domingo, 30 de junho de 2019

NA MODORRA ALGARVIA A PREPARAR AVEIRO



(A sessão inaugural do Congresso da Associação Portuguesa do Desenvolvimento Regional – APDR aproxima-se a passos largos e, por isso, há que encontrar espaços e inspiração na modorra algarvia. O tema é o da prospetiva da política regional, combinando o que se passa lá fora com o que pode passar-se cá dentro.)

Não tenho bem a certeza mas provavelmente estarei no grupo dos cinco associados mais antigos da APDR, o que não augura muito boa coisa, mas é a vida, prolongada com a melhor qualidade de vida possível. A Universidade de Aveiro acolhe este ano a Conferência anual da APDR e na companhia de Artur Rosa Pires, João Ferrão e João Marques lá estarei no dia 4 de julho, pela manhã, regressado da modorra algarvia, para uma intervenção no painel que abre os trabalhos do Congresso. 

O painel inicial pretende fazer uma ponte com o primeiro Encontro da APDR, realizado em maio de 1990, sob o tema ““ Dinamismos territoriais e Políticas de desenvolvimento local e regional em Portugal: Avaliar os anos 80, Perspetivar os anos 90”. Artur Rosa Pires dissertará sobre as esperanças e expectativas alimentadas pelo Encontro inicial. O João Ferrão analisará oque entretanto se passou. O João Marques tratará da bibliometria, analisando a investigação que tem sido feita durante este interregno. Este vosso amigo tratará da prospetiva destas coisas: o que poderemos esperar solida e fundamentadamente desta relação estranha que a política regional em Portugal tem mantido com a política europeia, num quadro que designo de comportamentos de adicção e dependência para além dos limites do saudável. Esperaria que o painel inicial refletisse uma maior juventude das questões regionais em Portugal, comigo próprio disposto a ceder o palmo a gente mais nova, que tem a pesada responsabilidade de prolongar a comunidade de práticas das políticas regionais, claramente alicerçada em Portugal a partir da academia. Assim quiseram os organizadores e pelo apreço que tenho por uma associação que ajudei a fundar a partir da Faculdade de Economia do Porto e das minhas incursões pelo planeamento.

Por isso, a conferência tem sido preparada quer em sessões muito matinais, quer principalmente na hora sagrada da modorra algarvia, que situaria entre as quinze e as dezassete. O meu estatuto cada vez mais declarado “copinho de leite” relativamente ao sol e à frequência da praia e do mar, cada vez mais incomodado pelo rasto que os protetores solares deixam na pele, tem facilitado os trabalhos, embora penalizado pela fraquíssima conectividade do meu posto móvel da NOS. Mas a verdade é que não nasci para peixe e muito menos para jibóia esparranhada e derretida ao sol, pelo que talvez seja para mim mais fácil combinar modorra e reflexão.

A minha reflexão para Aveiro parte de um juízo, a política regional em Portugal tem um comportamento adictivo em relação à europeia e esta última tem evoluído em grandes fases que se sucedem sem uma completa e fundamentada compreensão dos resultados alcançados. Uma primeira fase marcada pelos princípios da convergência socioeconómica, mais económica do que social pois esta tem que se lhe diga em termos de operacionalização. Uma segunda fase em que o Tratado de Lisboa introduziu os temas do crescimento e da inovação e do emprego. E, nos tempos que correm, a época do crescimento adjetivado, inteligente, sustentável e inclusivo. É notória a evolução no sentido dos temas da inovação e da competitividade, o que é paradoxal pois entretanto o conceito de coesão territorial passou a integrar os tratados europeus. As políticas de coesão nunca mais foram capazes de descalçar esta bota.

Imaginem pois a quadratura do círculo que significa assistir em ambiente de adicção à evolução da política regional europeia e das políticas de coesão, materializando uma sucessão de paradigmas em que é cada vez mais difícil integrar e resolver o problema da coesão territorial e tendo que simultaneamente resolver os nossos próprios problemas:

·        Construirmos um território mais equilibrado com um mais amplo, espacialmente falando, aproveitamento de recursos, o que tendo a designar por uma mais ampla base territorial de competitividade;
·        Resolvermos o problema da baixa produtividade das nossas regiões mais dinâmicas para além de Lisboa (Norte e Centro).

O desenvolvimento da minha reflexão passa, numa segunda e terceira parte da intervenção, por analisar: primeiro, as ainda inconsequentes tentativas de subordinar as políticas de coesão a uma abordagem não circunscrita aos paradigmas atrás referidos centrados nos temas da inovação e da competitividade e antes informada por princípios de ordenamento do território para dar resposta aos conceitos de desenvolvimento e de coesão territorial; segundo, as dificuldades inerentes à aplicação das chamadas políticas “place-based” à luz do trade-off entre os objetivos de eficiência e de equidade.

Mas isso é matéria do post de amanhã.

NÃO A UM CAMALEÃO PARA O BCE!

(cartoons de Joe Cummings, http://www.ft.com James Ferguson, http://www.ft.com)

(Rytis Daukantas, https://www.politico.com)

A ambição leva facilmente à perda de limites e ao correspondente ridículo. Quem não se lembra das posições agressivamente críticas do falcão Jens Weidmann, governador do Bundesbank, sobre a expansionista política monetária europeia conduzida por Mario Draghi? Posições que foram até ao ponto de testemunhar no Tribunal Constitucional da Alemanha contra o programa de compra de ativos por parte do BCE e de liderar a contestação ao mecanismo OMT (Outright Monetary Transactions). Afirmava ele em 2012: “Vejo um certo número de argumentos contra o programa. Eles incluem princípios de estabilidade política e a questão de saber se o banco central tem um mandato democrático para adotar uma medida dessa natureza”.

Pois é. O dito vem agora dar o dito por não dito, ou melhor, sentar-se comodamente à sombra das decisões judiciais de então (“O Tribunal de Justiça Europeu examinou a OMT e determinou que ela seja legal. Além disso, a OMT é a política em curso.”) para se justificar (“A minha posição, no entanto, não era legalmente fundamentada. Foi impulsionada pela preocupação de que a política monetária poderia ser capturada na esteira da política orçamental. É claro que um banco central deve agir de forma decisiva no worst-case scenario, mas dada a sua independência não deve haver dúvidas de que está a agir dentro do quadro do seu mandato.”) e assim procurar a reabilitação que lhe possa garantir a tão desejada nomeação para o lugar ainda ocupado por Draghi.

O presidente francês é que não esteve com papas na língua ao vir produzir a seguinte declaração: “Estou muito feliz, realmente muito feliz, que membros que se opuseram fortemente à decisão de Mario Draghi, e até desenvolveram uma ação legal contra o mecanismo OMT que foi implementado, se estejam a converter, embora tardiamente. Acho que tal mostra que há bem em todos nós... e tal reforça o meu otimismo na natureza humana.” Na mouche! Uma denúncia cabal do oportunismo do ex-conselheiro económico da chanceler Angela Merkel, disposto agora a engolir o que for preciso para chegar ao posto pretendido numa espécie mal-amanhada e muito própria do whatever it takes com que o seu ex-adversário Draghi salvou a moeda única europeia.

Pessoalmente, tenho cá a impressão de que Macron tem duas linhas vermelhas, ambas alemãs, na partilha dos top jobseuropeus que vai continuar a ser negociada na noite de hoje em Bruxelas: Jens Weidmann no BCE e Manfred Weber na CE. Por razões de princípio e de interesse europeu, certamente, mas também por interesse mais propriamente franco-francês, ao estar a reservar no seu íntimo a presidência do BCE para um compatriota (Benoît Cœuré), e partidário, ao admitir a liderança do Conselho Europeu ou da Política Externa e de Segurança pela sua correligionária Margrethe Vertager (caso não consiga fazê-la passar para a presidência da Comissão em desfavor do favorito socialista, Frans Timmermans), deixando taticamente aos alemães duas opções menores para Weber: a presidência do Parlamento Europeu ou a primeira vice-presidência da Comissão. Mas este é um puzzle complexo e que está ainda longe de estar estabilizado...

UMA RÉSTEA DE ESPERANÇA?

(Morten Morland, http://www.thetimes.co.uk)


Como diria o MEC, se não tivermos outro tema sobram-nos sempre Trump e o Brexit. No que me toca, não será bem o caso, antes o de uma manifesta curiosidade quanto aos deliciosos detalhes de nonsense e absurdo que a política britânica nos tem fornecido desde aquele genial (ou apenas estúpido?) ato fundador de David Cameron que conduziu ao referendo. Assim, e atualizando as alusões ao tema através dos seus principais momentos, abaixo ficam os cinco grandes tópicos sucessivos a reter: o debate dos cinco candidatos finalistas, o inesperado afastamento de Gowe em favor de um surpreendente Hunt, o feio surgimento de um tema privado a penalizar a caminhada triunfal de Boris, a tentativa deste de manter a passada com proclamações fortes acerca de uma retirada britânica da União Europeia a concretizar a todo e qualquer custo (do or die) e algumas tentativas provenientes de várias procedências no sentido de contribuírem para uma desacreditação de Boris e da correspondente valorização de um mais normal e moderado Jeremy Hunt com vista ao voto decisivo de final do mês. E o certo é que, tudo visto e ponderado, este ainda não tem razões para deitar a toalha ao chão.

(cartoon de Bob Moran, http://www.telegraph.co.uk)

(cartoon de Chris Riddell, http://www.guardian.co.uk)

(cartoon de Patrick Blower, http://www.telegraph.co.uk)

(cartoon de Ben Jennings, http://www.guardian.co.uk)

(cartoon de Patrick Blower, http://www.telegraph.co.uk)

sábado, 29 de junho de 2019

TAXAS NEGATIVAS TAMBÉM RESPONSABILIZAM



São tempos a muitos níveis estranhos aqueles que atualmente vivemos. Também em termos macroeconómicos e, em concreto, no tocante ao financiamento das famílias, das empresas e dos Estados. A política de taxas de juro negativas é apenas uma perturbante manifestação disso mesmo, traduzindo-se no facto de os investidores serem obrigados a aceitar (por escassez de alternativas para alocação da liquidez) rendimentos negativos para as suas aplicações em títulos de dívida. Se nos focarmos na Zona Euro, merece evidência o facto de mais de metade da dívida pública (4,3 mil milhões de euros) negociar abaixo de 0%, percentagem que atinge os 90% no caso da Alemanha – de notar ainda que, há cerca de duas semanas, a Alemanha leiloou obrigações de médio prazo (10 anos) com o rendimento mais baixo de sempre (-0,24%). Sendo que Mario Draghi e o BCE já vieram corrigir a sua orientação do final de 2019 e prometer uma política de proteção da economia europeia contra a incerteza global, designadamente a criada pela guerra comercial entre EUA e China, através de cortes adicionais nas taxas de juros ou de uma intensificação das compras de ativos até, pelo menos, meados de 2020.

E em Portugal? Por cá, a proporção da dívida pública que é negociada abaixo de 0% está no valor mais alto de sempre, já superando os 40%. Com efeito, e até ao prazo de cinco anos, os títulos de dívida portuguesa negoceiam, em mercado secundário, com juros negativos (gráfico abaixo) – ou seja, o Tesouro retira um benefício (decorrente de os investidores aceitarem perder valor para poderem aplicar liquidez em dívida nacional) ao financiar-se nesses prazos. No entanto, Portugal ainda se encontra algo afastado dos juros negativos na taxa a dez anos – os investidores ainda exigem 0,484% para comprar obrigações nacionais a 10 anos, embora tal valor não tenha qualquer paralelo em relação aos que se observaram durante a crise (atingiram-se, então, máximos acima dos 15%).

A minha moral para esta história vai no sentido de uma interrogação muito forte quanto à sabedoria com que as autoridades nacionais europeias estão em condições de utilizar a margem de manobra que lhes vai sendo oferecida por este necessariamente temporário período de acalmia dos mercados.

A MOEDA CHINESA


Uma curta nota para evidenciar sinteticamente o histórico da política cambial chinesa e as suas manifestações atuais. A referência das autoridades na última década parece ter sido a dos sete yuans por dólar, mas são cada vez mais os que sustentam a ideia de que uma depreciação da moeda poderá vir a tornar-se inevitável perante os sintomas de abrandamento da atividade, de contração dos fluxos de investimento e de inversão do saldo corrente, máxime perante um prolongamento da guerra comercial com os EUA com aumento das respetivas sanções tarifárias – a margem de manobra não é grande e os riscos são significativos em termos de volume e financiamento da dívida empresarial em curso e de fuga de capitais, mesmo se explorado todo o arsenal regulamentar ao dispor de uma economia de direção central. Uma encruzilhada nem sempre devidamente percebida.

A ACONTECER EM OSACA



Cimeira do G20 em Osaca. Contando com a sempre desagradável presença de um incómodo e desfasado elefante na sala – Trump é o que é e não sabe ser outra coisa –, de uma Europa dividida e pouco visível nos grandes temas mundiais – tanto mais que “o multilateralismo pode ficar à porta” face a um claro predomínio das disputas bilaterais – e de uma Senhora May a despedir-se destes palcos com cara de poucos amigos – ainda a questão do espião, naturalmente... – perante o cínico presidente russo. Os grandes protagonistas não ocidentais decidiram começar por marcar o jogo antes de o mesmo começar, com Putin a vir proclamar alto e bom som que “a ideia liberal se tornou obsoleta” e Xi a vir acusar o protecionismo ocidental de destruir a ordem comercial global. Com a tensão no Golfo Pérsico a pairar, apenas se aguardam umas negociações (?) em torno da guerra comercial China-EUA mas já parece claro que a reunião se saldará por um quase tudo como dantes.

(cartoon de Bob Moran, http://www.telegraph.co.uk)

sexta-feira, 28 de junho de 2019

AGUSTINA EM ATMOSFERAS ALGARVIAS



(Parece uma contradição e talvez o seja. Reler Agustina, tão ciosa e especialista das atmosferas nortenhas. Mas o SUSTO de 1958 tinha-me escapado e a modorra algarvia pode ser o momento certo para a recuperação.)

A cuidada reedição das obras de Agustina Bessa Luís pela Relógio d’Água teve a especial vantagem, para além dos prefácios assinados por gente ilustre da literatura, de permitir colmatar brechas no conhecimento da obra da autora, particularmente das que correspondem ao período inicial de produção do génio de Agustina.

É o caso de O SUSTO, datado de 1958, com um prefácio extremamente pedagógico e informativo de António M. Feijó, que corresponde a uma incursão romanceada pela vida do poeta Teixeira de Pascoaes, associação que não é perfeitamente visível para um desconhecedor da obra do poeta. Ora é nesse plano interpretativo que o prefácio de António M. Feijó é de uma relevância extrema.

Talvez seja heresia ou contradição mergulhar na leitura de O SUSTO com a modorra algarvia, agora finalmente a regressar ao calor tépido das suas atmosferas, a envolver-nos o espírito e a convidar aquele “far niente” que muitos de nós já perderam de vista, tamanhas são as azáfamas em que nos deixamos aprisionar. Mas como neste caso a modorra algarvia também acolhe alguns momentos de trabalho, pois o dever profissional exige, a leitura de o SUSTO tem beneficiado da atenção que a modorra tout court talvez inviabilizasse.

O SUSTO confirma com a distância de 50 anos a notável capacidade de entendimento e descrição dos ambientes rurais do Entre-Douro-e- Minho com o Marão e o Gerês a pairarem no ponto da visão longínqua que Agustina evidenciava. Essa capacidade foi erradamente interpretada por alguns como uma espécie de mordaça geográfica que a impediria de ter um outro reconhecimento nacional e internacional. Não partilho essa ideia de acantonamento, pois o génio de Agustina está precisamente no seu universalismo contemporâneo desenhado a partir dos locais mais localistas e singulares.

Deixo neste post dois tipos de curtos excertos que ilustram o espirito global da nota de hoje.

O primeiro é uma citação recolhida pelo próprio autor do prefácio António M. Feijó da controvérsia que O SUSTO suscitou junto da família de Teixeira de Pascoaes. A citação provém de uma carta endereçada por Agustina ao escritor João Teixeira de Vasconcelos, irmão de Pascoaes, que terá ousado dirigir-se a Agustina dando conta do seu desagrado. Essa carta foi publicada no Suplemento Literário do Jornal de Notícias em 22 de janeiro de 1959:

Quando ouvir que alguém detracta os seus e insinua misérias dos que lhe são caros, na sua presença, assente-lhe duas bordoadas e arrume o caso assim. Com as figuras mitológicas dos meus livros não se meta, nem que se trate do leão de Nemeia, do touro de Creta, das hidras múltiplas de não sei que terra; às vezes eu própria estou por baixo da pele desses animais, e arranho, e escorneio, e lanço veneno. Isso é comigo e com todo o mundo. Consigo e com a causa de Pascoaes em particular nunca é”.

Inconfundível.

A segunda é uma longa descrição de um dos ambientes em cujo descrição perspassava já em 1958 o génio de Agustina:

A aldeia de Adriços, com os seus charcos barrentos, a igrejinha em ruínas, um calor de terras de Ur, o respiradouro fofo das toupeiras aberto pelo monte e onde os tacões de abatiam como numa armadilha, era toda ela deveras bastante herética em coisas de urbanização. As calçadas, com lajes polidas pelas enxurradas eo rodado de ferro dos carros de bois, tinham como única bênção a sombra dalgum velho brasão aquartelado, com o basto paquife derrubado sobre o escudo inglês. Via-se dali o dente rombo e nevoento do Marão, e toda a serrania calva e solitária tinha um ar de garra encolhida sobre a grande província agreste e, no entanto, sensível. A corda de montes fronteiros era extremamente hospitaleira, povoada, com aquela cor rósea e setecentista dos palácios pombalinos e a face encaliçada dos armazéns; as vinhas, com as ferrugentas cepas parecendo abandonadas naquela distância em que apenas as aves tocavam, estendiam-se, trepavam. Cobriam colinas e os lombos do monte, amparadas com os muros de xisto. O vento de Primavera era ácido e penetrante, fazia rolar o pó, protegendo a enfloração; debaixo do dardejar do solo, as valeiras rasgadas eram como arreganhos em que o sangue da terra, avarenta e esganada, coagulasse. O corrupio da perdiz entre os bardos, o súbito rolar dum calhau, provocavam na alma um fino sobressalto. Via-se Sedielos, o Vacalar, as suas janelas relampejavam ao crepúsculo como se as casas estivessem incendiadas; quase no flanco de São Domingos, cuja capela afonsina se via de toda a região que era bacia do Douro, ficava Adriços. O dorso escalavrado da montanha, com as goelas das antigas ruínas sarracenas, voltava-se para o Sul; para o lado de Adriços era despenhadeiro mais suave, de pedra solta que no Inverno rolava como laranjas atropelando ainda o texugo lerdo cuja felpuda cauda sofria grandes riscos. A loba vinha parir a sua ninhada bem perto das choças mortas das últimas vinhas. Via-se o rio. Como uma pintura chinesa, liso, tímido, e constante, entre as penhas que eram como pétalas fossilizadas, como o aço claro e despedido por entre as serras, via-se o rio”.

Embora enrolado na modorra algarvia, sinto-me projetado naquela atmosfera de Adriços.

POR DETRÁS DA BRUMA

(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)


Sou testemunha do muito e, de algum modo, justificado desespero que grassa nos adeptos do FC Porto. Porque, mesmo sabendo que o início da próxima semana irá trazer notícias que ajudarão a mitigar o atual estado depressivo, é também certo que não há memória recente de enxovalhos como o da contratação falhada de Bruma nem de fumos sem fogo em tão grande e ruidosa quantidade como neste defeso. Pessoalmente, quero ainda crer que tudo entrará num rumo de razoável normalidade mas não posso negar a séria preocupação que me invade, assim como a secreta esperança de que não estejamos perante prenúncios surdos de um evitável estertor...

quinta-feira, 27 de junho de 2019

OS CAVALOS TAMBÉM SE ABATEM


Subitamente, eis que algum reaquecimento democrático se manifestou com expressão em vários pontos do mundo. O cartunista elege Istambul, Hong-Kong e Praga como ilustrações relevantes. Nestas coisas da democracia, não existem obviamente hierarquias pois que todos os casos são importantes, ponto. Ainda assim, escolho deixar aqui uma nota especial dedicada à derrota de Erdoğan, após uma nada transparente repetição das eleições municipais na maior cidade do país – “nada ficará na mesma daqui em diante”, afirmam todos os comentadores políticos internacionais na sequência do colossal fracasso que atingiu o ditador turco depois de dezasseis anos sempre a subir. A proeza de Ekrem Imamoğlu (no quadro de uma significativa mobilização dos cidadãos em plenas férias de Verão) leva a que as cinco principais cidades do país passem a ser governadas por laicos, o que necessariamente tem de ser encarado como correspondendo a um revés para o programa de islamização do país que tem vindo a estar em curso e faz com que já haja quem fale de game changer, de fissuras no AKP e de “nova era”...

(Jean Plantu, http://lemonde.fr)

quarta-feira, 26 de junho de 2019

FRÁGIL E VOLÁTIL



(A posição do PS relativamente ao Sistema Nacional de Saúde tem vindo a fragilizar-se e a tornar-se cada vez mais volátil, o que tende a perturbar a fixação do seu eleitorado. E a questão transcende a matéria das PPP na saúde.)

Reconheço e penso que todo o cidadão de boa-fé o reconhecerá que a tarefa dos ministros da Saúde nos tempos que correm não é fácil e tende rapidamente a corroer a imagem e as boas graças com que qualquer candidato ao lugar inicie as suas tarefas. Penso que foi isso que se passou com os dois ministros que ocuparam a pasta no atual governo do PS. A corrosão atingiu o mandato de Adalberto Campos Fernandes e está a acontecer o mesmo com o de Marta Temido. Não estão em causa, que as podem existir, as características e insuficiências de quem exerce o cargo e certamente as haverá nas duas personalidades, se aprofundarmos o escrutínio e a avaliação. Mas esse não é o meu ponto. Entendo que a corrosão aconteceria sempre quaisquer que fossem esses traços e competências.

Sou dos que sempre entendi que a qualidade e desempenho dos sistemas de saúde, mesmo que admitamos efeitos associados ao modelo escolhido, estão estruturalmente ligados ao nível de desenvolvimento do país, numa relação que é ambivalente, mas que para efeito desta crónica a entendo na perspetiva de que o nível global de desenvolvimento do país acaba por condicionar a qualidade e desempenho do sistema de saúde. Ora, até há bem pouco tempo, a maioria dos indicadores relativos ao SNS evidenciava uma qualidade e desempenho acima do que o nível de desenvolvimento do país o admitiria. A questão que deve colocar-se é esta: se essa asserção for verdadeira por que razão a corrosão dos ministros parece algo de inevitável?

A minha interpretação para essa aparente contradição desemboca ainda na mesma relação estrutural: a qualidade e desempenho do SNS pode estar acima do nível de desenvolvimento mas tende a ajustar-se em baixa quando o nível de desenvolvimento global do país enfrenta algumas limitações.

No caso vertente, foi possível ocultar durante algum tempo algumas insuficiências de recursos do sistema, mas os cortes da Troika, a introdução da semana de 35 horas, as disparidades de situações entre os agentes do sistema, limitações de investimento público e as dificuldades de introduzir no sistema uma rigorosa e equilibrada política de racionalização de meios e custos abriram uma caixa de Pandora.

Por isso, entendo que a questão das PPP na saúde é uma questão menor no seio do problema mais global que apoquenta o sistema. Primeiro, o modelo PPP está mais desenhada para um processo de construção-gestão de uma unidade hospitalar. Aí entende-se bem a vantagem dessa modalidade que se traduz sobretudo na antecipação do investimento, tanto mais importante quanto maiores forem as limitações de investimento público que o país viva. Claro que as contrapartidas por essa antecipação devem ser bem pesadas. Ninguém pretende repetir os desvios de algumas PPP rodoviárias.

Tenho mais dificuldade em equacionar as modalidades de PPP unicamente destinadas à gestão de unidades hospitalares. Grassa por aí a ideia de que a gestão hospitalar privada é seguramente melhor do que a gestão pública, apresentando-se para isso exemplos comparativos de unidades públicas e unidades privadas. Esse confronto está enviesado por uma razão que não vai agradar seguramente aos meus colegas médicos. Gostaria de trazer para a reflexão o diferente comportamento dos agentes médicos e de enfermagem quando trabalham em unidades públicas e em unidades privadas. Nas primeiras, quando uma administração pública mais agressiva introduz alguma regra de racionalização, aqui d’el rey que a autonomia do ato médico está a ser comprometida, ouve-se de novo a palavra economicismo e geram-se comportamentos de resistência. Não me consta que tais agentes quando partilham a sua atividade no público e no privado se insurjam com tais rigores de gestão. Por conseguinte, a comparação está viciada.

Depois, essa comparação apressada parece ignorar a qualidade conhecida da formação superior e pós-graduada em gestão e administração de unidades de saúde. Com o mesmo comportamento compreensivo dos agentes médicos por que razão a gestão pública tem de ser necessariamente de pior qualidade do que a privada?

Isto não significa que, por exemplo, na mal contada história do fim da PPP no Hospital de Braga não seja necessária uma avaliação mais profunda e distanciada do momento político da gestão aí realizada pelo operador privado. A discussão está toldada.

Por isso, a posição do PS não me convence nesta matéria. Ela é relativamente frágil e mais do que isso tem sido algo volátil. Não está em causa a existência de hospitais privados. Mas subordinar uma Lei de Bases à pretensa superioridade da gestão privada das unidades hospitalares parece-me muito frágil. Outra coisa é manter os dois sistemas em funcionamento em concorrência leal. Mas isso é matéria para uma outra reflexão.