(Parece uma contradição e talvez o seja. Reler Agustina, tão
ciosa e especialista das atmosferas nortenhas. Mas o SUSTO de 1958 tinha-me escapado e a modorra
algarvia pode ser o momento certo para a recuperação.)
A cuidada reedição das obras de Agustina Bessa Luís pela Relógio d’Água teve
a especial vantagem, para além dos prefácios assinados por gente ilustre da
literatura, de permitir colmatar brechas no conhecimento da obra da autora,
particularmente das que correspondem ao período inicial de produção do génio de
Agustina.
É o caso de O SUSTO, datado de 1958, com um prefácio extremamente pedagógico
e informativo de António M. Feijó, que corresponde a uma incursão romanceada
pela vida do poeta Teixeira de Pascoaes, associação que não é perfeitamente visível
para um desconhecedor da obra do poeta. Ora é nesse plano interpretativo que o
prefácio de António M. Feijó é de uma relevância extrema.
Talvez seja heresia ou contradição mergulhar na leitura de O SUSTO com a
modorra algarvia, agora finalmente a regressar ao calor tépido das suas atmosferas,
a envolver-nos o espírito e a convidar aquele “far niente” que muitos de nós já
perderam de vista, tamanhas são as azáfamas em que nos deixamos aprisionar. Mas
como neste caso a modorra algarvia também acolhe alguns momentos de trabalho,
pois o dever profissional exige, a leitura de o SUSTO tem beneficiado da atenção
que a modorra tout court talvez inviabilizasse.
O SUSTO confirma com a distância de 50 anos a notável capacidade de
entendimento e descrição dos ambientes rurais do Entre-Douro-e- Minho com o Marão
e o Gerês a pairarem no ponto da visão longínqua que Agustina evidenciava. Essa
capacidade foi erradamente interpretada por alguns como uma espécie de mordaça geográfica
que a impediria de ter um outro reconhecimento nacional e internacional. Não partilho
essa ideia de acantonamento, pois o génio de Agustina está precisamente no seu
universalismo contemporâneo desenhado a partir dos locais mais localistas e singulares.
Deixo neste post dois tipos de curtos excertos que ilustram o espirito
global da nota de hoje.
O primeiro é uma citação recolhida pelo próprio autor do prefácio António
M. Feijó da controvérsia que O SUSTO suscitou junto da família de Teixeira de
Pascoaes. A citação provém de uma carta endereçada por Agustina ao escritor João
Teixeira de Vasconcelos, irmão de Pascoaes, que terá ousado dirigir-se a
Agustina dando conta do seu desagrado. Essa carta foi publicada no Suplemento Literário
do Jornal de Notícias em 22 de janeiro de 1959:
“Quando
ouvir que alguém detracta os seus e insinua misérias dos que lhe são caros, na
sua presença, assente-lhe duas bordoadas e arrume o caso assim. Com as figuras
mitológicas dos meus livros não se meta, nem que se trate do leão de Nemeia, do
touro de Creta, das hidras múltiplas de não sei que terra; às vezes eu própria
estou por baixo da pele desses animais, e arranho, e escorneio, e lanço veneno.
Isso é comigo e com todo o mundo. Consigo e com a causa de Pascoaes em
particular nunca é”.
Inconfundível.
A segunda é uma longa descrição de um dos ambientes em cujo descrição perspassava
já em 1958 o génio de Agustina:
“A
aldeia de Adriços, com os seus charcos barrentos, a igrejinha em ruínas, um calor
de terras de Ur, o respiradouro fofo das toupeiras aberto pelo monte e onde os
tacões de abatiam como numa armadilha, era toda ela deveras bastante herética
em coisas de urbanização. As calçadas, com lajes polidas pelas enxurradas eo
rodado de ferro dos carros de bois, tinham como única bênção a sombra dalgum velho
brasão aquartelado, com o basto paquife derrubado sobre o escudo inglês. Via-se
dali o dente rombo e nevoento do Marão, e toda a serrania calva e solitária
tinha um ar de garra encolhida sobre a grande província agreste e, no entanto, sensível.
A corda de montes fronteiros era extremamente hospitaleira, povoada, com aquela
cor rósea e setecentista dos palácios pombalinos e a face encaliçada dos armazéns;
as vinhas, com as ferrugentas cepas parecendo abandonadas naquela distância em
que apenas as aves tocavam, estendiam-se, trepavam. Cobriam colinas e os lombos
do monte, amparadas com os muros de xisto. O vento de Primavera era ácido e
penetrante, fazia rolar o pó, protegendo a enfloração; debaixo do dardejar do
solo, as valeiras rasgadas eram como arreganhos em que o sangue da terra,
avarenta e esganada, coagulasse. O corrupio da perdiz entre os bardos, o súbito
rolar dum calhau, provocavam na alma um fino sobressalto. Via-se Sedielos, o
Vacalar, as suas janelas relampejavam ao crepúsculo como se as casas estivessem
incendiadas; quase no flanco de São Domingos, cuja capela afonsina se via de
toda a região que era bacia do Douro, ficava Adriços. O dorso escalavrado da montanha,
com as goelas das antigas ruínas sarracenas, voltava-se para o Sul; para o lado
de Adriços era despenhadeiro mais suave, de pedra solta que no Inverno rolava
como laranjas atropelando ainda o texugo lerdo cuja felpuda cauda sofria
grandes riscos. A loba vinha parir a sua ninhada bem perto das choças mortas
das últimas vinhas. Via-se o rio. Como uma pintura chinesa, liso, tímido, e
constante, entre as penhas que eram como pétalas fossilizadas, como o aço claro
e despedido por entre as serras, via-se o rio”.
Embora enrolado na modorra algarvia, sinto-me projetado naquela atmosfera de
Adriços.
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