quinta-feira, 6 de maio de 2021

A VERTIGEM DA POLÍTICA

 

                                                                    (Pinto&Chinto - VG)


(Finalmente e com atraso face ao interesse que este blogue tem dedicado ao tema, a situação política espanhola parece interessar ao comentário político e ao jornalismo português. Já não era sem tempo. Isso não significa, porém, ceder o passo às analogias fáceis e desmioladas. Significa tão só que a política espanhola está no centro de algumas das tendências da política contemporânea. Quanto a nós, temos de contar com o habitual jet lag da história que nos atinge. Mas, ainda assim, convirá não estarmos distraídos. É que uma das características da política contemporânea é a vertigem e a erosão rápida. E essa pode não padecer de jet lag.)

As duas imagens que inspiram este post, o chiste gráfico de Pinto&Chinto na Voz de Galícia e o tweet de Jordi Évole, conhecido pela apresentação de um programa político-humorístico na La Sexta, televisão espanhola que é vista na raia portuguesa, estão umbilicalmente ligados ao furacão Isabel Díaz Ayuso e à sua vitória eleitoral nas eleições do 4-M em Madrid.

Uma das raízes mais inspiradoras da força eleitoral revelada por Ayuso, que não foi devidamente compreendida pela fraturada esquerda madrilena, e direi mesmo que chegou pela mesma a ser ridicularizada, consistiu na prova de fé realizada na chamada “tabernidade” da cultura madrilena. Daria para toda uma tese de sociologia urbana a comparação aprofundada entre os valores da “tabernidade” (a vida e a cultura dos bares madrilenos) e da “movida” dos tempos do singular e carismático Tierno Galván. Numa primeira comparação a que me abalanço (desculpem lá os meus colegas sociólogos esta minha audácia), poderá dizer-se que enquanto a “movida” aparecia profundamente ligada a uma cultura de modernidade urbana, dirão alguns apropriada por alguma elite mais qualificada, a “tabernidade” representou no projeto eleitoral de Isabel Días Ayuso um apelo aos valores mais tradicionais da Cidade e, espantemo-nos, uma invocação da liberdade face ao Estado. É que a defesa dos valores da “tabernidade” veio, imaginem, associada a uma espécie de resistência libertária contra a gestão da pandemia baseada em processos de confinamento rigoroso. Esta foi uma das matérias do confronto violento entre Ayuso e o governo central de Madrid, opondo-se sistematicamente a primeira à política central, numa lógica que eu diria suicidária (e o excesso de mortes está aí a confirmá-lo), mas que surge totalmente apagada pelo estrondoso resultado da vitória eleitoral da intrépida e insinuante Ayuso. A líder da Comunidad de Madrid ensaiou mesmo no plano internacional uma campanha de raiz libertária sobre as virtualidades da abertura madrilena em plena pandemia. Por isso, assessorada por alguém que foi muito próximo de Aznar, Miguel Ángel Rodriguez, Ayuso apresentou uma campanha eleitoral que praticamente se centrou na palavra “liberdade”, o que mais adensa a profundidade do que esteve em jogo nestas eleições.

De facto, não estamos por cá habituados a lideranças políticas com esta audácia e capacidade de risco (a própria antecipação do ato eleitoral é de um risco inaudito) e tudo indica que a fraturada esquerda madrilena também não o terá plenamente compreendido. Não deixa de ser curioso que as duas únicas lideranças políticas que saem reforçadas do 4-M estão ambas, embora contraditoriamente, ligadas às incidências da gestão da pandemia em Madrid, ambas mulheres, o que também pode ser um sinal dos tempos futuros, Ayuso com a sua propensão libertária e Mónica García (Más Madrid) que bem identificou os danos da gestão operada por Ayuso e consegue a proeza de ultrapassar em votação o consistente mas pouco apelativo Gabilondo (PSOE) que fora o candidato mais votado em 2019.

Tudo isto está profundamente ligado à vertigem em que a política contemporânea se transformou, vertigem que significa sobretudo erosão rápida de personagens, protagonistas e projetos.

É nesse campo que eu entendo o tweet de Jordi Évole como um monumento de perspicácia política. A imagem recorda-nos uma entrevista do tal programa SALVADOS aos dois emergentes promissores da política espanhola de então, Pablo Iglésias (PODEMOS) e Albert Rivera (CIUDADANOS). Ora, ambos pereceram face à vertigem da erosão política dos nossos tempos. Iglésias retira-se da vida política (aparentemente pelo menos) no rescaldo das eleições de 4-M com um resultado que não deve andar muito longe do que o PODEMOS representa hoje no espectro político espanhol. Rivera já se retirou há mais tempo, quando depois de ter passado ao lado do comando da política espanhola, viu o CIUDADANOS da agora líder Inés Arrimadas (outra que se sujeita ao desaparecimento pela vertigem) desaparecer do mapa parlamentar madrileno, estancando assim a sua promissora modernidade. Ambos os personagens representam surtos eleitorais que se evaporaram com a espuma acelerada dos dias de hoje.

A grande questão a colocar é se a própria libertária Ayuso poderá ou não ser vítima da mesma vertigem. Já se percebeu que a audácia, o risco e a própria modernidade de Ayuso não compaginam bem com os valores do grande navio que é o PP espanhol. Casado, atual líder e também personalidades como o sempre vitorioso Nuñez Feijoo na Galiza estão para esse PP mais alargado como Ayuso está para uma nova direita da qual não se conhecem ainda os contornos mais definitivos mas que não estão seguramente no coração modal do PP. Tudo isto pode ser efémero e pertencer ao mundo da vertigem política. Mas também podemos estar a viver no centro de uma daquelas mudanças que só daqui alguns anos outros entenderão melhor, porque terão mais dados.

Cotejando com os nossos próprios escolhos, apetece-me dizer que tudo isto é estranho à nossa política em jet lag. Mesmo que quiséssemos respeitar a peça, o autor e o enredo teríamos dificuldade em selecionar os intérpretes e que nem com um alargado casting não chegaríamos lá. Comparando Rio, Rodrigues dos Santos e Ventura com a audaz Ayuso a frustração é evidente, por mais ameaças que a insinuante líder madrilena nos inspire. Também o caráter inorgânico do PODEMOS e o radicalismo de Iglésias não têm confronto possível com o bem mais domesticado Bloco. E por mais taticista que António Costa tenha vindo a apresentar-se não tem comparação possível com o errático Sánchez, ganhando o PSOE num conjunto de mulheres-ministras que por cá não abundam (veremos a evolução de Mariana Vieira da Silva). Chega versus VOX também nos penaliza. E do lado de lá não há PCP, para o bem (estabilidade e confiança) e para o mal (inércia).

Mas até que enfim a situação política espanhola tem a atenção que merece.

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