segunda-feira, 3 de junho de 2019

AGUSTINA



(A notícia da morte de Agustina apanhou-me em Lisboa, entre reuniões daquele tipo que se poderiam concretizar perfeitamente por skype ou vídeo-conferência, mas que continuamos a suportar pagando o tributo do centralismo que se reproduz tanto melhor quanto mais visitas tiver. Em meu desfavor, há ainda o facto de grande parte da minha generosa biblioteca com obras da autora estar em Seixas o que inviabiliza a possibilidade de rever passagens, anotações, espantos, rendição.)

Agustina Bessa -Luís já nos tinha deixado há muito tempo, como se pretendesse que fossemos cortando os laços com a sua prosa e com o seu pensamento irredutivelmente crítico e a sua morte tivesse menos impacto por isso. Da literatura que domina parte dessa estante inserida na parede branca de Seixas brota um espírito prodigioso, uma forma incomparável de recriação dos ambientes de um Norte que se vai esfumando no tempo que transforma a Região. Parte desses ambientes serviu para um diálogo estranho entre a sua prosa e o cinema de Manuel de Oliveira. Mas para além do cinema de Oliveira, nas obras de Agustina passeiam-se rostos e personalidades femininas que são verdadeiros tratados psicológicos, não precisando para isso do catálogo feminista antes do tempo.

Creio que pela observação atenta de alguns ambientes com os quais manteve forte proximidade, Agustina é uma analista imparável do mundo dos negócios que já não se fazem assim. Li uma vez algures no tempo uma passagem de uma das suas obras, primeiro pensei que fosse a sua notável biografia do Marquês de Pombal, mas não a consegui encontrar, que concebia uma diferença espantosa de significado entre os economistas e os financeiros, ou homens da finança como lhe queiram chamar. Naquela passagem havia mais conteúdo de perceção dos fenómenos económicos e financeiros e dos seus protagonistas do que numa bateria de manuais e de jornais e revistas especializadas.

A edição pela Fundação Calouste Gulbenkian das suas crónicas completas, dispersas por longos anos de trabalho de publicação em diferentes jornais, palestras ou outros escritos, demonstra-nos a sua ampla cultura e sabedoria do mundo. E do ponto de vista das suas referências territoriais não conheço mais ninguém capaz como Agustina de ler com o mesmo quadro interpretativo as famílias do Minho e do Douro.

A esquerda em Portugal e as suas famílias culturais nunca tragaram a obra de Agustina com o requinte e a sabedoria como a autora tomaria uma taça de champagne na sua intimidade ou num sarau familiar ou com amigos próximos. Se ser de esquerda implica essa renúncia que se dane a esquerda.

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