quinta-feira, 6 de junho de 2019

HÁ 75 ANOS



(Algumas notas mais ou menos anárquicas sobre a efeméride do desembarque na Normandia, o dia D nos nossos referenciais históricos, cinéfilos, literários ou simplesmente de imagens que se gravaram nas nossas histórias. Ou como a história nos deveria iluminar para uma relação mais contextualizada e informada com os EUA.)

A Europa vive tempos em que parece que uma forte amnésia varreu a cabeça de muitos indivíduos, dos mais velhos aos mais novos. A Segunda Guerra Mundial e as suas trágicas deflagrações, a violência da destruição, a opressão, a reconquista e a destruição associada parecem a muita gente coisas muito longínquas. Mas é mais uma amnésia seletiva que nos atravessa. Se é verdade que entre os jovens o seu desinteresse pela história, pela leitura e pelo passado explica em parte o alheamento, já para muita outra gente bastariam os ecos familiares da destruição e da perturbação da vida para justificar uma outra atenção. É um facto também que o drama da guerra colonial em Portugal acrescentou novos traumas que talvez tenham apagado para alguns as lembranças do risco a que a liberdade esteve sujeita.

Não tenho lido o que deveria sobre a história da Segunda Guerra Mundial. Acho que ainda não consegui ler a obra de Anthony Beevor sobre o Dia D. Relembro ecos familiares do modo como na vida quotidiana a Guerra foi vivida. Sempre que algum jornal no meu radar de leituras diárias ou periódicas aprofunda alguns aspetos sou um leitor convulsivo dessas incursões jornalísticas ou mais ensaísticas (link aqui para uma incursão fotográfica do New York Times). Por isso, as recordações cinéfilas são as que mais conservam viva as imagens da Segunda Guerra e em particular do decisivo desembarque. Curiosamente, se é verdade que O Resgate do Soldado Ryan (1998) de Spielberg é o mais recente e também inesquecível, toda a minha memória afetiva praticamente se concentra em O Dia Mais Longo (1962) de Darryl F. Zanuck, talvez pelo facto de o ter visto ainda com pouca idade juntamente com o meu Pai, numa das recordações mais nítidas da sua presença em algo que vivemos em conjunto, talvez só equilibrada com a visualização na televisão da chegada à lua.

Para além da desmedida coragem e abnegação que aquele desembarque representa enquanto feito humano de que nos deveríamos orgulhar infinitamente e para sempre na nossa condição humana de seres cada vez menos corajosos e solidários, o desembarque na Normandia explicita bem o reconhecimento eterno que deveríamos ter para com aquela massa de homens americanos que deram a vida por uma ideia de libertação.

Os tempos que vivemos ameaçam a sobrevivência desse pensamento solidário. De dentro da Europa, surgem aberrações que pretendem driblar a história e cavar novas ameaças a partir do seu interior. Dos EUA emerge uma outra aberração, tão perigosa como a que brota do interior da Europa e aliada com centrais de pensamento que parecem apostadas em cavar a própria destruição da União Europeia e dos valores mais nobres. E da Rússia surgem também ameaças que não honram e comprometem a perceção que os Europeus deveriam alimentar quanto à importância da massa de imensa gente que deu a vida para conter a ofensiva nazi. Por isso, as cerimónias de hoje na Normandia fazem-se com lideranças políticas cuja fragilidade não honra o sacrifício humano que a contenção do nazismo implicou. O sentimento está lá e o nosso reconhecimento também, mas por aquelas cerimónias pairam aberrações e fragilidades que mais do que nunca demonstram que “History matters!”

É algo que a vida do já desaparecido inspirador deste blogue Albert O. Hirschman nos recorda permanentemente.

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