terça-feira, 18 de junho de 2019

O DIFÍCIL CAMINHO DAS IDEIAS



(A progressão das ideias económicas, particularmente do ponto de vista da sua tradução em orientações de política macroeconómica, tem sido um assunto recorrente neste blogue, atendendo a que o tema ilustra bem a complexidade do âmbito público-privado. A reunião do BCE num recôndito aprazível da Sintra reservada às elites vem de novo colocar o tema das dificuldades de afirmação de uma alternativa macroeconómica que seja eco das transformações registadas após a Grande Recessão de 2007-2008.

Quase diria que, pelo menos no que me diz respeito, a decisão de me abalançar às lides pressionantes deste blogue se confunde com este tema que trago hoje de novo à reflexão. Há nesta questão uma sequência imparável de acontecimentos, que vão desde o mundo reservado das relações entre pares em matéria de “ciência” económica até ao das decisões e resoluções que afetam irremediavelmente a vida das pessoas. De facto, a Grande Recessão de 2007-2008, a relativamente rápida intervenção dos bancos centrais após a sua deflagração e muito particularmente o que ficou desse acontecimento como “novo normal” ou simples conjuntura mais longa não podiam deixar de produzir implicações e trazer aos macroeconomistas novas interrogações, aos mais abertos, entenda-se. Depois, como sabemos, essa Grande Recessão teve sequelas de outra natureza, embora por ela influenciadas, ao nível do Euro, particularmente dos seus elementos mais frágeis na Europa do sul. A crise das dívidas soberanas, quer a entendamos como uma consequência da Grande Recessão facilitada pelas fragilidades da arquitetura do Euro e das tais economias mais expostas, quer a interpretemos como um caso próprio e autónomo, trouxe questões similares e interpelou de novo os macroeconomistas, reavivando a conflitualidade de paradigmas, que muitos querem esconder debaixo do tapete ao lado de outras impurezas da profissão. O modo como a política económica reagiu em termos de modelos de ajustamento da crise das dívidas soberanas vai despertando cada vez mais interrogações. Mesmo os mais empedernidos e comprometidos de cabeça lá vão largando de quando em vez um queixume de que talvez pudesse ter sido diferente, embora sempre atalhando que é sempre mais fácil fazer prognósticos no fim do jogo. Avaliações internas no âmbito do FMI sugerem o mesmo padrão. Até o pai inspirador das teses da austeridade, a malfadada austeridade expansionista criada por Alberto Alesina (Harvard), tem procurado safar o coiro, com novas especificações do modelo, muito do estilo “não me comprometas”, ou seja, reduzindo cada vez mais as condições em que a tal austeridade poderia gerar expansão económica.

Entretanto, o tempo foi passando e embora a duração em economia seja uma questão não plenamente resolvida, a verdade é que as condições estruturais que se impuseram macroeconomicamente após a Grande Recessão já dificilmente podem ser entendidas como uma conjuntura mais longa. A melhor ilustração desse “novo normal” regista-se na economia americana onde todo o bicho careta se põe a adivinhar quando é que se precipita numa nova recessão, quando o sobreaquecimento da economia se faz não pela via inflacionária, mas antes por uma onda de projetos cada vez mais especulativos embora sem pressões inflacionistas. Em obra recentemente publicada e anunciada neste blogue, Olivier Blanchard e Lawrence Summers questionam se teremos como noutros períodos passados da história económica uma revolução das ideias ou se assistiremos simplesmente a uma evolução das mesmas.

Mas o problema central continua a ser o mesmo: o longo e difícil caminho das ideias em economia. A via sacra dos temas aqui implícitos é composta por duas rampas de acesso, cheias de obstáculos, inclinações que baste e outros escolhos.

A primeira rampa processa-se entre pares e aí o jogo é tudo menos limpo e cavalheiresco. A forma como as ideias económicas prevalecentes resistem à sua superação por novas orientações é complexa e tem matizes diferenciados. Primeiro, pode falar-se de inércia. É sempre mais fácil aprofundar o que está desenhado do que abrir caminho às novas orientações. As bases empíricas mudam radicalmente e há toda uma massa de doutorandos iniciados à sombra do velho paradigma a que é necessário dar saída em termos de trabalhos e publicações. Depois, há uma questão de poder académico e Bourdieu ensinou-nos magistralmente como esse mundo pode ser tenebroso. Depois ainda, entre quem personaliza esse poder há muita gente (embora raras vezes o divulgue ou explicite publicamente) comprometida com o poder político que utiliza as ideias dominantes.

Vivemos hoje com a dúvida se um novo paradigma macroeconómico vai impor-se (a revolução de que falam Blanchard e Summers) ou se iremos ter ainda um longo período de simples evolução, com conflitualidade aberta. Não será fácil assistirmos a uma revolução do tipo da keynesiana dos anos 30 ou da emergência dos anti-keynesianos dos anos 70.

Mas mesmo que as coisas se clarificassem entre pares, uma outra rampa teria de ser vencida, a do convencimento dos decisores de política económica e monetário, políticos e governos e bancos centrais. A ideia de que governos e bancos centrais se deixam permeabilizar pela força das ideias quando elas emergem e abanam paradigmas é algo peregrina e ingénua. Primeiro, porque esses sistemas têm os seus próprios mecanismos de produção de ideias económicas. Segundo, porque outros valores se levantam (e que valores tão diversos se podem aqui confrontar) e a relação é inversa: vamos lá procurar quem fundamente as nossas convicções. Terceiro, porque tais sistemas podem ceder à empiria e os seus modelos de previsão de impactos macroeconómicos podem ser amálgamas de paradigmas, emaranhados de ideias económicas novas e velhas. Antes da Grande Recessão, os modelos ditos post-keynesianos que informavam a ação dos bancos centrais estou certo que horrorizariam Keynes por ver o seu nome associado (embora na cauda da designação) a esses modelos.

No encontro de Sintra do BCE, Olivier Blanchard tentará por certo convencer decisores de que em contexto de taxas de juro de longo prazo como as que temos hoje e que se estima venham a prevalecer no futuro próximo será tempo de rever mitos e incertezas quanto à política fiscal e à dívida pública e de relançar o investimento na zona euro. Blanchard não é um economista qualquer e não se pode dizer que não tenha poder de influência. 

Não antecipo qualquer otimismo acerca do modo como decisores políticos e dos bancos centrais incorporarão as sugestões de Blanchard sobre a reconsideração do papel dos governos e da política fiscal para atacar uma nova recessão que nos surja por aí. Se fizerem orelhas moucas ao assunto ficarão por sua conta e risco. Talvez encontrem alguém de ideias servis sempre pronto a racionalizar uma teimosia mais ou menos autista. Não me parece que seja necessário abrir portas escancaradas aos ecos do debate americano sobre a moderna teoria monetária para entender que é tempo da política fiscal ser reabilitada. A questão mais relevante não é essa. É antes a de saber como na zona Euro se ajustará essa imperiosa necessidade de reabilitação da política fiscal ao facto de termos economias mais e menos endividadas. Se a orientação, deficiente em meu entender, for a de restringir esse apelo fiscal aos menos endividados, teríamos que assegurar que por via das importações desses países os mais endividados fossem presenteados com um impulso acrescido para as suas exportações. O que não é nada líquido que seja fácil operacionalizar. Por isso, seria necessário assegurar uma espécie de moratória concertada ao mais alto nível para que os mais endividados pudessem beneficiar desse impulso fiscal, focando-o no investimento. Pedro Sánchez e António Costa têm aqui um tema de forte centralidade para as suas tentativas de capitalizar as suas vitórias entre os socialistas e sociais-democratas europeus.

Mas não deixo de reconhecer que os muros são altos e de bem dura argamassa.

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