido do New Deal Rooseveltiano, segundo o qual ele é muito mais do que um programa de recuperação para a economia, sendo antes um verdadeiro programa de recuperação da democracia americana. Este é talvez uma matéria que desperte a atenção do historiador Rui Tavares que é Portugal uma das raras pessoas a trazer para a reflexão política o alcance do New Deal.
O meu ponto é por conseguinte este. A analogia do programa de Biden com o New Deal tem uma dimensão de fácil agilização que é a da dimensão do estímulo económico. Mas como Rauchway bem o compreendeu, o New Deal é bem mais do que isso, é algo que teve que ver com o ressurgimento da democracia americana, devastada pela Grande Depressão e os seus efeitos. E, por conseguinte, a interrogação está em saber se o espírito amplo e global de Roosevelt continuará ou não a ser a inspiração dos Democratas, hoje aparentemente unidos em torno de Biden e Harris.
Em grande medida relacionado com este statement sobre a figura de Biden que emerge do início do seu mandato, há quem proclame estarmos prestes a estabelecer um novo consenso sobre a gestão da política económica a nível mundial.
Já me referi a esta matéria a propósito da revisitação da política fiscal que a gestão da pandemia veio proporcionar. Certamente que vos gerou espanto a atenção prestada pelo FMI ao comportamento da despesa pública na abordagem à pandemia. Não para a vigiar nos termos do seu impacto no défice público e no peso da dívida pública no PIB, mas para medir se os países estão a fazer (mais propriamente a gastar) o que deveriam para o mais eficazmente possível combater os efeitos económicos e sociais da pandemia. Certamente que vos é estranho ver o Vítor Gaspar dos tempos da Troika a alinhar com esta nova posição do FMI. Neste contexto, o muito conceituado Martin Sandbu não hesitava no Financial Times de 11 de abril (link aqui) em proclamar que “a new Washington consensus is born”.
Fortemente crítico dos efeitos nefastos que o Consenso de Washington provocou à globalização e da pretensão em homogeneizar a gestão da política económica de cada país em economia aberta, não me apanham facilmente no endeusamento de um novo Consenso. O raciocínio é demasiado linear para meu gosto. Biden trouxe de novo os EUA à discussão da arquitetura mundial. Biden está atento aos desafios da mudança climática e do combate à desigualdade. A política fiscal está reabilitada. Logo, um novo Consenso de Washington é possível, longe das malhas do neoliberalismo económico. Mas o raciocínio não me impressiona. O “aftermath” da pandemia vai ser terrível, económica e socialmente falando, para muitos países. A reforma da globalização está por fazer e o peso da dívida não vai evaporar-se como que por magia. O ambiente está mais respirável, Biden abriu algumas janelas e arejou as coisas, mas a ameaça climática está aí e a indiferença mundial persiste. Há dias li que a Amazónia brasileira está prestes a emitir mais do que sequestra gases com efeito de estufa, valendo ainda a restante Amazónia (não brasileira) para compensar. Bolsonaro está aí e os interesses que ele representa também. É uma mera ilustração dos problemas que subsistem.
Nada está ganho.
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