quarta-feira, 19 de junho de 2019

O RANÇO BOLORENTO DE ALGUMAS ELITES PORTUGUESAS



(Não morro de amores pelo estilo da prosa por vezes simplista de João Miguel Tavares. Mas entre a controvérsia das suas palavras no 10 de Junho (porquê o discurso de Cabo Verde foi menos discutido?) e o bolor que tresanda da reatividade de algumas elites acomodadas e intocáveis não tenho dúvidas de que prefiro a primeira. A sociedade portuguesa precisa de ser abanada. Afastar para o canto aquilo que não nos agrada com o rótulo de populismo e não ir à luta da discussão do seu conteúdo reforça paradoxalmente esse populismo. Portugal é um país pequenino e as suas elites quando não dão o salto para o mundo e nele se projetam são mesmo muito pequeninas. Com elas não vamos a lado nenhum.)

Se o discurso de JMT de Portalegre foi controverso, o de Cabo Verde foi corajoso. Ainda não compreendi porque só o primeiro despertou tanta controvérsia e o segundo foi olimpicamente ignorado. Sugiro uma explicação. O discurso de Portalegre tocou fundo porque JMT ousou pegar em questões consideradas intocáveis porque já estão rotuladas de intocáveis. O discurso de Cabo Verde assumiu causas que a esquerda costuma agarrar e o facto de ter sido um tipo de direita assumida a pegar nelas incomodou mas impediu a sua crítica, porque se fosse feita era contraditória.

Pelas reações havidas e sobretudo pelo seu teor não só JMT terá material inesgotável para desenvolver a sua intervenção, como Marcelo estará a rir-se de gozo com o impacto da sua escolha para o 10 de Junho.

Só retomo este assunto porque entendo que as reações mais ou menos elitistas ao discurso de Portalegre ilustram de modo perfeito as razões do avanço do populismo em Portugal e noutras paragens. Rotular sem discutir não trava o que estamos a rotular. Será populismo focar a crise de confiança nas instituições democráticas, na classe política e nas elites que grassa na sociedade portuguesa? Rotular essas abordagens como populistas contribuirá para conter o fenómeno?

A questão preocupa-me apenas pelo facto de achar que a esquerda em Portugal tem mostrado uma particular inabilidade para lidar com argumentos do tipo dos que JMT acenou no discurso de Portalegre. A reação pavloviana de reagir catalogando à partida os promotores de tais argumentos (populistas, saudosistas, até fascistas) e com isso pretender esgotar e suster toda a discussão é tonta e até pode ser considerada como arrogante e pretensamente defensora da ideia de que só a esquerda tem moral para discutir algumas matérias. A cada catalogação precipitada, e aqui haverá que discutir entre a inequívoca gradação de qualidade que existe entre alguns desses argumentos, é mais um tiro no pé. O discurso de Portalegre de JMT não pode ser equiparado a um dislate que se coloca no Facebook ou no Twitter e que se esgota por aí. O discurso toca em questões como o do elevador social a partir de regiões em declínio como o Alto Alentejo e Portalegre que têm de ser analisadas em profundidade. Pode também discutir-se se em democracia a questão dos desígnios nacionais tem de ser melhor discutida, sobretudo não depreciando a ideia de desígnio pela sua multiplicação. E a questão do “nós” (os cidadãos) e “eles” (os políticos e a classe política em geral) não pode ser arrumada para o canto da simplificação.

Nestas coisas da dialética, o facto de estarmos a viver em Portugal um período de forte desqualificação da direita, que se tem atropelado a si própria, sem rumo e sem clarificação do modelo de liderança, é péssimo para o sistema democrático, é-o também para a esquerda em geral que não tem sentido grande pressão para se reinventar pela debilidade da oposições.

Cá por mim, embora, repito, não morra de amores pelo estilo da personagem, a multiplicação de JMT seria benéfica, tanto mais elaborados quanto possível, pois desse modo a catalogação preguiçosa teria os seus dias contados.

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