sexta-feira, 28 de junho de 2019

AGUSTINA EM ATMOSFERAS ALGARVIAS



(Parece uma contradição e talvez o seja. Reler Agustina, tão ciosa e especialista das atmosferas nortenhas. Mas o SUSTO de 1958 tinha-me escapado e a modorra algarvia pode ser o momento certo para a recuperação.)

A cuidada reedição das obras de Agustina Bessa Luís pela Relógio d’Água teve a especial vantagem, para além dos prefácios assinados por gente ilustre da literatura, de permitir colmatar brechas no conhecimento da obra da autora, particularmente das que correspondem ao período inicial de produção do génio de Agustina.

É o caso de O SUSTO, datado de 1958, com um prefácio extremamente pedagógico e informativo de António M. Feijó, que corresponde a uma incursão romanceada pela vida do poeta Teixeira de Pascoaes, associação que não é perfeitamente visível para um desconhecedor da obra do poeta. Ora é nesse plano interpretativo que o prefácio de António M. Feijó é de uma relevância extrema.

Talvez seja heresia ou contradição mergulhar na leitura de O SUSTO com a modorra algarvia, agora finalmente a regressar ao calor tépido das suas atmosferas, a envolver-nos o espírito e a convidar aquele “far niente” que muitos de nós já perderam de vista, tamanhas são as azáfamas em que nos deixamos aprisionar. Mas como neste caso a modorra algarvia também acolhe alguns momentos de trabalho, pois o dever profissional exige, a leitura de o SUSTO tem beneficiado da atenção que a modorra tout court talvez inviabilizasse.

O SUSTO confirma com a distância de 50 anos a notável capacidade de entendimento e descrição dos ambientes rurais do Entre-Douro-e- Minho com o Marão e o Gerês a pairarem no ponto da visão longínqua que Agustina evidenciava. Essa capacidade foi erradamente interpretada por alguns como uma espécie de mordaça geográfica que a impediria de ter um outro reconhecimento nacional e internacional. Não partilho essa ideia de acantonamento, pois o génio de Agustina está precisamente no seu universalismo contemporâneo desenhado a partir dos locais mais localistas e singulares.

Deixo neste post dois tipos de curtos excertos que ilustram o espirito global da nota de hoje.

O primeiro é uma citação recolhida pelo próprio autor do prefácio António M. Feijó da controvérsia que O SUSTO suscitou junto da família de Teixeira de Pascoaes. A citação provém de uma carta endereçada por Agustina ao escritor João Teixeira de Vasconcelos, irmão de Pascoaes, que terá ousado dirigir-se a Agustina dando conta do seu desagrado. Essa carta foi publicada no Suplemento Literário do Jornal de Notícias em 22 de janeiro de 1959:

Quando ouvir que alguém detracta os seus e insinua misérias dos que lhe são caros, na sua presença, assente-lhe duas bordoadas e arrume o caso assim. Com as figuras mitológicas dos meus livros não se meta, nem que se trate do leão de Nemeia, do touro de Creta, das hidras múltiplas de não sei que terra; às vezes eu própria estou por baixo da pele desses animais, e arranho, e escorneio, e lanço veneno. Isso é comigo e com todo o mundo. Consigo e com a causa de Pascoaes em particular nunca é”.

Inconfundível.

A segunda é uma longa descrição de um dos ambientes em cujo descrição perspassava já em 1958 o génio de Agustina:

A aldeia de Adriços, com os seus charcos barrentos, a igrejinha em ruínas, um calor de terras de Ur, o respiradouro fofo das toupeiras aberto pelo monte e onde os tacões de abatiam como numa armadilha, era toda ela deveras bastante herética em coisas de urbanização. As calçadas, com lajes polidas pelas enxurradas eo rodado de ferro dos carros de bois, tinham como única bênção a sombra dalgum velho brasão aquartelado, com o basto paquife derrubado sobre o escudo inglês. Via-se dali o dente rombo e nevoento do Marão, e toda a serrania calva e solitária tinha um ar de garra encolhida sobre a grande província agreste e, no entanto, sensível. A corda de montes fronteiros era extremamente hospitaleira, povoada, com aquela cor rósea e setecentista dos palácios pombalinos e a face encaliçada dos armazéns; as vinhas, com as ferrugentas cepas parecendo abandonadas naquela distância em que apenas as aves tocavam, estendiam-se, trepavam. Cobriam colinas e os lombos do monte, amparadas com os muros de xisto. O vento de Primavera era ácido e penetrante, fazia rolar o pó, protegendo a enfloração; debaixo do dardejar do solo, as valeiras rasgadas eram como arreganhos em que o sangue da terra, avarenta e esganada, coagulasse. O corrupio da perdiz entre os bardos, o súbito rolar dum calhau, provocavam na alma um fino sobressalto. Via-se Sedielos, o Vacalar, as suas janelas relampejavam ao crepúsculo como se as casas estivessem incendiadas; quase no flanco de São Domingos, cuja capela afonsina se via de toda a região que era bacia do Douro, ficava Adriços. O dorso escalavrado da montanha, com as goelas das antigas ruínas sarracenas, voltava-se para o Sul; para o lado de Adriços era despenhadeiro mais suave, de pedra solta que no Inverno rolava como laranjas atropelando ainda o texugo lerdo cuja felpuda cauda sofria grandes riscos. A loba vinha parir a sua ninhada bem perto das choças mortas das últimas vinhas. Via-se o rio. Como uma pintura chinesa, liso, tímido, e constante, entre as penhas que eram como pétalas fossilizadas, como o aço claro e despedido por entre as serras, via-se o rio”.

Embora enrolado na modorra algarvia, sinto-me projetado naquela atmosfera de Adriços.

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